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Primeiras impressões sobre a Lei nº 12.830/2013.

Investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia

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27/06/2013 às 09:56
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2-BREVES COMENTÁRIOS SOBRE A LEI 12.830/13

“Art. 1º. Esta Lei dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia”.

Ao contrário do que se poderia defender na continuidade de uma interminável e irracional “desinteligência” sobre a titularidade e exclusividade da investigação criminal no Brasil, entende-se que o dispositivo sob comento deixa claro que não está a revogar tacitamente por incompatibilidade o Parágrafo Único do artigo 4º., CPP antes transcrito neste texto. Não há previsão de exclusividade da investigação criminal pelo Delegado de Polícia. Muito ao reverso, ao afirmar a lei que ela dispõe sobre “a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia” e não que dispões sobre o Inquérito Policial ou a investigação criminal, após indicando seu único possível presidente como sendo o Delegado, está a indicar mais que cristalinamente que outras espécies de investigações podem existir paralelamente à policial presidida pelo Delegado. Isso também se afere pela redação da sua ementa quando afirma: “Dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia”. Ora, se essa lei dispõe sobre a investigação conduzida pelo delegado especificamente só pode ser porque existem ou podem existir outras modalidades de investigações conduzidas por outras autoridades.

Assim sendo, embora com as reservas quanto à investigação criminal pelo Ministério Público acima já expostas, há que se concluir que a Lei 12.830/13 não é óbice à regulamentação futura por lei federal da investigação ministerial ou de outro órgão qualquer criado para tanto. [7]

Em suma, entende-se que a Lei 12.830/13 disciplina alguns aspectos importantes de uma espécie do gênero investigação criminal, que é aquela conduzida por Delegado de Polícia. Essa espécie de investigação criminal, seja através do Inquérito Policial, seja por meio do chamado Termo Circunstanciado, é a mais comumente vista, mas não é a única viável em nosso ordenamento jurídico, nem o passa a ser com o advento da legislação ora comentada.

“Art. 2º. As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado”.

Num primeiro aspecto é assustador que se viva num país onde é necessária uma lei para dizer o óbvio. Mas, é assim mesmo. Quanto mais atrasado o grau de civilização mais necessidade se tem de regulamentar milimetricamente a tudo. Precisamos, por exemplo, que um Estatuto nos diga que devemos respeitar os idosos, as crianças e os adolescentes. Necessitamos de uma lei que nos indique que a violência doméstica contra a mulher é uma aberração que merece reprimenda. Olhando por esse prisma até que não é tão deprimente que tenha sido necessária tanta discussão e a edição de legislação para reconhecer em texto legal a natureza jurídica da atividade do Delegado de Polícia. Ora, de que outra natureza poderia ser essa atividade exercida exclusivamente por Bacharéis em Direito? De qualquer forma é fato que agora está posto em lei e também na Constituição do Estado de São Paulo em seu artigo 140.

Outra obviedade que foi necessário transcrever em letra de lei é que a atividade de Polícia Judiciária exercida pelo Delegado é “essencial” tal como ocorre com a advocacia, com o Ministério Público e com o Judiciário. A essencialidade da atividade de Polícia Judiciária se demonstra por si mesma no dia a dia, no Direito Comparado, onde não se encontra lugar civilizado que não seja dotado de uma Autoridade de Polícia Judiciária. A função de apuração das infrações penais e auxílio ao Judiciário no exercício, por exemplo, de cumprimento de Mandados de Prisão e outras diligências é obviamente essencial. Mas, agora, já que vivemos sob o jugo de uma ignorância endêmica com a qual alguns se aprazem, é bom que a lei tenha deixado isso bem claro.  

Finalmente, o dispositivo estabelece que as funções de polícia judiciária e apuração de infrações penais exercidas pelo Delegado de Polícia “são exclusivas de Estado”. É aqui determinada a indelegabilidade dessa função a particulares, à iniciativa privada, o que, diga-se de passagem, seria o cúmulo do absurdo. Seria mesmo inimaginável que a atividade de investigação criminal pudesse ser exercida num futuro medonho por empresas particulares, ainda que sob concessão estatal. Trata-se de função típica de Estado da qual não se pode abrir mão jamais.

É interessante, porém, notar que a Lei 12.820/13 não entra em colisão com a existência dos chamados “Detetives Particulares”, pois que suas prerrogativas são bastante limitadas e nunca puderam se sobrepor ou mesmo coexistir paralelamente às atribuições da Polícia Judiciária.  

“§1º. Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais”.

Esse parágrafo reforça a tese já bem estruturada com o advento da Lei de Drogas (Lei 11.343/06 – artigo 48, § 4º.), de que a expressão “Autoridade Policial” se refere ao Delegado de Polícia Civil ou Federal, sendo os demais policiais “Agentes da Autoridade”. Afinal, na Lei de Drogas, a elaboração do Termo Circunstanciado é deferida à “Autoridade de Polícia Judiciária” que jamais pode ser outra senão o Delegado de Polícia. [8] Dessa forma o § 1º. acima transcrito reforça esse entendimento, impedindo que o Inquérito Policial ou o Termo Circunstanciado sejam presididos por outros policiais como, por exemplo, as Polícias Militares, Rodoviárias etc. [9]

Mas, nem mesmo esse § 1º. tem o poder de conceder exclusividade ao Delegado de Polícia quanto à investigação criminal em geral. Ele deve ser interpretado sistematicamente com o artigo 1º. e a própria ementa da lei, conforme acima já consignado. E essa interpretação não colide com a alegação supra do impedimento do exercício de investigação de Polícia Judiciária por parte de outros órgãos policiais, tais como a Polícia Militar, eis que a tal conclusão se chega por interpretação e aplicação da norma constitucional pertinente, qual seja, o artigo 144, CF, que determina claramente as atribuições de cada órgão policial, não havendo previsão de atividade de polícia judiciária para outros órgãos que não as Polícias Civil e Federal.

Assim sendo, é admissível que uma legislação venha a regular, por exemplo, a investigação criminal ministerial, mas não o é para uma eventual investigação criminal levada a efeito pela Polícia Militar, pela Polícia Rodoviária Federal ou pela Polícia Ferroviária. Para isso seria necessário mudar a Constituição primeiro. No que tange ao Ministério Público a questão é de imprevisão constitucional e inexistência de legislação ordinária permissiva e regulamentadora. Quanto às demais policiais antes citadas o problema é que a própria Constituição lhes limita claramente o âmbito de atuação. O óbice constitucional expresso à investigação ministerial inexiste. Ele pode derivar da busca de um processo acusatório ideal, mas isso pode ser contornado pela regulamentação cautelosa da lei ordinária, impedindo o Promotor – Investigador de atuar como Promotor – Acusador ou aquele que forma ou afasta a “opinio delicti”, preservando a imparcialidade do “parquet”.

“§2º. Durante a investigação criminal, cabe ao delegado de polícia a requisição de perícia, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos”.

Esse § 2º. não traz nenhuma grande novidade ao mundo jurídico, pois que trata da atividade de investigação já comumente e tradicionalmente deferida às Autoridades Policiais, inclusive nos termos dos artigos 6º.  e 7º., CPP até mais detalhadamente. O dispositivo, por óbvio, não vem a excepcionar as chamadas reservas de jurisdição constitucional e legalmente previstas. Por exemplo, continua o Delegado necessitando de ordem judicial para a realização de busca e apreensão domiciliar fora das exceções constitucionalmente previstas; o mesmo se pode dizer das interceptações telefônicas, quebras de sigilos bancário e fiscal etc.

“§3º. (VETADO)”

Na redação projetada estabelecia o § 3º. que “o delegado de polícia conduzirá a investigação criminal de acordo com seu livre convencimento técnico – jurídico, com isenção e imparcialidade”.

As “Razões do Veto” são assim expostas na Mensagem 251/13:

“Da forma como o dispositivo foi redigido, a referência ao convencimento técnico – jurídico poderia sugerir um conflito com as atribuições investigativas de outras instituições, previstas na Constituição Federal e no Código de Processo Penal. Dessa forma, é preciso buscar uma solução redacional que assegure as prerrogativas funcionais dos delegados de polícia e a convivência harmoniosa entre as instituições responsáveis pela persecução penal”.

Essa motivação da Presidência da República para o veto retrata uma consonância com o posicionamento defendido neste texto que busca uma irmanação e convivência harmoniosa entre as instituições, ao reverso de uma “quebra de braço” constante enquanto a criminalidade corre às soltas.

Efetivamente já havia comentários de que o § 3º. permitiria aos Delegados de Polícia a recusa ao cumprimento de cotas ministeriais, bem como requisições desse órgão ou mesmo judiciais, desde que com a devida fundamentação. Essa espécie de postura somente prejudica o interesse social e fomenta uma contenda medíocre e mesquinha entre as instituições. Portanto, o perigo ínsito nesse dispositivo foi em boa hora afastado pelo bem posto veto presidencial.

Não obstante, é preciso dizer que o Delegado de Polícia deverá sim atuar sempre de acordo com o seu convencimento técnico – jurídico de forma fundamentada, isenta e imparcial. Mas, isso não implica e nem mesmo que o dispositivo não houvesse sido vetado implicaria, em poder recusar-se ao cumprimento de cotas ministeriais ou de requisições ministeriais ou judiciais. A Lei 12.830/13 não poderia colidir com o Código de Processo Penal e muito menos com a Constituição Federal, onde se prevê prerrogativas ao Judiciário e Ministério Público na investigação, tais como as acima expostas.

Segundo bem expõe Sannini, comentando o então projeto:

“Considerando que o Delegado de Polícia possui uma formação essencialmente jurídica, devendo ser bacharel em Direito, sendo submetido a concursos públicos extremamente rígidos, assim como Juízes, Promotores, Defensores Públicos etc., é dever da Autoridade de Polícia Judiciária analisar o fato criminoso sob todos os aspectos jurídicos. Mais do que isso, na condução da investigação, que objetiva a perfeita elucidação dos fatos, o Delegado de Polícia pode coordenar as diligências de maneira discricionária, de acordo com a necessidade para a formação do seu convencimento sobre o caso. No mesmo sentido e reforçando o exposto nesse ponto, lembramos que a Constituição do Estado de São Paulo garante em seu artigo 140, §3°, que aos Delegados de Polícia é assegurada independência funcional pela livre convicção nos atos de polícia judiciária.

Isso não significa, todavia, que a Autoridade Policial possa se eximir de atender uma requisição feita pelo Ministério Público. Muito pelo contrário. Como titular da ação penal, o Ministério Público pode requisitar diligências que sejam imprescindíveis para o exercício desse mister. O Delegado de Polícia, por sua vez, deve acatá-las não por subordinação ao Ministério Público, mas por respeito ao princípio da legalidade, que deve pautar toda a investigação criminal”. [10]

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É bem lembrada pelo autor a independência funcional concedida aos Delegados de Polícia pela Constituição do Estado de São Paulo, segundo seu artigo 140, §3º., de forma que a livre convicção fundamentada está garantida, inclusive por norma legal, mas não implica em autorização e muito menos incentivo ao conflito entre os organismos estatais e desobediência às normas legais e constitucionais.

“§4º. O inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei em curso somente poderá ser avocado ou redistribuído por superior hierárquico, mediante despacho fundamentado, por motivo de interesse público ou nas hipóteses de inobservância dos procedimentos previstos em regulamento da corporação que prejudique a eficácia da investigação”.

O § 4º. é uma garantia do Delegado de Polícia, mas, antes de tudo, é uma garantia da sociedade, contra eventuais manipulações da fase investigatória. Pode-se afirmar que consolida um “Princípio do Delegado Natural”, assim como há o “Princípio do Juiz Natural” e, como sua derivação, ao menos segundo a maioria da doutrina e da jurisprudência, o “Princípio do Promotor Natural”.

A partir de agora a avocação ou redistribuição discricionária, sem qualquer justificativa, não pode ser levada a efeito pela hierarquia superior da Polícia Civil ou Federal. A avocação ocorre quando uma Autoridade Policial hierarquicamente superior àquela que dá andamento ao feito por atribuição natural, chama para si o Inquérito ou outro procedimento (v.g. Termo Circunstanciado) e ela mesma (autoridade superior) passa presidi-lo. Na redistribuição essa autoridade superior irá retirar do Delegado Natural o procedimento e repassá-lo a outro Delegado designado para prosseguir nas apurações. Tudo isso, a partir de agora, somente pode ser levado a termo mediante a devida fundamentação, ou seja, a indicação transparente dos motivos que levam a essa alteração da atribuição natural. Ademais, a lei já estabelece quais espécies de motivação podem justificar a avocação ou redistribuição:

a)Motivo de interesse público – a expressão é criticável porque tendente a uma polissemia, a um leque por demais amplo de interpretação. No entanto, é de se frisar que não bastará como fundamento a mera repetição da expressão “interesse público”, sendo necessário que a Autoridade superior indique concretamente os fatos que constituem esse “interesse público”, inclusive para que tal ato administrativo não seja nulo e para que possa adequadamente ser questionado no Judiciário por quem quer que tenha interesse (partes envolvidas na investigação, Ministério Público enquanto fiscal da lei e responsável pelo controle externo da polícia, Juiz Corregedor, Corregedoria Interna da Polícia, qualquer pessoa do povo).

b)Inobservância de procedimentos previstos em regulamento da corporação que prejudique a eficácia da investigação – Na verdade é perceptível que o caso ora exposto estaria abrangido pelo motivo de interesse público acima arrolado. No entanto, o legislador o previu separadamente. A norma deve ser interpretada também como um norte que não serve por si só, pela mera repetição da dicção legal, para a fundamentação do ato administrativo. No caso, a autoridade superior deverá indicar claramente qual o procedimento previsto em regulamento que está sendo inobservado e que pode trazer prejuízos concretos para a investigação. É notável que essa norma depende da conjugação com todo um aparato de normas administrativas e mesmo processuais penais que exercerão uma função de complemento. O maior cuidado a ser tomado em ambos os casos de avocação ou redistribuição consiste na tênue barreira entre a correição de condutas investigatórias inadequadas por violarem o interesse público ou infringirem normas procedimentais e a indevida intromissão na livre convicção jurídica fundamentada dos Delegados de Polícia oficiantes nos feitos respectivos. Exemplificando, não se poderá avocar ou redistribuir um feito porque não se concorda com a tipificação dada pela Autoridade Policial natural (v.g. um caso muito comum hoje da discussão em casos de acidente de trânsito com morte entre a tipificação de homicídio culposo ou doloso com dolo eventual). Outra situação que não justifica a avocação ou redistribuição é a indevida intromissão na decisão soberana do Delegado natural quanto ao ato de indiciamento, inclusive em interpretação sistemática com o § 6º. do mesmo artigo, o qual será mais adiante comentado. Em suma, a avocação ou redistribuição deve ser excepcionalíssima e levada a efeito somente em casos gravíssimos de nítido desvio de conduta funcional, atuação parcial ou outras infrações graves.

Em qualquer caso a decisão da autoridade superior estará sujeita a revisão pelo Judiciário por meio de Mandado de Segurança que pode ser manejado pelo próprio Delegado Natural, pelo Ministério Público de ofício ou mediante provocação de qualquer do povo, pelas partes envolvidas na investigação, valendo-se do Ministério Público ou mesmo de Advogado constituído. Também se entende que, embora a lei não deixe claro, o Juiz Corredor de Polícia Judiciária poderá, “ex officio” intervir no caso e, ouvido o Ministério Público, declarar nulo o ato administrativo infundado e inclusive promover, pelas vias adequadas,  a responsabilização criminal e administrativa da autoridade superior responsável. Da mesma forma a própria Corregedoria interna da Polícia poderá avaliar o ato administrativo e, se o caso, determinar, fundamentadamente sua anulação e o retorno à Autoridade natural, decisão esta que, por seu turno, também estará sujeita ao crivo do Judiciário nos mesmos termos acima descritos. Obviamente que se a Corregedoria assim entender, necessariamente irá promover também a investigação criminal e administrativa pertinente contra a autoridade superior que agiu ao arrepio da lei.

Outra questão interessante, considerando a possibilidade futura de investigação ministerial é saber se o Promotor poderia avocar ou redistribuir o feito investigatório presidido pelo Delegado Natural. A resposta não demanda maiores esforços. O Ministério Público é órgão estranho à Polícia Judiciária, tanto que é responsável tão somente por seu controle “externo”. Não há relação de subordinação ou hierarquia administrativo – funcional entre Promotores e Delegados. Dessa forma é cristalino que o Promotor jamais pode ser considerado o “superior hierárquico” de que fala a lei, não tendo poderes de avocação ou redistribuição direta. Ao Ministério Público nesses casos caberiam duas alternativas: a realização de investigações paralelas às da Polícia Judiciária ou então a provocação da autoridade hierarquicamente superior a fim de que esta, fundamentadamente, avoque ou redistribua o feito. No caso dessa segunda opção e negativa da autoridade superior, caberá ao Ministério Público, enquanto fiscal da lei e controlador externo da atividade policial, o manejo do Mandado de Segurança perante o Poder Judiciário, a provocação da atuação do Juiz Corregedor de Polícia Judiciária e inclusive da Corregedoria Interna da Polícia.

“§ 5º. A remoção do delegado de polícia dar-se-á somente por ato fundamentado”.

De nada adiantaria a garantia contra a avocação e redistribuição infundadas se houvesse a possibilidade de remoção da própria Autoridade Policial. Nesse caso bastaria trocar a mobilização do feito pela remoção da Autoridade Policial Presidente.

Portanto, o § 5º. complementa o seu antecedente e traz consigo uma importantíssima garantia que se constitui quase no ideal que seria a inamovibilidade. Pode-se afirmar que o dispositivo sob comento cria uma espécie de inamovibilidade relativa para o Delegado. Isso porque nessa carreira as promoções muitas vezes implicam em transferência, de modo que a garantia ainda pode facilmente ser driblada com ares hipócritas de benefício, mediante a promoção não requerida. Para que essa garantia se transforme um dia em efetiva inamovibilidade basta que a promoção na carreira de Delegado se dê em conformidade com o que ocorre nas demais carreiras jurídicas de Promotor e Juiz, ou seja, mediante inscrição voluntária. Hoje, mesmo com o disposto no § 5º., bastaria promover determinado Delegado e o transferir para outra unidade adequada à sua categoria para facilmente ludibriar a lei e, consequentemente, a sociedade.

Ademais, diversamente do parágrafo anterior o dispositivo não indica claramente em que deve consistir esse fundamento da remoção. Não obstante, parece que a interpretação sistemática entre os parágrafos 4º. e 5º. deve ser levada a efeito necessariamente, de modo que somente por razões excepcionais que justifiquem a remoção no interesse público concretamente demonstrado se poderá procedê-la. Esse ato estará também, como o anterior, submetido à avaliação de sua legalidade por todas as instâncias anteriormente mencionadas e mediante os mesmos mecanismos protetivos.

“§6º. O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante a análise técnico – jurídica do fato,  que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias”.

Finalmente uma norma processual trata com um pouco mais de cuidado do ato do indiciamento, promovendo uma garantia expressa ao indivíduo quanto à necessidade de sua fundamentação na penumbra do disposto no artigo 93, IX, CF. Fala-se em penumbra em alusão à teoria americana da “Penumbra Doctrine” ou “Penumbra Theory” (normalmente traduzida no Brasil como “Teoria da Penumbra”), segundo a qual as garantias constitucionais não se reduzem somente à sua expressão lingüística estrita, mas produzem uma espécie de “sombra” ou “penumbra” mais abrangente a gerar um campo de irradiação de maior amplitude do que aquele que poderia ser aferido pela simples interpretação gramatical do texto.

O marco do § 6º. sob comento tem o potencial de alterar a interpretação jurisprudencial corrente sobre a questão do indiciamento. Tem sido usual a denegação de ordens de Habeas Corpus contra atos de indiciamento com a repetição da seguinte fórmula: “o formal indiciamento não constitui constrangimento ilegal” (v.g., HC 990080856057 SP, Relator Péricles Piza, 28/11/2008). Tais decisões são acertadas e devem continuar prevalecendo, considerando o fato de que o indiciamento é o simples externar da convicção da Autoridade Policial quanto às suas suspeitas em relação à autoria delitiva, não havendo nele qualquer carga acusatória que somente se concretizará com a elaboração e o recebimento de eventual denúncia que pode inclusive jamais ocorrer, já que nem o Ministério Público, nem o Judiciário estão atrelados à convicção do Delegado de Polícia. Ocorre que em certos casos concretos pode haver sim constrangimento ilegal no ato do indiciamento. São casos extremos como, por exemplo, o indiciamento por fato claramente atípico, o indiciamento com base em tipo legal revogado com “abolitio criminis”, por crime claramente prescrito ou quando se operou obviamente a decadência etc. Agora mais um caso se assoma a essas hipóteses de possibilidade excepcional de concessão de Habeas Corpus contra o ato de indiciamento, qual seja, sempre que esse indiciamento seja procedido sem a devida fundamentação pela Autoridade Policial nos estritos termos do artigo 2º., § 6º. da Lei 12.830/13. Na verdade essa hipótese já deveria ser reconhecida anteriormente com base na penumbra do artigo 93, IX, CF, mas agora a previsão legal é explícita na legislação ordinária, obrigando induvidosamente às Autoridades e se constituindo em expressão do direito de defesa do indiciado na fase pré – processual que, como se sabe, não contém a ampla defesa, mas já apresenta diversas oportunidades de manifestação defensiva.

Nunca é demais lembrar que a fundamentação pode ser sucinta, mas não pode se reduzir à menção ao dispositivo legal ou sua mera transcrição. Deve a Autoridade Policial indicar concretamente os elementos de convicção existente nos autos quanto à autoria, materialidade e outras circunstâncias que a levaram à convicção jurídica da necessidade de indiciamento.  

É importante salientar que a irregularidade do indiciamento sem devida fundamentação, embora passível de correção via Habeas Corpus, não ensejará quaisquer consequências no futuro Processo Penal. Isso porque, como se sabe, o indiciamento não exerce qualquer função relevante na fase judicial.

Outro aspecto que o dispositivo deixa claro, agora em termos legais, é que o ato de indiciamento é “privativo do Delegado de Polícia”. Isso vem a corroborar a jurisprudência já assentada no STJ acerca da ilegalidade do chamado “indiciamento extemporâneo ou intempestivo” quando tal ato é executado por requisição judicial ou ministerial após o encerramento das investigações pelo Delegado de Polícia sem indiciamento, sendo que na fase processual há denúncia e seu recebimento. Ora, o processo não anda para trás e sim para frente. O Estado – Polícia já deixou consignada sua manifestação e o ato de indiciamento nesses casos não passa de constrangimento ilegal inútil processualmente falando e usurpação funcional que já vinha sendo coibida pelo STJ. [11] Esse é mais um caso de cabimento de Habeas Corpus contra o ato ilegal de indiciamento, com a diferença de que a autoridade coatora não era até então o Delegado de Polícia, mas sim o Juiz ou o Promotor que requisitaram a medida.

Neste caso, a partir da Lei 12.830/13 o Delegado de Polícia não somente poderá como deverá negar-se a cumprir determinações externas de indiciamento contra sua convicção jurídica. A ordem será a partir de agora, com sustento não somente na jurisprudência firmada pelo STJ como na legislação expressa (artigo 2º., § 6º., da Lei 12.830/13), manifestamente ilegal e se a Autoridade Policial a cumprir deverá então fundamentar sua eventual alteração de convicção. Fundamentando ou não passará, ao cumprir a ordem, na prática de ato que é de sua atribuição privativa, a ocupar o posto de autoridade coatora em eventual ação de Habeas Corpus. Se antes o Delegado atuava por mera determinação do Ministério Público ou do Juiz devido a seus poderes requisitórios, agora esses poderes, nesse caso específico, deixam de existir, e a Autoridade Policial atua por sua conta e risco, devendo fundamentar sua decisão. De qualquer modo, se trata de uma decisão sua e que a coloca na posição de eventual autoridade coatora.

“Art. 3º. O cargo de delegado de polícia é privativo de bacharel em Direito, devendo-lhe ser dispensado o mesmo tratamento protocolar que recebem os magistrados, os membros da Defensoria Pública e do Ministério Público e os advogados”.

A lei determina que o cargo de Delegado de Polícia é privativo de Bacharel em Direito em boa sistemática com seu artigo 2º., que confere às funções de Polícia Judiciária e apuração das infrações penais “natureza jurídica”. No mesmo diapasão já estabelecia anteriormente o artigo 140, § 4º.,  da Constituição do Estado de São Paulo que o Delegado de Polícia não somente deverá ser Bacharel em Direito, mas também contar com, no  mínimo, dois anos de atividades jurídicas.

Em coerência com essas exigências que em nada diferem daquelas estabelecidas para as demais carreiras jurídicas, determina a lei, consequentemente, o “mesmo tratamento protocolar” dos magistrados, membros da Defensoria Pública, do Ministério Público e Advogados.

Isso significa que o tradicional pronome de tratamento utilizado para a referência aos Delegados de Polícia em correspondências a eles dirigidas ou mesmo em atos interpessoais formais, que era de Vossa Senhoria, passa a ser Vossa Excelência, que se refere a “altas autoridades”.  [12]

Essa medida adotada pela Lei 12.830/13, embora pouco ou nada relevante quanto à eficiência da atividade policial judiciária, vem a corrigir uma prática desigual injustificada no que tange ao tratamento protocolar dispensado aos Delegados de Polícia ao longo do tempo. Como visto acima, a ocupação da carreira evoluiu para os mesmos requisitos, já há muito tempo, exigidos para os magistrados, promotores etc. O exercício do cargo de Delegado de Polícia implica na responsabilidade e na prática de um poder – dever de alta relevância, tanto é fato que numa cidade interiorana, por exemplo, pode-se facilmente indicar as autoridades mais importantes como sendo o Prefeito, o Juiz, o Promotor e o Delegado, mas até então somente tinham o tratamento pronominal de “Excelência” os três anteriores, o que não se justifica e nem se justificava.

Não há dúvida, portanto, que a alteração legal diz respeito a esse novo pronome de tratamento. Para confirmar essa conclusão basta consultar, por exemplo, o “Curso de Protocolo e Cerimônia” do Copemditur – Departamento de Recursos Didáticos, ligado à União Européia, onde consta a definição de “tratamento protocolar” ou “protocolo” como “uma regra cerimonial diplomática ou palatina estabelecida por decreto ou por costume”, [13] neste caso específico, por lei. Tanto é fato que a mesma obra, em seu seguimento, passa a destacar a importância da obediência às regras protocolares de tratamento “previstas em lei” ou assentadas no “meio social”, cuja desobediência revela “ignorância ou educação deficiente”. [14]

“Art. 4º. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação”.

Como se vê a Lei 12.830/13 não conta com período de “vacatio legis”, entrando em vigor de imediato tão logo publicada.

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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Primeiras impressões sobre a Lei nº 12.830/2013.: Investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3648, 27 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24794. Acesso em: 2 mai. 2024.

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