5. PROCESSO PENAL – ASPECTOS GERAIS
É natural a existência de conflitos entre homens que vivem inseridos na sociedade, até mesmo por ser rotineiramente mantido um contato entre pessoas com ideais e personalidades diferentes. Os indivíduos possuem gostos e interesses distintos, daí porque chega a ser utópico imaginar uma convivência totalmente pacífica entre eles. E assim, desde que surgiu a humanidade, há relatos de brigas entre os homens, tenham sido elas pela disputa de alimentos e moradia, ou ainda por oposição de interesses, dentre inumeráveis outros motivos.
Mas, se antes se resolvia todos os problemas através do uso da força (o que, indubitavelmente, favorecia os mais fortes), época em que a “autodefesa” 99 era a regra na solução de conflitos, surgiu, com a evolução da sociedade e dos valores éticos e morais, a necessidade de o Estado passar a ser o responsável por compor os interesses maneira justa e pacífica. E assim, por meio de um terceiro capacitado a decidir com imparcialidade e neutralidade as questões, emitir decisões condizentes com os ditames da justiça e da equidade.
Logo, o Estado avocou para si a competência para a composição de litígios, de forma que, estabelece o art. 345. do Código Penal brasileiro, ser “proibido fazer justiça com as próprias mãos, embora a pretensão seja legítima”. Logo, é a ele que cabe administrar a justiça, o exercício do jus puniendi, tarefa de incumbência do poder judiciário, através de seus órgãos. Porém ele não possui um poder repressivo ilimitado, até para que abusos não sejam cometidos, motivo pelo qual traz a Constituição Brasileira regras garantidoras da dignidade da pessoa humana e da liberdade individual a serem observadas, como será, a seguir, demonstrado. Nesse sentido, pode-se conceituar o Direito Processual Penal como sendo um “conjunto de normas e princípios que regulam a aplicação jurisdicional do Direito Penal objetivo, a sistematização dos órgãos de jurisdição e respectivos auxiliares, bem como da persecução penal” 100.
Do conceito acima exposto, pode-se inferir que o Processo Penal tem como finalidade, além de garantir a paz social, concretizar a pretensão punitiva do Estado face à prática de um delito, observando as garantias jurisdicionais. Nos dizeres de Fernando Tourinho, “sua finalidade é tornar realidade o Direito Penal” 101. Assim, enquanto a Constituição traz normas garantidoras dos direitos e garantias fundamentais do homem, o Processo Penal viabiliza que essas garantias tornem-se realidade, para que não sejam desrespeitadas nem mesmo frente à ânsia e ao clamor popular pela punição do autor dos mais terríveis delitos.
Feita essa brevíssima explanação a cerca do processo penal, de fundamental importância para a devida compreensão dos direitos de um acusado, deve-se tratar das garantias que devem ser observadas pelos julgadores.
5.1. O PROCESSO PENAL COMO GARANTIA
Como já acima exposto, não pode o Judiciário, através da figura do magistrado, condenar e aplicar pena ao suspeito por certo crime, sem antes observar determinadas regras e procedimentos, agindo por mero impulso ou pela necessidade de, imediatamente, apresentar uma resposta à sociedade, deixando, por isso, de instaurar o devido processo para apuração dos fatos. Assim, existem garantias para evitar que um juiz aja arbitrariamente, da forma que melhor lhe convier e satisfizer os seus desejos, com o fim de evitar o cometimento de arbitrariedades, as quais são imprescindíveis a todo Estado Democrático de Direito.
Ora, não pode existir um poder sem limites. Caso contrário, face à ausência de qualquer limitação, seu titular certamente cometeria abusos e agiria de acordo com seus impulsos, nada podendo ser feito contra tais atitudes, o que acarretaria transtornos imensuráveis a toda sociedade. Sempre deve haver limitações, moderando a atuação dos detentores do poder. E é assim que o Princípio da Legalidade apresenta-se um imperativo indispensável à limitação do poderio estatal em toda democracia, não sendo ninguém obrigado a fazer aquilo o que a lei não determinar. Sim, os ditames legais devem ser seguidos, constituindo-se a lei em um instrumento de controle à atuação estatal.
Como dito, é ao Estado que cabe, no exercício da função jurisdicional, aplicar uma pena abstratamente prevista no Código Penal ao autor de determinado delito. Apenas o juiz pode condenar qualquer indivíduo, não cabendo, em hipótese alguma, à população e nem mesmo à mídia (como vem sendo feito, através de acusações infundadas ou por demais excessivas, sem o respeito das devidas garantias), tal papel. Isso iria de encontro a todos os preceitos legais norteadores do Estado de Direito.
Assim, para que um indivíduo seja condenado, e, consequentemente, cominada a ele uma penalidade, deve ser instaurado um processo em seu desfavor, o qual observará diversas regras e seguirá uma seqüência de atos, para que não deixe de ser respeitada a sua honra, bem como os seus direitos fundamentais. Ninguém pode ser privado de sua liberdade, a não ser por meio de um processo, e nesse sentido dispõe o consagrado princípio nulla poena sine iudicio (o que equivaleria a dizer que a pena só se aplica por processo).
Respaldando o posicionamento acima manifestado, afirma José Frederico Marques que:
“O Estado não pode fazer prevalecer de plano o direito de punir (...) nos Estados submetidos à lei e ao direito, a pena só se aplica ‘processualmente’. A atividade punitiva dos órgãos estatais encarregados de restaurar a ordem jurídica violada pelo crime submete-se a um controle jurisdicional a priori, em que o Poder Judiciário aplica a norma penal objetiva mediante a resolução de uma lide consubstanciada no conflito entre o direito de punir e o direito de liberdade” 102.
De todo o exposto, pode-se inferir que o Processo Penal não objetiva apenas aplicar penas aos acusados. Muito mais: ele visa proteger os indivíduos dos arbítrios e excessos do judiciário através do conjunto de atos a serem seguidos e de regras a serem observadas. Nessa seara, todo cuidado deve ser tomado, porque está em jogo a liberdade de um indivíduo, bem supremo e constitucionalmente inviolável, nos termos do art. 5º, caput, da Constituição Federal.
E é nesse sentido que se defende ser o Processo Penal um instrumento de garantia para o réu. Se ele não existisse, se limites e regramentos não houvesse, verdadeiras atrocidades e abusos poderiam ser cometidos contra o acusado, a exemplo da aplicação de penalidades e decretações de prisões não fundamentadas. Assim, afirma Vicente Greco que:
“O processo é uma garantia ativa porque, diante de alguma ilegalidade, pode a parte dele utilizar-se para a reparação dessa ilegalidade. Nesse sentido, existe a garantia do habeas corpus, contra a violação do direito de locomoção sem justa causa, o mandado de segurança, contra a violação do direito líquido e certo não amparado por habeas corpus, a garantia geral da ação, do recurso ao Judiciário etc. O processo diz-se como garantia passiva porque impede a justiça pelas próprias mãos, dando ao acusado a possibilidade de ampla defesa contra a pretensão punitiva do Estado, o qual não pode impor restrições da liberdade sem o competente e devido processo legal. Ainda, é o processo garantia passiva quando impede a justiça privada, isto é, garante que a submissão ao direito de outrem não se fará por atividade deste, mas por atividade solicitada ao Judiciário, que examinará o cabimento e a legitimidade de tal pretensão” 103.
Através do Processo Penal, o réu tem direito a um julgamento e a uma decisão justa, respeitando-se o seu direito de defesa antes de ser proferida a sentença. E, assim, serão atendidos os anseios e clamores sociais pela efetividade da justiça e garantida a necessidade de as demais pessoas viverem livremente em segurança, sem que, para tanto, haja desrespeito aos valores morais e direitos constitucionalmente fundamentais do acusado. Nos dizeres de Alexandre Wunderlich:
“Daí a relevância do modelo garantista de democracia constitucional proposto por Luigi Ferrajoli. No modelo do garantismo penal (...) há uma notória relação de reciprocidade entre as duas esferas de garantias, que valem não somente por si mesmas, isoladamente, mas também, conjuntamente, como garantia recíproca de sua efetividade. As garantias são imprescindíveis tanto no plano estrutural como no plano funcional. As garantias substanciais só serão efetivas quando forem objeto de uma instrumentalidade na qual sejam asseguradas ao máximo a legalidade penal e processual penal, a imparcialidade, a veracidade e o controle. Segundo Luigi Ferrajoli “la correlación biunívoca entre arantías penales y procesales es el reflejo del nexo específico entre ley y juicio en matéria penal.” Quando o conflito chega à justiça retratado em infração com dignidade penal, é porque merece ser solucionado à luz de um modelo de garantias que se legitima como um sistema de poder mínimo, no plano político, capaz de minimizar violência e de maximizar liberdade “104.
Visualizando-se o processo como garantia nesta ótica, não se deve, jamais, colocar o poder repressivo do Estado acima das garantias individuais, de forma que os direitos sejam tutelados, sem deixar de, ao mesmo tempo, combater a irracionalidade e os excessos dos poderes. Assoma-se a isso o fato de ser possível inferir, a partir da leitura dos princípios fundamentais, uma noção de direito penal mínimo, o qual deverá ser utilizado em último caso, depois de esgotados os demais meios de controle social. Defende Vladimir Aras que:
“Para que esse tormento não se torne excessivo, nem desnecessário, a ponto de ofender a dignidade da pessoa humana; para que o processo não se poste como indesejável ameaça à liberdade ou - aí de fato uma grave ameaça - à harmonia social, é preciso, pois, reduzir sua abrangência ao estritamente necessário, àquele mínimo imprescindível para a segurança coletiva. Quanto menos processos penais houver, mais saudável será a sociedade. Quanto maior a salubridade social, menos crimes existirão. Não é que o Estado deva deixar de proceder à persecução criminal quando isto pareça adequado e essencial, mas que a maior parte do esforço estatal seja destinada à prevenção e à profilaxia dos fatores criminógenos” 105.
O referido autor mostra-se contrário à idéia do direito penal máximo, o qual geralmente fundamenta-se na necessidade de intensa intervenção face ao medo e à insegurança que atormentam a paz social. Completando a sua linha de raciocínio, de forma a evitar que se entenda defender ele posição de que jamais deve o Estado intervir em hipótese alguma, diz que:
“A atuação máxima do direito criminal acaba por desacreditar todo o sistema de justiça penal, seja pela reconhecida ineficiência do Estado, seja pela sempre presente cifra negra da criminalidade, seja porque os instrumentos penais de privação de liberdade perderam de há muito o caráter intimidativo geral ou preventivo; e não são de modo algum reeducativos (como deveriam), reduzindo-se somente ao aspecto retributivo, de pena-castigo, tão ao gosto das massas conduzidas por setores pouco responsáveis dos media. (...) A virtude, então, está no meio-termo. Nem o direito penal máximo nem a eliminação do direito penal. Que se utilize o processo como meio de defesa social, mas que não se inviabilize o homem. Que se maneje a norma ou o procedimento eficazmente, mas que não se torture a consciência do indivíduo já sujeito às agruras da acusação” 106 (grifos nossos).
Nunca é excessivo destacar que o indivíduo é um sujeito no processo e não a materialização de um objeto processual, motivo pelo qual a intervenção penal, bem como o julgamento de um acusado, deverão sempre lastrear-se nos ditames legais e na racionalidade, seguindo os padrões éticos para que a dignidade do mesmo não seja suplantada. Ada Pellegrini também é partidária do mesmo ideal, defendendo que:
"O garantismo não colide com a eficiência da justiça penal, sendo aliás, esses dois os valores fundantes do novo processo penal, no mundo inteiro. Devem-se buscar novas técnicas que façam do processo um instrumento adequado à realidade subjacente, efetivamente voltada aos fins da jurisdição, que são fins jurídicos (a eficaz atuação do direito material), mas também fins sociais (a pacificação) e políticos (a participação e justiça).107"
Os direitos individuais, destacadamente a honra, são limitações à atuação estatal, pois o réu, como qualquer outro cidadão, é titular de direitos prioritários e autônomos. Dessa forma, mais do que ser um instrumento da justiça, deve o processo constituir-se em um meio de garantia da dignidade do acusado, de seus direitos humanos fundamentais, a exemplo da liberdade, da vida e da honra, dentre outros, ratificando, materialmente, as garantias trazidas pela Magna Carta brasileira, de forma que os princípios constitucionais sejam efetivados através do Processo Penal.
5.2. GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO PENAL
Como já reiteradamente afirmado, é característica ínsita a todo Estado Democrático de Direito a salvaguarda dos direitos e garantias fundamentais. Assim, chegaria a surpreender se não houvesse regras e princípios a serem observados pelo Processo Penal brasileiro, os quais objetivassem evitar o desrespeito aos postulados básicos da democracia. Nesse sentido, trouxe a atual Constituição regramento direcionado a impedir o cometimento de excessos ou desmandos no Processo Penal, o qual sempre deve ser seguido por todos os operadores do direito.
Como instrumento protetor da liberdade individual, o Processo Penal deve pautar-se nas regras constitucionalmente estabelecidas, caso contrário a sua finalidade não será concretizada. Nos dizeres de Luigi Paolo:
“Mencionadas garantias, sob um aspecto genérico, são instrumentos técnicos-jurídicos que estejam em condições de converter o direito reconhecido ou atribuído, em abstrato, pela norma, em um direito efetivamente protegido em concreto, e, portanto, suscetível de plena atuação ou reintegração se violado. Além disso, elas são fundamentais e invioláveis no contexto dos direitos e das liberdades pessoais do indivíduo” 108.
Para que uma decisão justa seja alcançada, o processo tem de seguir as condições garantidoras da regularidade e da legalidade, pois não basta apenas prezar pelos direitos fundamentais, sendo também de grande importância zelar pelo regular trâmite processual, até para que futuras argüições de nulidades sejam evitadas. Assim, cabe ao Estado, através do magistrado, assegurar a efetividade de todos os critérios legalmente estabelecidos, de forma a assegurar a adequada composição dos interesses conflitantes na questão. Dispõe Vladimir Aras que:
“Neste sentido, não há como desconsiderar, por primeiro, os princípios fundamentais do Estado brasileiro para a boa aplicação do Direito Penal neste País. Só assim será possível alcançar, na prática, um verdadeiro Estado democrático de Direito, tanto mais quando muitos dos diplomas em vigor no Brasil são anteriores à Lei Magna de 1988, que reformulou muitos conceitos, estabeleceu institutos processuais democráticos, materializou outros tantos e introduziu uma verdadeira carta de direitos no seu art. 5º. Quando se cuida de processo penal, ou seja, da concretização do jus puniendi do Estado em confronto com o jus libertatis do indivíduo, ganham importância, em especial, as diretrizes inseridas no art. 1º, incisos II e III, da Constituição Federal, respectivamente, a "cidadania" e a "dignidade da pessoa humana". Com efeito, não se pode conceber um processo penal que não tenha como norte a idéia da dignidade da pessoa humana, de cidadania, tanto da vítima e de seus familiares, quanto do indiciado, réu ou sentenciado" 109.
Em seu corpo, o texto constitucional traz normas reguladoras do processo que consistem em um “conjunto de garantias constitucionais que, de um lado, asseguram às partes o exercício de suas faculdades e poderes processuais e, de outro, são indispensáveis ao correto exercício da jurisdição” 110. Logo, dispõe a Constituição brasileira, em seu art. 5º, incisos XXXIX, XXXV, LIII e LIV, respectivamente, que: “não há crime sem lei anterior que o defina”; “a lei não excluirá da apreciação do judiciário lesão ou ameaça de a direito”; “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente; e “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
Há todo um regramento garantidor da concretização do devido processo legal111, sendo válido destacar a garantia do juiz natural (art. 5º, XXXVII e LIII), o contraditório e a ampla defesa (art. 5º, LV), a par condicio (igualdade das partes, art. 5º, I), a presunção de inocência do acusado (art. 5º, LVIII), a publicidade e o dever de motivação das decisões (art. 5º, LX e 93, IX), dentre outras.
Frise-se que existem outras garantias decorrentes do devido processo legal, a exemplo do direito à prova, não estando todas elas expressas no texto constitucional. Há ainda as garantias derivadas dos tratados internacionais em que o Brasil é parte integrante, nos termos do disposto pelo art. 5º, parágrafo 2º. Foi louvável a atitude do constituinte ao cristalizar os meios de defesa contra atos arbitrários da autoridade pública investidos contra o cidadão, inserindo na Magna Carta brasileira postulados basilares ao regular trâmite processual e à preservação dos direitos fundamentais.
Entretanto, na prática, é raro observar-se a efetivação de todas as garantias constitucionais, continuando os aplicadores do direito a pautar-se no Código Penal, material dogmático já ultrapassado, anacrônico e sucateado se comparado ao inovador, detalhista Código de Processo Civil. Nos dizeres de Chouke:
“Isto faz com que haja uma certa acomodação em posições antigas, muitas vezes pouco críticas e desproblematizantes. Nem mesmo após a Constituição Federal de 1988 ter operado uma verdadeira ‘revolução copérnica’ dentro do processo penal, inserindo novas garantias ou explicitando antigas o quadro sofreu alteração desejada. Na verdade, a prática revela uma realidade sombria, a de se procurar adaptar a Constituição ao texto processual penal, e não o oposto” 112.
Não cabe, no bojo deste trabalho, elencar, nem muito menos conceituar, todas as garantias trazidas pela Constituição de 1988. Logo, foram tecidas essas brevíssimas considerações sobre o tema, indispensáveis à compreensão do papel que atualmente vem sendo desempenhado pela mídia, bem como à compatibilização da publicidade processual com a atuação da imprensa e a garantia do devido processo legal.
5.3. PUBLICIDADE DOS ATOS PROCESSUAIS PENAIS
Há muito, já defendia o Marquês de Beccaria, na célebre obra Dos Delitos e das Penas, “que os julgamentos sejam públicos e públicas as provas do delito, para que a opinião, que talvez é o único cimento da sociedade, ponha um freio às forças e às paixões, para que o povo diga ‘não somos escravos, somos protegidos’” 113. O passar dos anos não fez com que a afirmação do referido autor ganhasse conotações de antiguidade. Ao contrário, embora feita no passado, ela condiz, perfeitamente, com os atuais postulados da democracia.
Sabe-se que é pressuposto de todo Estado Democrático de Direito a soberania popular, com a efetiva participação do povo nos atos e decisões dos poderes estatais. Mas, para que isso ocorra, devem ser públicos os atos de governo, maneira eficaz de garantir que o disposto no art. 1º, parágrafo único, da CF, 114 seja concretizado. Assim, dentre as garantias constitucionais, é de suma importância tecer alguns comentários sobre o princípio da publicidade, apresentando-se este como um dos mais importantes no âmbito do Processo Penal, face às suas variadas e relevantes funções. Estes esclarecimentos serão de grande valia para o estabelecimento de limites à atuação da mídia no que tange à publicação descomedida de fatos criminosos, bem como de atos judiciais.
Preconiza o princípio da publicidade, cláusula pétrea constitucional, que todos os atos processuais deverão ser públicos. Entenda-se esta última expressão não apenas no sentido de estarem os atos disponíveis aos sujeitos processuais, quais sejam, as partes (incluindo-se aqui os terceiros interessados) e seus advogados, dentre os demais membros integrantes da atuação judiciária, pois ela é muito mais abrangente. Assim, qualquer pessoa, tendo ela ou não interesse no fato, no resultado ou na decisão final, tem o direito de conhecer o assunto em questão. A respeito da atual conotação do princípio ora tratado, diz Ana Maria que:
“A origem dessa concepção contemporânea da publicidade encontra-se na luta política contra o antigo regime despótico, no qual os juízes atuavam secretamente nas mais intrincadas formas dos processos inquisitivos, praticando torturas, emitindo decisões arbitrárias e parciais, fazendo do processo penal, nas palavras de Ferrajoli, ‘una especie de ciencia de los horrores” 115.
No Direito Pátrio, vigora, como regra, a publicidade absoluta, de forma que as audiências e sessões, bem como a realização dos atos processuais em geral, estejam abertas ao conhecimento de todo o público. Dessa forma, não há como se falar em publicidade se o ato realizado for sigiloso, não acessível ao povo. Frise-se que o princípio da publicidade bifurca-se em duas vertentes, referindo-se uma delas às partes116 (interna, a qual garante a possibilidade do exercício do contraditório e da ampla defesa) e a outra a terceiros (externa, entendida como a real publicidade), esta última de maior relevância para este trabalho, visto que, através dela, torna-se possível o controle da atuação judicial.
Tamanha a importância desse princípio que CF, em seu art. 93, inciso IX, dispõe que "todos os julgamentos do Poder Judiciário serão públicos e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade” (omissis), pois a atuação sigilosa (infundada) atinge “o próprio interesse público de correta aplicação do direito” 117. Nesse mesmo sentido, consagra o art. 792. do CPP, in literes:
Art. 792 - As audiências, sessões e os atos processuais serão, em regra, públicos e se realizarão nas sedes dos juízos e tribunais, com assistência dos escrivões, do secretário, do oficial de justiça que servir de porteiro, em dia e hora certos, ou previamente designados.
§ 1º - Se da publicidade da audiência, da sessão ou do ato processual, puder resultar escândalo, inconveniente grave ou perigo de perturbação da ordem, o juiz, ou o tribunal, câmara, ou turma, poderá, de ofício ou a requerimento da parte ou do Ministério Público, determinar que o ato seja realizado a portas fechadas, limitando o número de pessoas que possam estar presentes.
Do exposto, infere-se que a sociedade tem a garantia de tomar conhecimento de todos os atos processuais, os quais não podem ser realizados em segredo, salvo algumas justificadas exceções. A lei visa garantir a possibilidade de qualquer pessoa acompanhar o trâmite de um processo, independentemente de eventuais limitações físicas por ausência de espaço nos locais de realização das audiências. Essa ampla publicidade, entretanto, sofre, às vezes, algumas limitações. O próprio § 1º do artigo acima transcrito traz um caso de publicidade restrita ou limitada118, o que também é feito pelo art. 5º, LX da CF, estabelecendo que “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”.
Tratam-se de situações excepcionais em que a ampla publicidade poderá, eventualmente, carrear problemas e prejuízos às partes ou até mesmo ao justo deslinde do processo, motivo pelo qual, coerentemente, fixou o legislador tais restrições119. Destaque-se que existem outras exceções à publicidade processual, não cabendo, porém, elencar todas neste trabalho.
Apresenta-se a publicidade como uma valiosa garantia individual (e até mesmo social), ao dispor que os processos civis e penais têm de ser, em regra, públicos, mostrando-se esta como uma das modalidades de controle dos órgãos julgadores, visto que “a manifestação pública do processo constitui a forma mais vigorosa de exteriorização dos atos da justiça” 120. Dessa forma, fica mais fácil evitar o cometimento de abusos e limitar as maneiras opressivas de castigar os infratores, por restar possível o controle sobre a atuação do Estado-juiz e do Ministério Público, motivo pelo qual existe um fortíssimo elo entre a democracia no processo e a publicidade.
Segundo Jorge Figueireido Dias, “a publicidade é uma maneira de dissipar quaisquer desconfianças que se possam suscitar sobre a independência e a imparcialidade com que é exercida a justiça penal e são tomadas as decisões” 121. Por uma justiça pública, assegura-se a correta subsunção da norma penal ao caso concreto e legitima-se a atuação do Estado-julgador.
Cumpre destacar que, hodiernamente, a publicidade não se realiza e nem cumpre as funções acima expostas somente através do acesso popular às audiências (publicidade imediata, a qual está consagrada na legislação brasileira, a exemplo do já referido art. 792. do CPP), até porque, salvo nos casos que despertam grande comoção social, geralmente encontram-se vazias as salas onde as mesmas são realizadas. Assim, atualmente, prevalece, indiscutivelmente, a publicidade mediata, veiculada pela mídia, restando a esta o papel de tornar públicos os atos processuais penais, levando-os ao conhecimento de todos os destinatários e espectadores dos meios de comunicação de massa.
A possibilidade de relatar ao público os atos processuais penais através da crônica jornalística (publicidade extraprocessual) encontra fundamentação na liberdade de imprensa e no direito de qualquer cidadão ser informado a respeito da atuação judiciária. Entretanto, esses fundamentos não servem de sustentáculos para a exacerbada divulgação dos atos, capaz de ferir a dignidade e a honra do acusado, o que vem sendo feito pela imprensa. Frise-se: a divulgação legal e legítima é aquela condizente com as finalidades do Processo Penal, respeitando-se os direitos e garantias fundamentais do argüido. A publicidade extraprocessual não é parte integrante da natureza e da estrutura do processo, estando ligada à mídia e aos meios de comunicação massivos.
Tamanha é a intromissão da imprensa nos casos criminais por ela considerados importantes que Jorge Raúl Monteiro afirma que a justiça penal desenvolve-se formalmente por um quadrilátero, composto pela acusação, pela defesa, pelo tribunal e pelo público122. Entretanto, na sistemática brasileira, não cabe admitir esse quadrilátero citado pelo autor, pois, no aspecto formal, o processo desenvolve-se apenas entre as partes e o juiz, assomando-se a isto o fato de ter a lei tão somente facultado a presença e o conhecimento do público a cerca dos atos processuais, e não a interferência ou participação ativa neles.
Assim, como crítica ao princípio ora em análise, aponta-se a grande margem de abertura para o cometimento do mais deplorável dos malefícios aos direitos humanos e fundamentais de um cidadão, qual seja, a possibilidade de haver, através da publicidade, a exploração fantasiosa, exacerbada ou sensacionalista de fatos levados a discussão no Judiciário, notavelmente no tocante ao cometimento de crimes. Entretanto, não se negue ser a crônica judiciária a grande responsável por levar ao público o conhecimento do processo.
É à mídia que cabe informar a população sobre a criminalidade e a atuação da justiça criminal, esclarecendo quais as causas geradoras dos delitos, para que as pessoas tenham capacidade de valorar as condutas não aceitas socialmente, o que, inegavelmente, contribui para a remoção das referidas causas quando possível for, bem como para a prevenção geral da criminalidade. Ela facilita o entendimento popular dos fatos pelo uso de linguagem simples, entrevistas, imagens televisivas ou fotografadas, dentre outros artifícios, decodificando a terminologia processual, que muitas vezes apresenta-se rígida e excessivamente técnica, não passível de entendimento por parte dos leigos.
Porém, a referida crônica, por sua própria natureza, não está acobertada pelo manto da neutralidade e passa ao espectador, quase sempre, a visão do cronista sobre os fatos, sua interpretação e posicionamento. Seguindo este raciocínio:
“Como não é neutra, pois está determinada por certa seleção de percepções fundadas em razões psicológicas, pessoais e morais do cronista, além dos inegáveis interesses das empresas detentoras dos meios de comunicação, a que já nos referimos, os seus excessos deverão submeter-se às providências que tomará o juiz para fazer cessar os danos da má publicidade dos processos” 123.
Os inadequados meios de a mídia publicar fatos criminosos e processos, nos dizeres de Glauco Giostra “não podem resultar em renúncia à publicidade. O problema da informação judiciária está em garantir a publicidade e garantir-se da publicidade (má), ou seja, estabelecer quais as condições necessárias para assegurar que ela seja correta”124.
Um jornalismo que atue dentro de preceitos éticos e morais constitui-se em importante instrumento na efetivação da função informadora, transmitindo conhecimentos, e até mesmo prevenindo crimes através de campanhas sociais. Seria integrado por profissionais verdadeiramente preocupados com o devido exercício de suas funções, os quais agiriam em respeitos às regras norteadoras de suas atividades, sempre respeitando os princípios democráticos, sobretudo a dignidade das pessoas. Se assim o fosse, a sociedade viveria dentro dos atributos da inalcançável perfeição. Entretanto, muitas vezes, as notícias não são fiéis aos fatos, apresentando-se incompletas e até mesmo distorcidas, como dito. Assim, limites urgem ser respeitados e estabelecidosdo informar, transmitir conhecimentos e atmportos fatos criminosos, para que a mesma tenha capacidade de valorar as condutas no.
5.4. A TIPICIDADE: ELEMENTOS OBJETIVOS E SUBJETIVOS DO TIPO
Antes de adentrar na proteção jurídico-penal da honra, cabe tecer brevíssimas considerações a cerca da tipicidade e seus elementos. Como já afirmado, o Estado brasileiro rege-se pelo princípio nullum crimen nulla poena sine praevia lege. E é justamente dele que decorre a tipicidade penal, como uma garantia de que determinada ação só poderá ser considerada criminosa se encaixar-se em um molde125 previamente estabelecido, qual seja, o tipo penal126. Este, sucintamente, pode ser entendido como o conjunto de todos os elementos integrantes do fato punível penalmente previsto, ou, nos dizeres de Bitencourt, “um modelo abstrato que descreve um comportamento proibido (...), inadimitindo-se a adequação de uma conduta que não lhe corresponda perfeitamente (...), cuja ausência não pode ser suprida por analogia ou interpretação extensiva” 127.
Daí emerge constituir-se a tipicidade na adequação da conduta praticada pelo agente ao tipo penal descrito na lei. Trata-se de uma correspondência da ação ao tipo, pois “um fato, para ser adjetivado de típico precisa adequar-se a um modelo descrito na lei penal, isto é, a conduta praticada pelo agente deve subsumir-se na moldura descrita na lei” 128.
Na descrição da conduta típica, encontra-se implícita uma valoração da ação praticada. Dessa forma, pode-se afirmar que o tipo compõe-se não apenas por elementos objetivos e normativos, mas também de elementos subjetivos, os quais, não menos importantes, também apresentam fundamental importância quando da verificação do enquadramento do fato ao molde legal.
Os elementos objetivos são aqueles passíveis de identificação pela simples utilização dos sentidos, referindo-se, geralmente, a coisas, objetos, animais e seres, dentre outros atos que podem ser percebidos através dos sentidos. Já os normativos são os que exigem a realização de uma valoração para a sua correta compreensão, não lhes sendo suficiente a mera atividade de cognição. A título de exemplificação, podem-se citar algumas expressões encontradas nos tipos do CP, tais como “fraudulentamente” (art. 177), “indevidamente” (arts. 162, 316, 319, etc.), “decoro” (art. 140) e “sem justa causa” (arts. 153, 244, 246, etc.), dentre outras, que exigem a realização de um juízo de valor para o adequado entendimento.
Os subjetivos referem-se aos “dados ou circunstâncias que pertencem ao campo psíquico-espiritual e ao mundo de representação do autor” 129. São constituídos pelo dolo (elemento subjetivo geral) e pelo tipo subjetivo (elemento subjetivo especial). O primeiro é a vontade e a consciência de praticar determinada ação e provocar certo resultado, definição extraída do disposto no art. 18, I do CP130. Já o segundo refere-se a diversas características subjetivas que especificam o dolo e compõem o tipo (motivo pelo qual é também denominado dolo específico), de forma que “o especial fim de agir que integra determinadas definições de delitos condiciona ou fundamenta a ilicitude do fato, constituindo, assim, elemento subjetivo do tipo de ilícito, de forma autônoma e independente do dolo” 131. Ao passo em que o dolo tem de materializar-se na conduta típica, os elementos subjetivos especiais prescindem de concretização, bastando a existência deles no psiquismo do autor132.
Existem inúmeras espécies de elementos subjetivos do tipo, não cabendo, aqui, tecer a classificação de todas elas. Entretanto, deve-se apontar a existência dos chamados delitos de tendência, nos quais a conduta do agente encontra-se envolvida por certo ânimo de agir, cuja ausência impossibilita a caracterização do crime. Neles, fatores outros que não somente a vontade do autor são levados em consideração para análise do fato, alguns, inclusive, inconscientes. Defende-se que:
“Não se exige a persecução de um resultado ulterior ao previsto no tipo, senão que o autor confira à ação típica um sentido (ou tendência) subjetivo não expresso no tipo, mas dedutível da natureza do delito (ex.: o propósito de ofender – arts. 138, 139, 140, CP; propósito de ultrajar – art. 212, CP)” 133.
Neste caso, não se exige um especial fim de agir, um objetivo a ser especificamente alcançado (ex.: “para si ou para outrem” – art. 157; “com o fim de obter” – art. 159, todos do CP), como nos delitos de intenção, mas apenas o ânimo de praticar o fato típico. Como acima exposto, inserem-se os crimes contra a honra nesses delitos de tendência, necessitando, assim, os autores dos mesmos agir com o ânimo de ofender para que ocorra a tipificação do fato.
5.5. CRIMES CONTRA A HONRA: CONCEITUAÇÃO E TIPIFICAÇÃO
A legislação pátria cuidou de tipificar as condutas desrespeitosas a certos direitos da personalidade, no intuito de prevenir, e até mesmo evitar, o cometimento de excessos capazes de ferir as garantias personalíssimas dos indivíduos, caracteres inerentes à pessoa humana, integrantes de sua essência, motivo pelo qual merecem total atenção. Nesse sentido, agiu muito bem o legislador, não deixando ao arbítrio da consciência de cada um o respeito à dignidade dos indivíduos, pois estabeleceu limites ao livre-arbítrio necessários à convivência pacífica em sociedade.
O tipo penal possui funções, dentre as quais é válido destacar a indiciária e a de garantia. Pela primeira, é ele estabelece quais são as condutas consideradas penalmente ilícitas, já que a prática de um fato típico traz indícios de que a atuação do indivíduo foi infringente ao Direito134. De acordo com a segunda, que é decorrência do princípio da reserva legal, toda pessoa tem a possibilidade de saber, antes da prática, se determinada conduta é punível ou não.
Certo é que existe proteção legal contra o cometimento de ofensas à honra das pessoas na legislação brasileira, o que se apresenta como grande garantia à reputação e à honra dos indivíduos. Nos dizeres de Regis Prado:
“A honra é o bem jurídico mediatamente atingido pela ofensa; mas o bem jurídico imediatamente protegido é a pretensão jurídica ao respeito que o Direito assegura a todos, diretamente violada nos delitos contra a honra. Ofendida a pretensão ao respeito, a honra, em qualquer de seus aspectos, é também lesada, embora isso não seja imprescindível para a consumação do delito” 135.
Jamais deve ser aceita, em hipótese alguma, a alegação de que não existe prática de crime contra honra em relação àquele que já é, por qualquer motivo, desonrado. Além de a lei prever a prova da exceção da verdade, com algumas exceções, não há no direito constitucionalmente estabelecido, nenhuma exclusão de criminosos, infames, prostitutas, dentre outros, da proteção dos direitos fundamentais. Logo, nem por assim o serem, essas pessoas geram o direito para que terceiros venham expor publicamente suas honras.
No Brasil, a honra é penalmente protegida através da tipificação dos crimes de calúnia, difamação e injúria. Constitucionalmente, é garantida pelo direito de resposta e indenização por dano moral e material. Também há previsões nesse sentido no Código Eleitoral (Lei 4.737/64) e na Lei de Imprensa (Lei 5.250/67), entretanto, elas equivalem aos tipos inseridos no Código Penal136, não havendo, assim, necessidade de análise de todos eles, o que soaria redundante.
Nos dizeres de Noronha, “não há distinção entre os crimes de imprensa e os comuns; não são eles delitos sui genesis, mas tão somente crimes cometidos por um meio próprio” 137. Preponderantemente, os crimes de imprensa integram-se e consumam-se através da publicidade realizada pela mídia (jornais, revistas, rádios, televisores, dentre outros), cujas divulgações extrapolam os restritos limites da convivência social das pessoas em suas pequenas esferas de relacionamentos. A respeito da temática, observem-se os seguintes posicionamentos:
“Consoante o art. 12. da Lei de Imprensa, estão sujeitos ao regime da mesma aqueles que, através dos meios de informação e divulgação praticarem abusos no exercício da liberdade de manifestação do pensamento e informação." (STF– HC – RT 55/441. Relator: Ministro Moreira Alves). (Grifos nossos).
“O que caracteriza o delito de imprensa é terem as ofensas obtido divulgação, através dos meios de comunicação" (TACrimSP – Apelação Criminal - RT 550/328. Relator: Demer de Sá).
"Responde por crime de imprensa e não por crime do art. 139. do CP aquele que difama outrem em entrevista, destinada intencionalmente a ser divulgada por jornal". (STF – Habeas Corpus – RT – 569/396. Relator Alfredo Buzaid – RT – 569/396)138.
Neste trabalho, não será feita uma análise pormenorizada de toda a dogmática dos crimes contra a honra previstos no Código Penal. Assim, será estabelecida a conceituação dos mesmos e tecidas breves conceituações que se fizerem necessárias. Diz o CP, no capítulo atinente a eles:
Calúnia: Art. 138. - Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime (omissis):
§ 1º - Na mesma pena incorre quem, sabendo falsa a imputação, a propala ou divulga.
Difamação: Art. 139. - Difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação (omissis).
Injúria: Art. 140. - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro (omissis).
Exclusão do Crime: Art. 142. - Não constituem injúria ou difamação punível (omissis):
II - a opinião desfavorável da crítica literária, artística ou científica, salvo quando inequívoca a intenção de injuriar ou difamar;
Todos eles são crimes formais, motivo pelo qual não se exige a concretização da ofensa, mostrando-se apenas suficiente uma conduta que, analisada conjuntamente aos demais elementos necessários, configure a prática delitiva. De acordo com esse entendimento, está o Desembargador Nauro Collaço, que dispôs em um julgamento de habeas corpus, que:
“Os crimes de calúnia, difamação e injúria são formais, sendo que os dois primeiros consumam-se quando um terceiro toma conhecimento da imputação ofensiva. O de injúria quando a ofensa chega ao conhecimento do ofendido. São crimes, no entanto, conexos, prevalecendo, por isso, para a competência, a regra do artigo 78, II, letra a, do CPP." (TJSC - Habeas corpus nº. 9.447/Blumenau. Relator: Desembargador Nauro Collaço).
No tocante aos elementos subjetivos nos crimes contra a honra, existem três correntes. A primeira, de pouca aceitação na Jurisprudência brasileira, defende ser o elemento subjetivo nos crimes contra honra uma mera consciência do caráter ofensivo da conduta praticada. A segunda aponta para a necessidade da presença do dolo de dano (nele, o ato é praticado com o propósito de causar dano à honra – dolo direto, ou assume o agente o risco de causar este dano – dolo eventual). Pela terceira, a tipificação depende de algo mais do que o dolo de dano: depende de um elemento subjetivo do injusto. Essa última é de maior aceitação na doutrina e jurisprudência pátrias.
Nos dizeres de Hungria:
“Pode-se, então, definir o dolo específico de crime conta a honra como sendo a consciência e a vontade de ofender honra alheia (reputação, dignidade ou decoro, mediante linguagem falada, mímica ou escrita). É indispensável a vontade de injuriar ou difamar, a vontade referida ao ‘eventus sceleris’, que é, no caso, a ofensa à honra” 139.
Também adepto dessa posição, afirma Fragoso que “o propósito de ofender integra o conteúdo dos fatos dos crimes contra a honra. Trata-se do chamado ‘dolo específico’, que é elemento subjetivo do tipo inerente à ação de ofender” 140. Noronha manifesta-se nesse mesmo sentido, ao afirmar que:
“Não nos parece se possa prescindir do ‘animus diffamandi’, da vontade de ofender, da intenção de denegrir, etc. Não basta, pois, que as palavras sejam aptas para ofender, é mister que sejam proferidas com esse fim. Logo, é imperativo o propósito de ofender como elemento subjetivo do tipo” 141.
Do exposto, já é possível inferir que os crimes contra honra são todos eles de dolo específico, o significa afirmar que, em todos eles, deverá existir o propósito de ofender do autor, essencial para a análise da ocorrência ou não do delito. Portanto, para o estudo dos mencionados crimes, será aplicada a teoria do animi, segundo a qual há grande necessidade da verificação da intenção ofensiva do autor do fato criminoso, o que será analisado adiante, em tópico específico.
Importante, ainda, destacar que os delitos contra a honra concretizam-se independentemente de expressa referência nominal ao sujeito passivo. Para tanto, basta que seja feita designação que torne possível a identificação dele, mesmo que apenas no âmbito de suas relações profissionais, pessoais e sociais (e não a toda a população). Observe-se a transcrição de parte deste aresto:
“O delito contra a honra se caracteriza independentemente da expressa referência nominal do sujeito passivo. Basta que aflore suficiente a designação que torne possível sua identificação, ainda que na limitada esfera de suas relações pessoais, profissionais ou sociais". ("Crime de Imprensa" João Carlos Menezes).
(TJSC – Apelação Criminal nº. 48.349. Relator Desembargador Alcides Aguiar. 4ª Câmara. Data do julgamento: 03/04/1997).
Nesse mesmo sentido:
“CRIME DE IMPRENSA. DIFAMAÇÃO. IMPUTAÇÃO DE FATOS CONCRETOS OFENSIVOS À HONRA ALHEIA, EM ARTIGOS JORNALÍSTICOS ONDE HOUVE A TROCA DO NOME DA VÍTIMA POR ALCUNHAS QUE PERMITIAM FÁCIL IDENTIFICAÇÃO. CONFIGURAÇÃO: - CONFIGURA O CRIME DE DIFAMAÇÃO, PREVISTO NO ART. 21, "CAPUT", DA LEI DE IMPRENSA, A PUBLICAÇÃO DE ARTIGOS JORNALÍSTICOS QUE IMPUTAM FATOS CONCRETOS ATINGINDO A HONRA ALHEIA, NOS QUAIS HOUVE A TROCA DO NOME DA VÍTIMA POR ALCUNHAS QUE PERMITIAM FÁCIL IDENTIFICAÇÃO, SENDO IMPOSSÍVEL O ACOLHIMENTO DA ALEGAÇÃO DE QUE SE TRATAVA DE MERA CRIAÇÃO FICCIONAL SE O AUTOR DOS ESCRITOS PROCUROU APENAS DISFARÇAR, COM O INTUITO DE EVITAR A SUA RESPONSABILIZAÇÃO CRIMINAL”.
(TACrimSP – Apelação Criminal nº. 1203315/7. Relator: Desembargador Ivan Marques. Data do julgamento: 07/06/2000).
A honra objetiva é maculada através da imputação de fatos, ao passo em que a subjetiva refere-se a qualidades, predicativos das pessoas, sendo por meio de distorções desses fatores atingida. Logo, fácil verificar que, nos crimes de calúnia (a imputação deve ser falsa) e de difamação, ofende-se a honra objetiva da vítima, por imputação de fato criminoso ou não, respectivamente, (na difamação normalmente há imputação de fatos amorais ou de contravenções ofensivos à reputação, sejam eles verdadeiros ou não)142.
A calúnia143 e a difamação consumam-se quando a conduta ofensiva chega ao conhecimento de terceiro, que não o próprio ofendido. Já a injúria consuma-se quando o ataque à honra chega ao conhecimento do próprio ofendido, mesmo não estando este presente no momento da ação, pelo fato de ela tutelar, como já dito, a honra subjetiva dos indivíduos.
No que tange à calúnia, estabelece o § 1º, do art. 20, da Lei de Imprensa, que “incorrerá na mesma pena aquele que, sabendo que a imputação é falsa, reproduz a publicação ou transmissão caluniosa”. Assim, somente ficarão os reprodutores livre do referido crime, caso seja a reprodução bastante fiel e não demonstradora de má fé.
A difamação, por sua vez, caracteriza-se pela imputação de fato apto a causar dano a outrem, seja este verdadeiro ou não. Assim, o dolo desse crime consiste em “imputar” fato danoso a alguém, qualquer que seja a forma empregada nesse afã (palavra oral, escrita, por meio simbólico etc.). Imprescindível, porém, é a presença do animus diffamandi (intuito de ofender a honra alheia).
Já a injúria protege, subjetivamente, a honra ao incriminar a ofensa à dignidade ou ao decoro de outrem144. Nela também se exige o dolo de dano, seja ele direto ou eventual, desde que esteja consubstanciado no ânimo do indivíduo de causar dano à honra da vítima (em seu aspecto subjetivo). Assim, deve estar presente na pessoa ação da pessoa o elemento subjetivo do tipo, responsável por imprimir seriedade à conduta.
No tocante aos crimes contra a honra, há entendimento no sentido de que, levando-se em consideração a prática de um mesmo fato, haverá absorção de um crime pelo outro. Entretanto, em contrapartida, há posicionamentos segundo os quais esses crimes podem ser praticados em concurso material, em continuidade delitiva, ou, ainda, em concurso formal. Isso se, através de uma mesma ação, vier o autor a cometer duas práticas criminosas. Nesse sentido, posicionou-se o Desembargador Paulo Gallotti, em um dos seus julgados:
"CRIMES CONTRA A HONRA - LEI DE IMPRENSA - DIFAMAÇÃO E INJÚRIA - NOTA DIRIGIDA CONTRA PARLAMENTAR, ATRIBUINDO-LHE A PRÁTICA DE PLÁGIO, ACOMPANHADA DE EXPRESSÕES OFENSIVAS - DELITOS CARACTERIZADOS - CONCURSO FORMAL DE CRIMES RECONHECIDO - ADEQUAÇÃO DA PENA. Se, com uma mesma ação, o agente pratica dois crimes, é de ser reconhecido o concurso formal (art. 70, CP), aplicando-se a pena mais grave, se diversas, ou somente uma delas, quando idênticas, acrescida, em qualquer caso, de um sexto".
(TACrimSP - Apelação Criminal nº. 97.009428/0 - SP. Relator: Desembargador Paulo Gallotti. Data do julgamento: 04/11/1997).
Feitas essas considerações a respeito dos tipos protetores da honra, parte-se, em seguida, para a análise do atual conflito entre direitos igualmente fundamentais.