Sabe-se que um dos mais fortes pilares das sociedades civilizadas vem sendo, faz mais de dois mil anos, uma presunção jures et de jure que constitui uma verdadeira chalaça e ao mesmo tempo a maior tirania que se tem exercido na história. Esse fundamento, esse cimento das sociedades humanas, encontra-se nestes dois conhecidos aforismos herdados dos antigos romanistas: 1º A ninguém é concedido ignorar as leis (nemini licet ignorare jus); 2º por consequência, presume-se que todos as conhecem; de modo que, mesmo evidenciado alguém que as ignorava, ele sujeitar-se-á às normas como se as conhecesse (Nemo jus ignorare censetur; ignorantia legis neminem excusat). Essa presunção é mantida apesar de se saber que contraria a realidade das coisas; apesar de se saber que é uma ficção; apesar de se saber que se trata de uma falsidade; apesar de saber-se: Primeiro, que ninguém conhece todo o direito, mas apenas uma pequena parcela de homens sabe uma parte – que não é grande – das leis vigentes num dado momento; segundo, que é impossível à maioria – e ainda essa mesma minoria – conhecer todas; e terceiro, que a presunção conforme à verdade dos fatos, conforme, portanto, à razão, à justiça e à lógica, seguramente seria uma contraposição ao que se tem admitido, isto é, ninguém conhece as leis. (COSTA, Joaquín. A ignorância do Direito. Tradução, notas e apresentação de Isaac Sabbá Guimarães. Curitiba: Juruá, 2008, p. 7).
A análise jurisprudencial tem mostrado predominante aplicação da Lei do Colarinho Branco (Lei nº 7.492/1986) às operadoras de planos de saúde, ou melhor, às pessoas definidas nos arts. 17 e 25 do diploma legal, e que, grosso modo, ostentam posição de administração, gerência e controle de tais pessoas jurídicas (TRF da 2ª Região, Primeira Turma Especializada, SER 200950010044898, rel. Des. Marcello Ferreira de Souza Granado, fonte E-DJF2R, 27 de abril de 2010, pp. 82/83).
Não há dúvida que a questão assume certo vulto, digno, portanto, de ser tratado em obra específica.
O presente artigo, pois, não tem, certamente, a pretensão de esgotá-la, mas de despertar, ainda que de modo incipiente, discussão necessária e pertinente a respeito da problemática constantemente analisada pelos Tribunais pátrios.
Ao que consta, a matéria não tem sido enfrentada com acuidade técnica e científica.
Após exame criterioso, verifica-se que os crimes previstos na Lei do Colarinho Branco não parecem alcançar as operadoras de planos de saúde, respeitada, é claro, a maciça posição pretoriana em sentido contrário.
Exemplificativamente, entende-se, por conseguinte, ser atípica a conduta descrita no art. 17 da referida lei acaso imputada a aquele que figure como administrador, gerente ou controlador de operadora de plano de saúde.
Reza o dispositivo legal que:
Art. 17. Tomar ou receber, qualquer das pessoas mencionadas no art. 25 desta lei, direta ou indiretamente, empréstimo ou adiantamento, ou deferi-lo a controlador, a administrador, a membro de conselho estatutário, aos respectivos cônjuges, aos ascendentes ou descendentes, a parentes na linha colateral até o 2º grau, consanguíneos ou afins, ou a sociedade cujo controle seja por ela exercido, direta ou indiretamente, ou por qualquer dessas pessoas:
Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem:
I - em nome próprio, como controlador ou na condição de administrador da sociedade, conceder ou receber adiantamento de honorários, remuneração, salário ou qualquer outro pagamento, nas condições referidas neste artigo;
II - de forma disfarçada, promover a distribuição ou receber lucros de instituição financeira.
Insiste-se na tese relativa à atipicidade da conduta, fruto de argumentação subsequente.
Invoca-se, ainda, a ausência de lesividade da conduta delineada no tipo legal, mercê de interpretação teleológica da Lei nº 7.492/1986 (“Lei do Colarinho Branco”).
A lei penal extravagante sob exame definiu os denominados “crimes contra o sistema financeiro nacional”, tal como tipificados pelo Capítulo I.
À evidência, a intenção precípua do legislador consistiu em proteger o sistema financeiro nacional.
A esse respeito, Arnaldo Malheiros Filho, em artigo publicado na Revista do Advogado nº 53 da AASP, intitulado Crimes contra o Sistema Financeiro: as “Triangulações” e a “Doutrina da Estrada de Santos” ensina que:
Partindo da ideia de que somente o bem jurídico justifica a edição da norma penal e de que o bem jurídico tutelado pelas figuras previstas na Lei n.º 7.492/86 é a estabilidade do sistema financeiro nacional, chega-se à conclusão de que a ratio da proibição de empréstimos de instituições financeiras a suas controladas é a chamada autoconcentração de risco, prejudicial à saúde da instituição autoconcentrada e, por consequência, de todo o sistema.
Traduz-se: Se uma instituição financeira empresta para empresa do grupo com outro objeto social, o risco do empréstimo fica sendo o desempenho de um dos braços do próprio grupo; se a tomadora fracassar em seus negócios, o grupo perde duas vezes: Na tomadora, pelo seu fracasso, e, na instituição financeira, pela inadimplência da devedora. É possível, portanto, que esse tipo de negócio ponha em risco o bem jurídico, significando perigo potencial à estabilidade do sistema financeiro. (Periódico citado, p. 36).
As ilações do jurista, indubitavelmente, mantêm relação de harmonia com a justificação inserta no Projeto de Lei nº 273 de 1983, convertido, posteriormente, na Lei nº 7.492/1986. Confira-se o teor da mens legislatoris e, porque não, da mens legis:
Justificação
O presente projeto representa velha aspiração das autoridades e do povo no sentido de reprimir com energia as constantes fraudes observadas no sistema financeiro nacional, especialmente no mercado de títulos e valores mobiliários.
Os cofres públicos, em função da preocupação governamental de preservar a confiança no sistema, vêm sendo largamente onerados com verdadeiros escândalos financeiros sem que os respectivos culpados recebam punição adequada, se é que chegam a recebê-la.
A grande dificuldade do enquadramento desses elementos inescrupulosos, que lidam, fraudulenta ou temerariamente, com valores do público, reside na inexistência de legislação penal específica para as irregularidades que surgiram com o advento de novas e múltiplas atividades no sistema financeiro, especialmente, após 1964.
Em consequência, chega-se ao absurdo de processar-se e condenar um mero “ladrão de galinhas”, deixando sem punição pessoas que furtaram bilhões não apenas do “vizinho”, mas a nível nacional.
É oportuno citar, pela proximidade dos acontecimentos, o caso “Tieppo”, amplamente divulgado na imprensa, onde se observa que, apesar do empenho das autoridades, a repressão às inúmeras irregularidades apuradas esbarra na ausência de instrumentos institucionais adequados.
Dai submetermos à apreciação deste Congresso Nacional o presente projeto, onde, além de definir novos crimes resultantes das imposições circunstanciais, damos novo tratamento ao procedimento penal, tornando possível, na apuração dos crimes, a participação mais efetiva dos órgãos responsáveis pela gestão do sistema financeiro nacional, além de não permitir que nos crimes mais graves - pena de reclusão ou de detenção superior a dois anos – prevaleça o instituto da fiança e a apelação em liberdade exatamente para criminosos que mais possuem meios financeiros de se livrarem da prisão,
No mais, a proposição segue a linha tradicional do Direito Penal vigente entre nós, não ensejando observações adicionais.
Como a urgência e a gravidade do assunto são do conhecimento não apenas dos parlamentares mas do público em geral, julgamos desnecessárias maiores considerações sobre a necessidade de aprovação deste projeto, apenas registrando que mui to nos honrará a habitual e oportuna crítica dos nobres pares, visando o seu aperfeiçoamento.
Sala das Sessões, 10 de março de 1983. Nilson Gibson. (negritado).
Interessa mencionar, a título ilustrativo, que o caso “Tieppo”, apontado na justificação acima transcrita, foi, salvo engano, o primeiro grande escândalo financeiro do Brasil.
À época, a corretora presidida por José Mario Tieppo captava recursos de grades investidores paulistas, nomes intocáveis e da mais ilibada reputação, para aplicar no mercado internacional, a despeito da ilegalidade da operação.
Nesse diapasão, considerando-se, então, o propósito da norma penal, dentre outras questões não menos importantes, a 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, assim se pronunciou, ad litteris:
MATÉRIA: Procedimento administrativo instaurado a partir de cópia de inquérito no âmbito da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS para apurar as causas que ensejaram a liquidação extrajudicial de cooperativa de usuários de assistência médico-hospitalar e odontológica. Operadora de plano de saúde que não se enquadra no conceito de instituição financeira. Não ocorrência de crime contra o Sistema Financeiro Nacional, circunstância que afasta a competência da Justiça Federal. (MPF, 2º Câmara de Coordenação e Revisão, Procedimento nº 1.16.000.002104/2010-13, rel. Procuradora Raquel Elias Ferreira Dodge, j. aos 09 de agosto de 2010, DJ 19 de agosto de 2010) – negritado.
Postas tais premissas, não se vislumbra, na hipótese, qualquer ofensa ao bem jurídico tutelado pela norma penal, levando-se em conta, fundamentalmente, que as operadoras de planos de saúde não atuam no mercado financeiro e tampouco se equiparam às instituições financeiras para fins penais.
Sobre o princípio da lesividade, traz-se, por oportuno, à colação os seguintes julgados, in verbis:
O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles acasos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade. O Direito Penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado, cujo desvalor – por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes – não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social. (STF, T2, HC 98152/MG, rel. Min. Celso de Mello, DJ 05 de junho de 2009, p. 584).
Para a teoria moderna – que dá realce primacial aos princípios da necessidade de incriminação e da lesividade do fato criminoso – o cuidar-se de crime de mera conduta – no sentido de não se exigir à sua configuração um resultado material exterior à ação – não implica admitir sua existência independentemente de lesão efetiva ou potencial ao bem jurídico tutelado pela incriminação da hipótese de fato. (STF, T1, RHC 81057/SP, rel. Min. Ellen Gracie, DJ 09 de abril de 2005, p. 30).
Como se sabe, o sistema financeiro nacional é regulado, essencialmente, pela Lei nº 4.595/64.
O art. 1º desta Lei inclui, dentro da estrutura do sistema financeiro nacional, o Conselho Monetário Nacional, o Banco Central do Brasil, o Banco do Brasil S/A, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e demais instituições financeiras públicas e privadas.
Ademais, o art. 17 e parágrafo único, somado ao § 1º do art. 18, ambos da mesma Lei, ampliam o conceito de instituição financeira, englobando, pois, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros... as pessoas físicas que exerçam qualquer das atividades referidas neste artigo, de forma permanente ou eventual... as bolsas de valores, companhias de seguros e de capitalização, as sociedades que efetuam distribuição de prêmios em imóveis, mercadorias ou dinheiro, mediante sorteio de títulos de sua emissão ou por qualquer outra forma, e as pessoas físicas ou jurídicas que exerçam, por conta própria ou de terceiros, atividade relacionada com a compra e venda de ações e outros títulos, realizando nos mercados financeiros e de capitais operações ou serviços de natureza dos executados pelas instituições financeiras.
A comissão de valores mobiliários também se insere neste rol, por força dos arts. 8º e 9º da Lei nº 6.385/76.
As pessoas jurídicas que dependem de autorização do Banco Central para funcionar também fazem parte do sistema financeiro nacional (art. 49, I e II, da Lei nº 4.728/65), o que, definitivamente, não é o caso das operadoras de planos de saúde.
Desse modo, constata-se, com clareza meridiana, que as operadoras de planos de saúde não se encontram incluídas no sistema financeiro nacional, malgrado o emprego de analogia in malam partem por parte da jurisprudência, em afronta direta e evidente ao princípio da legalidade (art. 5º, XXXIX, CF, e art. 1º, CP).
O preceito normativo contido no art. 25, parágrafo único, I, da Lei nº 7492/86, a propósito, relega, absolutamente, à inobservância, a estrutura da norma penal, porque não define claramente as operadoras de planos de saúde como um dos sujeitos ativos do crime, apresentando descrição vaga e imprecisa neste particular.
Tal circunstância, aliás, justifica a ausência de conhecimento da ilicitude do fato ou, até mesmo, da lei, declarada, com frequência, pelos réus em ações penais desta natureza.
Não obstante a ausência de dolo (art. 18, I, CP), verificável caso a caso, os acusados, via de regra, realizam a suposta conduta proibida, justamente por não compreenderem o verdadeiro âmbito de incidência da norma penal, incorrendo, via de consequência, em erro de proibição direto (art. 21, CP).
Diante desse quadro, a Lei do Colarinho Branco não se afigura extensível às operadoras de planos de saúde, isto é, às pessoas físicas a elas vinculadas e definidas como sujeitos ativos dos crimes nela tipificados, sob pena de rematada violação aos princípios da legalidade e lesividade, salvo melhor juízo.
REFERÊNCIAS
COSTA, Joaquín. A ignorância do Direito. Tradução, notas e apresentação de Isaac Sabbá Guimarães. Curitiba: Juruá, 2008.
MALHEIROS FILHO, Arnaldo. Crimes contra o Sistema Financeiro: as “Triangulações” e a “Doutrina da Estrada de Santos”. Revista AASP nº 53, out/1998.
MPF, 2º Câmara de Coordenação e Revisão, Procedimento nº 1.16.000.002104/2010-13, rel. Procuradora Raquel Elias Ferreira Dodge, j. aos 09 de agosto de 2010, DJ 19 de agosto de 2010.
STF, T1, RHC 81057/SP, rel. Min. Ellen Gracie, DJ 09 de abril de 2005.
STF, T2, HC 98152/MG, rel. Min. Celso de Mello, DJ 05 de junho de 2009.
TRF da 2ª Região, Primeira Turma Especializada, SER 200950010044898, rel. Des. Marcello Ferreira de Souza Granado, fonte E-DJF2R, 27 de abril de 2010.