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Primeiras impressões sobre a Lei nº 12.830/2013.

Investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia

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27/06/2013 às 09:56
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A Lei nº 12.830/13 é um bom instrumento de aprimoramento e garantia de uma investigação criminal isenta e de qualidade. As garantias dispostas ao Delegado de Polícia no exercício de seu cargo não são pessoais, assim como não o são as garantias dos magistrados e promotores.

1-PRELÚDIO

Em meio a toda uma polêmica sobre a questão da titularidade da investigação criminal no sistema processual penal brasileiro, vem a lume a Lei 12.830/12 que dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo Delegado de Polícia.

Tendo em vista o contexto em que surge a referida legislação faz-se necessário salientar o entendimento deste autor acerca da celeuma criada sobre a investigação criminal levada a efeito pelo Ministério Público ou outras instituições.

Em primeiro lugar é preciso ressaltar que o só fato de existir esse dissenso entre as instituições, essa divisão deletéria dos organismos estatais que têm em comum a missão de assegurar a legalidade, a liberdade e outros bens jurídicos tutelados, é altamente lamentável.

Embora o que se vá dizer neste momento já se tenha tornado uma espécie de bordão que beira ao clichê, nunca é demais lembrar que enquanto o Estado se divide o crime se organiza ou, se não chega a se organizar, ao menos cada infrator cuida de assegurar sua impunidade sem se preocupar em denegrir ou atrapalhar os outros, o que já é uma grande vantagem!

A nova lei remexe em duas questões básicas, uma mais genérica e outra específica, quais sejam:

a) A questão da exclusividade das Polícias Civil e Federal para a investigação criminal (genérica);

b) O problema da possibilidade ou não de investigação criminal capitaneada pelo Ministério Público (específica).

Antes, portanto, de entrar no estudo dos dispositivos da Lei 12.830/13 é preciso abordar, ainda que sucintamente, esses questionamentos e dar-lhes respostas adequadas.

Quanto à questão da exclusividade da atribuição para a investigação criminal, já é razoavelmente assentada sua inexistência. Mesmo no que tange à Polícia Federal para a qual é prevista a “exclusividade” do exercício da função de Polícia Judiciária da União, não se pode olvidar a existência de outros órgãos com poderes investigatórios, inclusive criminais. A exclusividade dada à Polícia Federal é a do exercício de “Polícia Judiciária” e não necessariamente o de exercer todas as investigações possíveis no âmbito federal. Trocando em miúdos, não pode haver outra “Polícia Judiciária” da União, mas não se diz nada a respeito do exercício de investigações criminais por outros órgãos, desde que legalmente previstas e reguladas.

Sem pretender que a legislação ordinária se sobreponha à constitucional, o que seria o cúmulo do absurdo, é preciso acenar com o artigo 4º., Parágrafo Único, CPP que estabelece “in verbis”:

“A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria.

Parágrafo Único – A competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função”. [1]

Não se trata de sobrepor o Código de Processo Penal à Constituição Federal, mas simplesmente de constatar que a Carta Magna não traz em seu bojo qualquer impedimento à recepção do dispositivo supra transcrito. Dessa maneira, torna-se cristalino que não há exclusividade estabelecida nem na Constituição, nem na legislação ordinária para a atividade de investigação criminal.

É apenas uma questão de fato que as Polícias Judiciárias dos Estados e da União realizam a grande maioria senão por vezes a totalidade das investigações criminais, o que pode dar essa aparência enganosa de exclusividade. Mas, isso não se refere à lei e sim à estrutura estatal das instituições. Se o que ocorre de fato tivesse o condão de moldar a interpretação legal, então, por exemplo, nossa execução penal seria regida pelo “Princípio da Desumanidade” (sic); a população não teria direitos à saúde, educação e segurança pública de qualidade; o uso e posse de drogas estaria permitido, senão também seu comércio; o Jogo do Bicho não seria contravenção; a administração pública seria regida pelo “Princípio do Desperdício” (sic), da “Ineficiência” (sic) e, quem sabe, da “Improbidade” (sic).

Por outro lado é preciso reconhecer que o Fato influi e deve influir no Direito, aliás, como já desde antanho têm apontado as teorias culturalistas onde se encontram as abordagens tridimensionais (1940) tais como, em solo pátrio, a de Miguel Reale. [2] Assim também é preciso trazer à baila a linha de pensamento do “Realismo Jurídico”, defendida entre outros pelo Dinamarquês Alf Ross. [3]

Chama-se a atenção para esse ponto porque o fato de que a grande maioria das investigações seja realizada pelas Polícias Judiciárias, não só no Brasil, mas em todo o mundo. O fato de que em qualquer lugar que seja dotado de um processo penal minimamente garantista e eficiente existe uma fase pré – processual de filtro para futura ação penal, na qual há intensa participação da Polícia Judiciária, está a apontar clara e induvidosamente para a relevância e imprescindibilidade dessa instituição, sem necessariamente significar que seja ela, por lei, incumbida com exclusividade da investigação.  

Essa observação, por incrível que pareça, precisa ser feita porque em meio a uma verdadeira guerra de vaidades institucionais (e a vaidade ou orgulho é um pecado capital)  tem sido comum o ataque belicoso, calunioso e falseado que dá a entender que as Polícias Judiciárias não são relevantes ou não cumprem com suas funções, apresentando outras instituições (v.g. o Ministério Público) como supostos “salvadores da pátria”.

É sintomático desse estado de coisas o nível rasteiro que se tem imprimido às discussões acerca da PEC 37, por exemplo, apelidando-a de “PEC da Impunidade”. Nessa guerra de vaidades a ira (outro pecado capital) que obnubila o pensamento faz com que se olvide a existência de presídios e cadeias superlotados de condenados pela Justiça Criminal, condenações estas que advieram de investigações criminais, em sua quase totalidade, levadas a efeito pelas Polícias Judiciárias. Também obscurece a consciência de que há milhares e milhares de Mandados de Prisão a serem cumpridos, que se o fossem imediatamente, nem sequer haveria espaço físico para acomodar tantos condenados. Mandados estes também, em sua quase totalidade, oriundos de investigações produzidas pelas Polícias Judiciárias. De que impunidade se estaria falando então? Talvez da imensa cifra negra constatada pelos estudos de criminologia? Sim, há muitos crimes que ocorrem e sequer são investigados, mas não o são pela Polícia, nem pelo Ministério Público ou quaisquer outros órgãos. A Cifra Negra é um fenômeno fisiológico do Sistema Penal no Brasil e no mundo que pode ser conceituado como "um campo obscuro da delinqüência", consistindo na "existência de um bom número de infrações penais, variável segundo a sua natureza, que não seria conhecido 'oficialmente', nem detectado pelo sistema e, portanto, tampouco perseguido". [4]  Ou seria da chamada cifra dourada, que "representa a criminalidade de "colarinho branco", definida como práticas anti - sociais impunes do poder político e econômico (a nível nacional e internacional), em prejuízo da coletividade e dos cidadãos e em proveito das oligarquias econômico - financeiras"? [5] Mas, novamente se trata de sintoma encontrável na fisiologia de qualquer Sistema Criminal. Sintoma este de responsabilidade não somente da natureza seletiva ínsita ao Direito Criminal, mas também das próprias instituições que compõe todo o sistema de persecução penal, não somente as Polícias Judiciárias, mas também as Polícias Preventivas, o Ministério Público e o Judiciário, afora outras instâncias sociais e governamentais.

Se há, como realmente há, uma imensa cifra negra e outra dourada, mesmo que se considere, por exemplo, que o Ministério Público não possa investigar, assim como ocorre induvidosamente com o Judiciário pelos Princípios da Inércia e da Imparcialidade, qual seria a justificativa para que esses órgãos, diante de tal situação não exerçam seus poderes incontestes de requisição e então solucionem essa lacuna?

Por outro lado, se o Ministério Público pode investigar e o tem feito, inobstante as variadas discussões a respeito da legitimidade de sua atuação, então por que essas cifras não se reduzem? Por que eminente e tradicional político paulista investigado diversas vezes pelo Ministério Público e até preso provisoriamente segue impune, livre e acobertado pelo Princípio da Presunção de Inocência? O que aconteceu, por exemplo, nesse caso? Qual foi a diferença entre a suposta incapacidade das Polícias Judiciárias e os especiais dotes dos órgãos de investigação do Ministério Público? Por que nem a Polícia, nem o Ministério Público conseguiram prender definitivamente ou condenar? Talvez pela inocência? Talvez pela incompetência generalizada, onde o roto fala do esfarrapado? Talvez pela extrema astúcia do infrator? Sabe-se lá!

A vaidade e a ira cegam ao ponto em que as instituições, como se diz popularmente, “dão tiros nos próprios pés”. Senão vejamos: quando se afirma que a investigação pela Polícia Judiciária não é eficiente ou suficiente, pretendendo jogar nas costas largas desse órgão toda responsabilidade por mazelas seculares, o que permanece oculto é que um Inquérito Policial, por exemplo, tem andamento o tempo todo sob os olhos do Ministério Público e do Judiciário. Pelo menos de trinta em trinta dias o Inquérito passa pelo Fórum com pedido de dilação de prazo, quando o Ministério Público tem vista dos autos, bem como o Judiciário. Tanto o Ministério Público como o Judiciário têm poderes de “controle externo” (o primeiro) e correicional (o segundo) sobre a Polícia Judiciária. Então, se a investigação criminal por parte da Polícia Judiciária não anda bem, se é mal direcionada, se apresenta indícios de parcialidade, se é morosa sem justificativa plausível, a culpa é somente da Polícia Judiciária? Onde fica a parcela de responsabilidade do Judiciário e do Ministério Público nessa situação? Por que ela é simplesmente afastada dos debates? Por que um órgão como o Ministério Público vem se apresentar como o “salvador da pátria” se investigar, quando já tem em suas mãos poderes para requisitar, para colocar investigações eventualmente descarriladas em seus devidos trilhos por meio do controle externo? E, principalmente, por que não faz isso já que é o “salvador da pátria”? A verdade é que longe, muito longe de expressar a velha cantilena das antigas missas em latim “mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa”, hoje, pessoas e instituições preferem a chamada “Filosofia de Homer Simpson”: “se a culpa é minha, eu ponho em quem eu quiser”!

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De outra banda o Ministério Público, no que diz respeito à probidade administrativa e ao combate a crimes e irregularidades da administração pública tem um instrumento poderoso na Ação Civil Pública e no Inquérito Civil, onde não há qualquer sombra de dúvida quanto ao seu poder investigatório. É dotado de instrumentos aí bem mais eficientes para o combate da corrupção e isso já há muitos e muitos anos. Então por que não solucionou ainda essas questões? Por que boa parte dos Inquéritos Civis são arquivados sem base sequer para iniciar a ação? Por que muitas ações redundam em nada? Será a instituição incompetente (no sentido vernacular)? Será inquinada por vícios como a corrupção? Em meio às discussões onde se perde o norte devido à vaidade e à ira, é comum essa espécie de troca de farpas em que os dois lados saem lascados e têm a ilusão de estarem ganhando alguma coisa ao denegrirem e serem denegridos. Alguém já disse que na guerra não há vencedores jamais, mas ninguém aprende nunca!

Há corrupção, negligência, ingerência política e incompetência na Polícia? Sim. Há corrupção, negligência, ingerência política e incompetência no Ministério Público? Sim. Há corrupção, negligência, ingerência política e incompetência no Judiciário? Sim. E nos demais órgãos governamentais que se podem envolver em apurações criminais é diverso? Não.

Essas afirmações significam então que as instituições mencionadas são corrompidas? São um prenúncio apocalíptico? É claro que não. Qualquer instituição humana tem suas falhas e mazelas. Quando esses órgãos que deveriam atuar em conjunto em busca da satisfação da Justiça e da defesa da sociedade passam a se digladiar com ofensas recíprocas, usando novamente de um dito popular, estão a “cuspir para cima” e é em si mesmos que toda a gosma vai cair e escorrer.

Cria-se inclusive um clima de desinformação que rapidamente se expande pela massa ignara e leiga quanto aos trâmites de uma persecução penal ao ponto de que dia desses este autor presenciou uma entrevista em que um popular, contaminado pela mais profunda ignorância, ao ser indagado sobre o poder investigatório do Ministério Público, formulou em resposta uma pergunta digna de um beócio:

“Mas, se o Ministério Público não puder investigar, então quem vai investigar”? (sic).

Ora, quem sempre investigou: a Polícia!  Quem investiga naquele momento em que a pergunta – resposta é formulada! Isso dá uma ideia da situação de absoluta imbecilização em que se encontra a população diante dessa questão. Imbecilização produzida pela disseminação de informações desencontradas intencionais de parte a parte sem a mínima intenção de esclarecer, mas sim de obscurecer cada vez mais a consciência das pessoas.

O clima criado por ambas as partes é de parcialidade, de postura defensiva e, o que é pior, de disseminação de informações inverídicas, de criação de um clima de terror, de falsificação da realidade com rascunhos de paraísos e infernos artificiais que somente iludem os leigos, criam imbecis engajados em causas sobre as quais somente têm informações distorcidas. O debate fica preso na questão de quem deve ou pode investigar, enquanto problemas muito mais relevantes são deixados de lado. Essas questões dizem respeito às condições dadas à investigação, seja ela levada a efeito por quem quer que seja.

Um exemplo típico de embate inútil, mas mais que isso, contraproducente mesmo, é a ideia de tornar o Inquérito Policial um pressuposto necessário para o Processo Criminal, diversamente do que hoje ocorre quando uma das características desse procedimento é sua dispensabilidade. Este autor é Delegado de Polícia, mas não é imbecil e, acima de tudo, é estudioso do Direito e cidadão brasileiro. Por isso não compreende como pode prosperar uma ideia como essa, que somente pode trazer mais morosidade ao que já é moroso por natureza. Se hoje um Promotor, tendo em mãos informações necessárias para ofertar denúncia (indícios suficientes de autoria e prova do crime), pode elaborar sua peça e esta ser recebida, sem a formalidade de ter de primeiro requisitar um Inquérito Policial, o qual será despachado pela Autoridade Policial, registrado em livros, autuado e relatado para depois retornar ao Fórum, numa perda de tempo de aproximadamente uns 3 meses, por que se iria criar essa espécie de obstáculo agora? Este autor quando recebe por vezes requisições de Inquéritos Policiais em que a prova é meramente documental e já está produzida integralmente com totais condições de denúncia direta pelo Ministério Público, sente uma profunda melancolia pela perda de tempo e recursos que desse procedimento automatizado resulta. E querem transformar isso em lei! Pelo amor de Deus!

Mas, tudo isso é fruto de uma guerra de vaidades, de uma busca insensata para legitimar e demonstrar a utilidade das instituições envolvidas quando, na verdade, é insofismável a importância de todas elas. Quem pode questionar a utilidade da Polícia em geral e da Polícia Judiciária em particular? Ou do Ministério Público? Ou do Judiciário? Há uma irracionalidade que perpassa todo esse embate de egos pessoais e institucionais, irracionalidade essa comum a qualquer desentendimento sem justificativa que, na linguagem policial tem recebido um nome interessante: “desinteligência”. É realmente um nome muito bom para isso tudo. Uma grande, ingente “desinteligência” no sentido mesmo da falta de inteligência que contamina e domina por todos os lados. É a burrice imperando com sua imponência de orelhas compridas e apontadas para o céu longínquo, onde devem estar as virtudes necessárias para sua superação, longe, bem longe...

A Polícia quer exclusividade nas investigações, o Ministério Público quer investigar. Não é que a Polícia esteja com sobra de recursos humanos e materiais para a execução de seus fins, prescindindo de qualquer auxílio, nem que o Ministério Público esteja dando conta tão sobejamente de todas as suas variadas funções a ponto de estar sobrando tempo, recursos humanos e materiais para se imiscuir em investigações criminais. Não, nada disso. Mas, cada um se agarra doentiamente ao seu naco de suposto poder e retesa os músculos e range os dentes.  

Cada um dos contendores se apresenta como o portador de um “mundo melhor”, de uma “solução miraculosa” para todos os males que assolam a pátria.

Neste ponto é preciso recordar que sempre que alguma pessoa ou grupo se intitulou como “salvador da pátria”, como “portador da fórmula para um mundo melhor”, o que resultou não foi nenhuma salvação e nada de bom. Esse é sempre o começo para a concentração de poderes em alguém ou em alguma instituição e, em seguida, para a destruição de todo o edifício de garantias individuais existentes ou pretendidas. Os exemplos históricos são abundantes: líderes carismáticos como Adolf Hitler, Mao Tse Tung, Fidel Castro, Josef Stalin, Vladimir Ilitch Lênin, Benito Mussolini ou instituições como a Igreja na Inquisição; o Partido Comunista na antiga União Soviética; o Exército Vermelho na União Soviética; o Khmer Vermelho de Pol Pot no Camboja; o Partido Nazista, Nazi ou Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, dentre outros. O resultado é sempre o mesmo: concentração de poder, abuso, violações de Direitos Humanos, morte, destruição. Por isso, um conselho sábio: quando alguém ou alguma instituição aparecer na sua frente dizendo que vai construir um mundo melhor, fuja como o demônio foge da cruz, se esconda debaixo da cama, faça qualquer coisa, mas jamais acredite bovinamente nessa espécie de discurso.

Como já externado em outro trabalho, [6] este autor não considera adequada a investigação criminal conduzida pelo Ministério Público por uma série de questões de ordem puramente jurídica, as quais se enumera a seguir sem adentrar em desenvolvimento que não cabe neste momento:   

a) O óbice da legalidade consistente no fato concreto de que não existe lei alguma que regule essa espécie de investigação. É indefensável pretender que uma Resolução (Resolução 13/06 do Conselho Nacional do Ministério Público) possa fazer as vezes de “lei” processual penal, a qual é de competência privativa da União através de “Lei Federal” (artigo 22, I, CF). Portanto, não se pode admitir que um órgão estatal de tamanha relevância e dignidade atue à margem da lei e da Constituição, ou seja, atue “marginalmente”. E não se pode imaginar que eventual arrimo constitucional para esse suposto poder investigatório ministerial seja suficiente para que o órgão o coloque em prática sem uma lei que o regulamente. É sabido, até por um jejuno primeiro anista de Direito, que a Constituição Federal não é Código de Processo Penal. Se essa atribuição pode ser extraída do texto constitucional, então se deve primeiro promulgar uma lei que regulamente a investigação ministerial para depois poder realizá-la de forma legítima.

b) A questão da imparcialidade, consistente no fato de que em um sistema acusatório ideal é desejável que sejam separadas as quatro funções da persecução penal, quais sejam: investigação, acusação, defesa e julgamento. Então é desejável que um órgão isento faça a investigação, outro formule a convicção sobre a denúncia ou não, outro exercite a plena defesa e um último profira a decisão do caso. A confusão de funções cria desequilíbrio e exige do homem (v.g. do Promotor) aquilo que somente se pode esperar de deuses. E tem sido muito comum que o mesmo Promotor que investiga formule a peça acusatória e siga no processo até o fim. Note-se, inclusive, que isso entra em colisão com disposição expressa do Código de Processo Penal vigente. Segundo o artigo 252, II, CPP, o Juiz fica impedido de processar e julgar uma causa onde tenha atuado anteriormente na qualidade de Autoridade Policial. Pois bem, as mesmas normas de impedimento e suspeição servem para o Ministério Público nos termos do artigo 258, CPP. Portanto, se o Promotor era Delegado do mesmo caso, não pode nele atuar. Por que poderia investigar na qualidade de Promotor e ele mesmo acusar? Seria a Súmula 234 do STJ um permissivo, na medida em que afirma que a “participação” do membro do Ministério Público na fase investigatória não o impede ou torna suspeito para a denúncia? A resposta óbvia é que não. A Súmula trata somente da participação, pois que o Ministério Público sempre “participa” da fase investigatória (v.g. manifestações em pedidos de prazo durante todo o andamento do feito; manifestações em prisões provisórias e outras medidas cautelares; requerimentos de diligências ou cautelares na fase investigatória; eventuais acompanhamentos de diligências policiais tais como interrogatórios e oitivas de testemunhas juntamente com o Delegado que preside o feito; acompanhamento facultativo previsto na Lei de interceptações telefônicas quanto a essas diligências etc.). Mas, “participar” não é o mesmo que “conduzir” ou “presidir”, muito menos ser a Autoridade Policial ou alguém que atua tal e qual.

Essas parecem ser as duas principais motivações jurídicas para o impedimento de uma investigação ministerial no atual estado da arte da legislação brasileira.

Não obstante, se algum dia for satisfeita a legalidade, ou seja, promulgando-se uma legislação autorizadora e reguladora da Investigação Ministerial, não se vê qualquer óbice a que mais um órgão atue na repressão à criminalidade. Agora, um requisito que se considera imprescindível é que o Promotor que investiga não seja o mesmo que formula o juízo de convicção para a acusação ou arquivamento e muito menos o que prossiga no processo.

Por que ao invés de perpetuar esse embate retratado, por exemplo, na PEC 37, visando impedir o Ministério Público de investigar, não se concentram as forças em legalizar essa investigação, em normatizá-la adequadamente, inclusive prevendo seus limites e controles externos? Por que não se prevê legalmente e se institucionaliza a viabilidade de investigações paralelas entre as Polícias Civil e Federal e o Ministério Público ou em conjunto, sempre preservando a imparcialidade deste último, mediante o impedimento para o futuro processo. A previsão de atuações conjuntas e a formação de eventuais “forças – tarefa” para casos mais complexos seria muito bem vinda, ensejando uma aproximação das instituições no interesse público, ao reverso da atual situação de hostilidades recíprocas.

Seria uma legislação como essa prejudicial às investigações já levadas a efeito à fórceps pelo Ministério Público? Não. Bastaria que fosse prevista sua aplicação “ex nunc”, validando as investigações já realizadas e inclusive reconhecidas como legítimas pelo STF. Embora este autor discorde dessa posição do Pretório Excelso, o fato é que ela existe e, portanto, pode salvar a investida do Ministério Público na seara investigativa, procedida, na visão deste subscritor, de forma ilegal. Mas, a visão deste subscritor não apaga as decisões do STF.

Ainda nessa toada de correção de rumo no debate sobre a investigação criminal seria de grande interesse público que o enfoque pudesse finalmente ser voltado para, como já se afirmou acima, as condições de investigação e não para quem deve ou pode investigar. Nesse passo, as instituições e pessoas que a compõem deviam unir esforços e não se digladiar. Deveriam usar de toda sua força política para ensejar a melhoria das condições materiais, pessoais e de garantias a todo aquele incumbido da presidência de uma investigação criminal. Esse esforço deve ser conjunto porque o interesse é comum, mais que isso, visa o bem comum.

É preciso otimizar os recursos humanos e materiais da Polícia Científica para que cada vez mais as perícias possam trazer elementos para a elucidação criminal e cada vez menos o suspeito seja tomado como fonte de extração de provas e informações.  Todos os órgãos incumbidos da investigação criminal precisam ter pessoal suficiente para conduzir com qualidade seus trabalhos, devendo inclusive ser-lhes oportunizada uma formação contínua com treinamento, especializações, centros de apoio operacional etc. É imprescindível investir em inteligência, na formação de uma rede de informações disponível para todos os órgãos policiais e investigativos de forma compartilhada e alimentada conjuntamente, bem como de abrangência nacional e não compartimentalizada em cada órgão policial ou unidade da federação.

Finalmente, faz-se mister que se tome consciência de que ao invés de contrapor aos Delegados de Polícia a fragilidade da falta de garantias asseguradas ao Ministério Público e ao Judiciário para o exercício de suas nobres e árduas funções, se deveria empreender uma incansável luta para a conquista dessas mesmas garantias, a fim de que a investigação criminal, seja levada a efeito por quem quer que seja, tenha condições de estar liberta de ingerências e pressões externas. Não obstante, tenha-se em mente o fato de que não são garantias que formam o caráter das pessoas. Um covarde treme oculto num “bunker” indevassável somente premido pelo barulho das bombas que estouram lá fora sem a mínima chance de atingi-lo.  Um corrupto se vende, sempre por mais do que vale, mesmo recebendo um estipêndio nababesco para o exercício correto de suas funções. Mas, mesmo assim, as garantias constitucionais estabelecidas aos Juízes e Promotores em muito poderiam colaborar para ensejar uma atuação mais segura e tranquila das Autoridades Policiais, o que certamente redundaria num trabalho de investigação melhor, já que exercido com enfoque somente na investigação em si e não ainda tendo de driblar pressões e ingerências de todas as espécies, afora os riscos já ínsitos à atividade policial.

Dessa forma, não é com a ruptura e o dissenso, mas com a união em torno de boas condições para a prática investigatória que se deve trabalhar, usando do poder de convencimento, da influência política (no bom sentido) dos órgãos policiais, ministeriais e do judiciário, irmanados para a consecução do bem comum.

É com esse espírito que se passa a seguir a analisar os dispositivos da novel Lei 12.830/13.

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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Primeiras impressões sobre a Lei nº 12.830/2013.: Investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3648, 27 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24794. Acesso em: 19 abr. 2024.

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