1 . Introdução.
O presente ensaio tem por objetivo enfrentar a polêmica acerca da configuração (ou não) do crime de desobediência, em relação àquele que descumpre medida protetiva, deferida em razão da Lei da Violência Doméstica (Lei nº 11.340/06).
Basicamente, há dois entendimentos. De um lado, aquele que defende a atipicidade do crime, ante a suficiente consequência, já tutelada pelo direito, da prisão preventiva ao descumpridor de medida de proteção. O outro é sustentado com base na existência do crime, tendo em vista que há autonomia entre a prisão preventiva – decretada em virtude de conduta consistente em descumprir medidas protetivas - e o crime de desobediência.
2. Natureza jurídica da prisão cautelar por descumprimento de medida protetiva
Necessário se faz a alusão acerca do enquadramento da medida protetiva, sob o prisma da configuração (ou não) de uma sanção jurídica.
A norma que prevê o instituto encontra-se no art. 313, III, do Código de Processo Penal, in verbis:
Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
(...)
III - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
É evidente que, sob o prisma sociológico, qualquer espécie de prisão (seja provisória, seja definitiva) enseja uma lesão à liberdade do indivíduo. No entanto, é preciso estabelecer a exata categorização jurídica, a partir do que prevê a Lei nº 11.340/06. Em seu artigo art. 19, temos a seguinte redação:
As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas pelo juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida.
§ 1o As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas de imediato, independentemente de audiência das partes e de manifestação do Ministério Público, devendo este ser prontamente comunicado.
§ 2o As medidas protetivas de urgência serão aplicadas isolada ou cumulativamente, e poderão ser substituídas a qualquer tempo por outras de maior eficácia, sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados.
§ 3o Poderá o juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida, conceder novas medidas protetivas de urgência ou rever aquelas já concedidas, se entender necessário à proteção da ofendida, de seus familiares e de seu patrimônio, ouvido o Ministério Público.
Como visto acima, principalmente da redação do parágrafo terceiro, extrai-se a norma que remete a essência cautelar do instituto, especificamente um provimento precário e progressivo. Note-se que o simples descumprimento de medida protetiva não deságua, automaticamente, na prisão cautelar, podendo haver outras consequências processuais, como a intensificação das medidas anteriormente estabelecidas (v.g., a inserção do mecanismo da monitoração eletrônica do agressor, ou outra medida cautelar) – daí a sua progressividade. É precário porque pode ser revogado a qualquer momento, durante o curso da ação penal.
Inegável, assim, a natureza cautelar da prisão preventiva pelo descumprimento de medida de proteção. Afasta-se, pois, o entendimento segundo o qual se trataria de uma sanção.
Tanto é verdade que, invocando classificação quinária das ações/tutelas, estudadas no Direito Processual Civil, é possível igualar a consequência do descumprimento de uma medida protetiva a uma ordem mandamental, por exemplo, concedida em uma ação de mandado de segurança. A consequência lógica, pelo descumprimento dessa decisão, é o cometimento do crime de desobediência. Em síntese, é essa característica que difere a tutela mandamental das demais (condenatória, constitutiva, declaratória e executiva lato sensu).
Assim, só por tal motivo, a medida protetiva se equipararia a uma tutela mandamental que, uma vez descumprida, geraria, além da prisão cautelar, a incidência do crime de desobediência, previsto no art. 330 do Código Penal.
3. Elementos do crime de desobediência (art. 330 do Código Penal) e distinções em relação à prisão preventiva
A redação do artigo 330 do Código Penal é a seguinte:
Desobedecer a ordem legal de funcionário público:
Pena - detenção, de quinze dias a seis meses, e multa.
Como se observa, a elementar desobedecer traduz recusar o cumprimento de ordem emanada de funcionário público (decisão judicial), como, por exemplo, se aproximar da ofendida ou não deixar o lar conjugal, etc.
Distingue-se do crime previsto no art. 329 do Código Penal (resistência), pela ausência de emprego de violência ou ameaça ao funcionário público competente[1], e também do art. 359 do mesmo Código, porque esse último é especial, envolvendo apenas situações em que o agente descumpre decisão judicial que o impeça de exercer função, atividade, direito, autoridade ou múnus, ações essas não desempenhadas pelo agressor em face da ofendida.
Cumpre salientar, ainda, que o injusto penal tem por escopo a tutela da Administração Pública, notadamente à autoridade e respeito às decisões e ordens advindas do funcionário público. Diferentemente disso, a prisão preventiva pelo descumprimento das medidas objetiva a proteção da ofendida e sua família, como visto alhures.
4. Conclusão
A análise da tipicidade material, aplicada ao questionamento segundo o qual o descumprimento de medida protetiva de urgência configura o crime de desobediência, deve partir da natureza jurídica da prisão preventiva (art. 312, III do CPP) e encerrar-se na consequência da impunidade e na impossibilidade de se evitar um certo transtorno à eficácia das medidas de proteção.
Note-se que, acaso se entenda pela atipicidade, o desrespeito aos comandos judiciais certamente será intensificado, esvaziando-se, também, a eventual possibilidade de se realizar o flagrante no exato momento em que o agressor descumpre a medida, sem que a autoridade policial incorra em crime de abuso de autoridade.
Por outro lado, a hipótese de se encarar a conduta como fato típico intensifica as ações policiais e reafirma a proteção da ofendida e seus familiares. Ao mesmo tempo, ela reforça as técnicas das tutelas inibitórias do Poder Judiciário e a própria força estatal.
Sendo assim, a compreensão que deve prevalecer só pode ser aquela que permite a configuração do crime do artigo 330 do Código Penal, no sentido de se estabelecer, além da prisão preventiva, a responsabilização criminal do agressor no caso de descumprimento das medidas de proteção da Lei 11.340/06.
Nota
[1] MASSON, Cleber. Direito Penal esquematizado, vol 33: parte especial. São Paulo: Método, 2011. P. 714.