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Ocupação habitacional das áreas de rios e mananciais em face da preservação de recursos hídricos:

exercício regular de um direito ou violação de um princípio de direito fundamental?

26/04/2014 às 16:22

Resumo:


  • O direito à moradia e o direito ao meio ambiente sadio são garantias fundamentais na Constituição Brasileira, mas entram em conflito quando há ocupação ilegal de áreas de preservação ambiental para fins habitacionais, gerando problemas como poluição e assoreamento de rios.

  • A Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) visa garantir o uso racional e a preservação da água, estabelecendo que este recurso é um bem de domínio público e limitado, com prioridade de uso para consumo humano e dessedentação de animais.

  • Em situações de conflito entre o direito à moradia e o meio ambiente, deve prevalecer o direito ao ambiente ecologicamente equilibrado, removendo famílias de áreas protegidas e realocando-as em condições dignas, respeitando a dignidade humana e a sustentabilidade ambiental.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

No caso da ocupação habitacional das áreas de rios e mananciais, o exercício do direito à moradia prejudica o direito ao meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, pois a falta de condições de saneamento básico dessas residências gera a poluição de áreas protegidas por lei.

Sumário: Introdução; 1- O direito à moradia e suas dificuldades de efetivação no Brasil; 2- O direito ao meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado; 3- A política de preservação dos recursos hídricos; 4- Os conflitos entre o direito ao meio ambiente e o direito à moradia gerados pela ocupação habitacional das áreas de rios e mananciais; Conclusão; Referências.

Resumo: A Constituição Federal de 1988 arrola em seus direitos e garantias fundamentais o direito à moradia e o direito a um meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado para todos. Entretanto o Brasil apresenta um déficit habitacional de aproximadamente cinco milhões e meio de moradias, de acordo com índices demonstrados pela Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios (Pnad) do ano de dois mil e oito. Este grande contingente de cidadãos “desabrigados” desloca-se para áreas protegidas ambientalmente a fim de constituir moradia mesmo que em situação ilegal e desprovida de segurança de posse, o que coloca em conflito dois direitos fundamentais de extrema importância.

 

PALAVRAS-CHAVES: Direito fundamental; meio-ambiente; recursos hídricos; urbanização; moradia; preservação.


INTRODUÇÃO

No Brasil proteção das águas contra o mau uso e as diferentes formas de poluição é feita com base em critérios estabelecidos pela Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), que implementa suas ações por meio do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SNGRH). De acordo com a PNRH a água é um recurso natural limitado e um bem de domínio público, ou seja, a utilização desta deve ser sempre vinculada à função de atender o interesse da coletividade. A PNRH também arrola em seus principais objetivos a garantia do uso múltiplo das águas através da gestão destes recursos que será descentralizada e contará com o apoio do Poder Público, dos usuários e das comunidades.

A Constituição Federal brasileira, em seu rol de direitos fundamentais, inclui o direito à moradia e o direito ao meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado para as atuais e futuras gerações. A ocupação das áreas próximas de rios e mananciais gera uma série de prejuízos à natureza, tais como o assoreamento e a contaminação da água. A grande questão gerada por este conflito de direitos é a de qual garantia fundamental prevalece no caso concreto e, se há alguma possibilidade de conciliação entre preservação de áreas ambientais específicas e o direito constitucional à habitação sob o ponto de vista da teoria dos direitos fundamentais.

A ocupação de áreas próximas a rios e mananciais é proibida pela Lei 4.771 de 15.09.1965, porém devido à crescente urbanização e especulação do mercado imobiliário muitas pessoas encontram nestes locais sua única possibilidade de ter o direito à moradia efetivado. Entretanto a ocupação destes espaços ambientalmente protegidos gera a poluição das águas decorrente da falta de sistema de saneamento básico adequado nessas “ocupações” habitacionais.

Além disso, o direito à moradia não se resume apenas a um local para morar, mas abrange também todas as condições para uma residência digna, tais como: segurança legal de posse, acessibilidade, habitabilidade, custo acessível, entre outras. Em contrapartida o direito ao meio ambiente abrange um número muito maior de pessoas, pelo fato de ser um direito fundamental difuso, intergeracional e estar atrelado ao direito à vida e a integridade pessoal. Pelo princípio da proporcionalidade o direito ao meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado é limite constitucional ao direito à moradia, visto que abrange um número muito maior de pessoas e que não seria possível conciliar as condições de habitabilidade com as condições físicas das áreas de preservação ambiental.


1- O direito À moradia e suas dificuldades de efetivação no Brasil

O reconhecimento constitucional dos direitos humanos faz parte da evolução sofrida por estes a partir do período pós-guerra, no qual a função do Estado passou a ser concebida como um mecanismo de proteção e amparo às minorias e de intervenção ativa na realidade social com o objetivo de assegurar o livre exercício dos direitos sociais, econômicos e culturais. O direito à moradia é reconhecido pela Constituição Federal de 1988 como um direito social e é elencado no rol dos direitos e garantias fundamentais desta. Por isso, o Estado Federal Brasileiro tem como dever assegurar a efetivação do direito à moradia para seus cidadãos visto que além de considerar como uma garantia fundamental em sua Carta Magna, este também é assegurado pelos tratados internacionais de direitos humanos dos quais o país faz parte. Nelson Saule Júnior (2003, p. 72) afirma:

“As Declarações e Convenções Internacionais sobre Direitos Humanos, são os principais fundamentos, para o entendimento do Estado Brasileiro ter obrigação em promover e proteger o direito à moradia, tendo em vista o artigo 4°, inciso I da Constituição Brasileira. Por este preceito constitucional se adota como um dos princípios que devem reger as relações internacionais do Estado Brasileiro a prevalência dos direitos humanos. Essa fundamentação também é baseada nas próprias normas da Constituição Brasileira referente aos princípios fundamentais, dos direitos e garantias fundamentais, da organização do Estado e do capítulo da política urbana.”

O Direitos Humanos evoluem conforme o grau de evolução da sociedade, pois com o passar do tempo e com o surgimento de novas relações sociais são criadas necessidades, que vêm a somar com as que já existiam até então. Este processo de evolução pode ser percebido no fato de após a Declaração Universal de Direitos Humanos haverem surgido vários pactos entre as nações do mundo, que tratam os direitos humanos de maneira ainda mais específica. O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais que foi instituído pelas Nações Unidas no ano de 1966 e entrou em vigor no ano de 1976 com a adesão de trinta e cinco países, inclusive o Brasil, estabelece em seu artigo 11 que os Estados aderentes se fazem obrigados a promover e proteger o direito à moradia adequada de seus cidadãos assim como garantir a melhoria contínua das suas condições de sobrevivência. Este pacto deu aos direitos sociais eficácia progressiva e sujeita a aplicação da reserva do possível conforme é proclamado em seu artigo 2° inciso I:

“Cada estado no presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas.”

O direito à moradia incluído no artigo 6° da Constituição Federal é dotado de jusfundamentalidade e status positivus socialis, pois torna obrigatória uma prestação positiva do Estado para a garantia de sua eficácia. É dotado também de status negativus da imunidade tributária ao Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) que protege as pessoas de baixa renda, os favelados, os idosos, etc (LOBO TORRES, 2009, p. 268). O direto a moradia não pode ser interpretado de maneira restrita e exige que sejam levados em consideração requisitos como: boas condições de habitabilidade; custo acessível; segurança legal de posse; acessibilidade; acesso sustentável à recursos naturais e comuns; localização; e adequação cultural da habitação.

Os direitos sociais têm sua existência condicionada a sua eficácia no caso concreto. Contudo nos países subdesenvolvidos como o Brasil até mesmo a aplicação restrita do direito à moradia tem problemas de eficácia conforme elucida Alex Fernandes Santiago (2011, p. 624):

“O direito à moradia, bem como outros direitos fundamentais em países subdesenvolvidos, enfrenta problemas de eficácia. Existem importantes documentos constitucionais e infraconstitucionais que lhes garantem proteção, contudo se estabelece um fosso entre o ser e o dever ser, fato que se observa especialmente em relação aos direitos humanos de segunda geração, já que que exigem prestações materiais poucas vezes cumpridas, às vezes por limites orçamentários, outras pelo desvio de recursos.”

O Brasil reconheceu junto ao Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais que aproximadamente 42% das famílias vivem em moradias sem habitabilidade e disponibilidade de acesso sustentável a recursos naturais e comuns e, que metade dos habitantes das principais cidades do país vive em conglomerados urbanos na ilegalidade de posse isentos de infra-estrutura. Estes índices só vêm a confirmar o problema de eficácia enfrentado pelo direito fundamental à moradia no Brasil.

Dentre todos os problemas gerados pela falta de efetivação do direito à moradia no Brasil está a ocupação ilegal ara fins habitacionais de áreas ambientalmente protegidas, em especial as áreas próximas a rios e mananciais, justamente pela facilidade de acesso a um recurso natural fundamental para sobrevivência humana: a água. Porém devido à falta de infra-estrutura habitacional, principalmente no quesito saneamento básico, da ocupação dessas áreas decorrem vários problemas ambientais tais como assoreamento e contaminação da água. Além disso, o modo como estas casas são edificadas nesses locais não é adequado o que favorece a contaminação dos indivíduos que nelas residem por diversos tipos de patologias. A ocupação dessas áreas ambientalmente protegidas, além destes problemas gera um outro de ordem constitucional: o conflito entre dois direitos fundamentais, o direito à moradia e o direito a um meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado para as atuais futuras gerações.


2- O direito ao meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado

Nas constituições modernas o direito ao meio ambiente passou a ser tratado como direito fundamental inerente a pessoa humana. A Conferência de Estocolmo realizada em 1972 estabeleceu que o direito ao meio ambiente sadio e equilibrado é condição fundamental para a eficácia do direito a vida. A Constituição de 1988 foi a primeira das constituições brasileiras a tratar o direito ao meio ambiente como um direito fundamental e dedicar-lhe o teor de um capítulo inteiro. O cáput artigo 225 da Constituição Federal dispõe que:

“Art 225- Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e de preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”

Pode-se extrair do texto constitucional que o direto ao meio ambiente traz como acessório o dever de defesa e preservação atribuído ao Poder Público e à coletividade. Baseado nisso a intervenção estatal se faz obrigatória na proteção do meio ambiente conseqüência da natureza da natureza de indisponibilidade deste bem. Portanto, o Estado deve atuar ativamente na defesa do meio ambiente nos âmbitos: administrativo, legislativo e jurisdicional, através da adoção de políticas públicas eficientes para cumprir este dever constitucional de proteção. Porém o dever de defesa ao meio ambiente estende-se democraticamente a todos os cidadãos brasileiros e estes são legitimados pelo artigo 5° inciso LXXIII própria Constituição a ajuizarem ação popular que tenha como objetivo anular ato lesivo ao meio ambiente bem como ao patrimônio histórico e cultural.

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O direito ao meio ambiente também se faz necessário para a concretização dos demais direitos humanos, assim ambos estabelecem uma relação de interdependência, conforme Alex Fernandes Santiago (2011, p. 622) considera:

“É fato que os direitos humanos não podem ser protegidos sem que esteja protegido o ambiente onde vivem as pessoas, da mesma forma que os direitos ambientais em geral só podem ser adequadamente implementados quando os direitos humanos são respeitados.”

As futuras gerações também são alcançadas por este direito, o que significa dizer que o direito ao meio ambiente sadio e equilibrado é intergeracional e difuso no sentido de ampliar-se a um grupo indeterminado de pessoas. Além disso, a Constituição também arrola a defesa do meio ambiente como um dos princípios da economia do país no inciso VI do artigo 170. Para além da previsão constitucional sobre o meio ambiente, há diversas leis que dispõem a respeito do tema no âmbito infraconstitucional, visto que, de acordo com o artigo 24 incisos VI e VIII da Constituição Federal a competência para legislar sobre esta matéria é concorrente à União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

Uma das mais importantes leis ambientais brasileiras é a de número 6.938 de Agosto de 1981 que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA) que institui o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA) bem como seus mecanismos de aplicação. Esta lei tem como escopo a melhoria, preservação e recuperação ambiental e trata-se do referencial mais importante de preservação ambiental dos dias atuais.

De todos os recursos ambientais essenciais para a garantia à vida não apenas humana, mas de todas as demais espécies de seres vivos é conhecido que a água é um dos mais importantes. Nesse sentido, outro importante instrumento da legislação ambiental brasileira é a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) que objetiva a participação conjunta das esferas civis e pública para que seja possibilitado o uso múltiplo das águas enquanto recurso fundamental para a sobrevivência humana. A PNRH torna viável não apenas a preservação do meio ambiente como também a defesa do direito à vida.


3- A política de preservação dos recursos hídricos

A água é a substância mais abundante sob a forma líquida da biosfera, sendo essencial para existência e manutenção da vida no planeta. Contudo apesar da existência de um grande volume de água, esta é um recurso considerado escasso, pois apenas 2,5% de sua quantidade total é doce e, portanto, adequada ao consumo humano e de animais. Por isso em todo o mundo busca-se instituir políticas de defesa deste bem natural finito e tão essencial à existência da vida.

No Brasil em 1997 a lei federal de número n.º 9.433 criou a Política Nacional de Recursos Hídricos e instituiu o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos com o objetivo de assegurar às atuais e às futuras gerações água em quantidade e qualidade suficientes por meio de seu uso racional e integrado, da prevenção contra eventos hidrológicos críticos e das ações de defesa contra poluição. O fato da PNRH buscar garantir as atuais e futuras gerações a necessária disponibilidade da água em padrões de qualidade dos usos correspondentes é a materialização do princípio da solidariedade intergeracional.

Um dos fundamentos da PNRH baseia-se no fato de ser a água um bem de domínio público, portanto um bem difuso, de uso comum do povo em conformidade com o artigo 225 da Constituição Federal. A gestão desses recursos hídricos deve, portanto, ser descentralizada e equilibrada entre Poder Público, usuários e comunidades. Outro fundamento da PNRH é o fato da água ser um recurso natural limitado dotado de valor econômico, pois é finita e devido a esta escassez se faz necessário valorar o seu uso. Edis Milaré denomina de “custo zero” o que se chama de hiper exploração da água, ou seja, se os recursos hídricos não tiverem seu uso valorado haverá um consumo excessivo que levará a sua falta. A PNRH também estabelece que em situações de escassez o uso prioritário da água é para o consumo humano e para a dessedentação de animais e que, na gestão dos recursos hídricos deve-se proporcionar os usos múltiplos da água ampliando o seu campo de utilização para o maior número de atividades possíveis.

Dentre os objetivos da PNRH são destacáveis a utilização racional e integrada dos recursos hídricos com vistas ao desenvolvimento sustentável e, a prevenção e contra os eventos hidrológicos críticos de origem natural ou originados de ação humana. Além disso, a PNRH estabelece que gestão dos recursos hídricos deverá ser sistemática levando em consideração os critérios qualitativos e quantitativos. Também se faz necessário unir a gestão dos recursos hídricos com a gestão ambiental articulando o uso dos recursos hídricos com as diversidades naturais e culturais das várias regiões do país.

Como instrumentos da PNRH existem os planos de recursos hídricos que vem a subsidiar a implementação desta. Estes planos são formulados para cada bacia hidrográfica, bem como nos âmbitos estadual e federal. Há também a classificação segundo os usos preponderantes da água e a implementação de ações permanentes para prevenir e combater a poluição. Outro instrumento de grande importância da PNRH é a outorga de direitos de uso de recursos hídricos, que é uma autorização administrativa para a realização de atividades que envolvam recursos hídricos, a qual não se trata de alienação da água, mas de concessão de direito de uso.

A legislação brasileira também estabelece outros fundamentos de proteção da água, como por exemplo, pode-se citar os artigos 2° e 3° do Código Florestal que determinam a preservação da vegetação situada nas proximidades de lagos, lagoas ou reservatórios de água naturais ou artificiais. Nesse sentido a lei 4.771 de 1965 em seu artigo 2° também é enfática ao considerar os locais onde há reserva de recursos hídricos como áreas de preservação permanente.


4- Os conflitos entre o direito ao meio ambiente e o direito à moradia gerados pela ocupação habitacional das áreas rios e mananciais

O Direito Ambiental possui vários princípios dentre os quais destaca-se o princípio do desenvolvimento sustentável que busca a harmonização entre a proteção ao meio ambiente e o desenvolvimento econômico, para que a qualidade de vida da espécie humana seja melhorada, ampliada e preservada. Este princípio encontra base constitucional dos artigos 225 e 170 inciso VI da CF de 1988. Nem sempre a realização deste princípio é possível no caso concreto, como por exemplo, no caso da urbanização seguida pelas desigualdades sociais que leva o povoamento de áreas ambientalmente protegidas é dá origem a um processo de “favelização” das grandes cidades brasileiras.

O direito à moradia é incluído no artigo 6° da Constituição Federal como um direito fundamental social, que não pode ser confundido com o direito a propriedade também assegurado constitucionalmente pelo artigo 5° inciso XXII. A eficácia do direito à moradia encontra sérios obstáculos para a resolução do problema do déficit habitacional e das péssimas condições das moradias á existentes. Este direito não pode ser aplicado restritivamente com a mera concessão de um “teto sobre a cabeça” dos cidadãos, pois inclui em seu bojo o direito da dignidade da pessoa humana, o que torna inviável que habitações insalubres, precárias e em situação de ilegalidade venham a ser consideradas como moradias efetivamente. Por isso o déficit habitacional do país se torna ainda maior, visto que, além dos cidadãos que não possuem um “teto” existem também aqueles que vivem ilegalmente em casas sem as mínimas condições de habitabilidade e sem a segurança legal de posse e, que por isso são propriedades inexistentes juridicamente.

O direito ao meio ambiente também é um direito protegido constitucionalmente como norma de direito fundamental ao qual a Constituição dedicou o teor de um capítulo inteiro. Além disso, o direito ao meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado se estende às gerações vindouras, o que lhe caracteriza pelo princípio da solidariedade intergeracional. Este direito traz consigo também o dever solidário entre as esferas civis e públicas de preservar o meio ambiente o que demonstra a aplicação do princípio da democracia.

O direto fundamental a moradia e ao meio ambiente sadio entram em conflito a partir do momento em que as normas ambientais são desrespeitadas e áreas de preservação permanente, como as proximidades de rios e mananciais, são ocupadas por habitações humanas. Este conflito é apenas aparente visto que no caso concreto após a ponderação apenas um dos direitos prevalecerá e o outro sofrerá restrições temporárias. De acordo com Silviana Henkes (2006):

“Todavia, fenômeno que vem se constatando progressivamente no Brasil é que a efetivação, por parte dos poderes públicos, do direito à moradia vem se dando em áreas protegidas, ou seja, em áreas que devido as suas especificidades e natureza jurídica devem ter o uso e a ocupação restritas e sob a tutela de um manejo sustentável. Neste sentido, percebe-se ainda um movimento e flexibilização da legislação brasileira, tanto civil como ambiental, visando adequar e legalizar inúmera situações ilegais. Fatos estes previsíveis se levado em conta entre outros fatores o ‘movimento’ internacional pela ‘segurança de posse’ encabeçado elo Banco Mundial.”

O direito à moradia é um direito que pode ser classificado como de segunda dimensão, pois é um direito social e exige um agir positivo do Estado como forma da realização de justiça social. Já o direito ao meio ambiente pode ser classificado como um direito de terceira dimensão, porque é direito de titularidade difusa que visa à proteção de grupos sociais e não apenas de um indivíduo na qualidade de cidadão.

Pode-se afirmar também que ambos são direitos fundamentais que estão sob a proibição do retrocesso social, a qual proíbe a supressão de uma norma de direito fundamental que já tenha sido garantida pelo Estado. Logo, nos casos onde ambos os direitos entram em conflito a supressão temporária de um deles para que o outro prevaleça deve ser seguida da satisfação, da maneira menos prejudicial possível, do direito restringido. Contudo, quando o Estado se posiciona de maneira a legalizar situações que por ele já foram defesas em lei, este pode estar ferindo seus próprios princípios constitucionais é o que acontece nos casos em que o Poder Público concede a posse legal de áreas de preservação permanente aos ocupantes ilegais destas. Visto que, nestas situações o Estado estará dando prevalência no caso concreto para o direito à moradia sem nenhuma responsabilidade posterior de reparar os danos ambientais, danos estes que são irreversíveis e que têm alcance múltiplo, atingindo não apenas os moradores da região que tiveram seus interesses temporariamente satisfeitos, como também as gerações atuais e futuras.

A efetivação do direito à moradia não pode ocorrer em locais de preservação ambiental, pois pela ponderação feita entre os direitos fundamentais à moradia e ao meio ambiente se pode extrair que: o direito ao meio ambiente é classificado como de terceira dimensão e abrange um número muito maior de indivíduos e, que o direito à moradia mesmo que temporariamente restrito poderá ser satisfeito posteriormente em outro local e da forma menos prejudicial à comunidade envolvida. Portanto, nos casos de comunidades instaladas às margens de rios e mananciais, considerados áreas de preservação permanente e, tendo em vista a escassez e a infungibilidade dos recursos hídricos, dever-se-á adotar posicionamento favorável a preservação ambiental e, a remoção das famílias deverá ser seguida da reinstalação das mesmas em casas populares, localizadas em outros locais.

Nesse sentido o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo Processo na AI 3078721320118260000, que teve como relator o Desembargador Torres de Carvalho, foi favorável à retirada de famílias que ocupavam as margens do Rio Atibaia, pois estas estavam sujeitas à inundações constantes, tendo ameaçado o seu direito fundamental à vida. A decisão obrigou que a prefeitura instalasse as famílias em casas de conjunto habitacional e concedesse as verbas necessárias a sua manutenção.

A PNRH estabelece que a gestão da água é de responsabilidade comum entre Poder Público, usuários e comunidades, o que torna claro que as comunidades que se instalam ilegalmente em áreas de preservação permanente como rios e mananciais causando assoreamento, poluição da água corrente e do lençol freático, não estão isentas de culpa pelo dano ambiental causado. Além disso, o artigo 225 da Constituição, o mesmo que assegura o direito ao meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado para todos, estende o dever de proteção ambiental do Poder Público para todos os cidadãos do país. Portanto, caso o Estado venha a flexibilizar ou legalizar situações de ocupação ilegal de áreas ambientalmente protegidas, estará exercendo postura complacente à atos inconstitucionais e, procurando isentar-se da responsabilidade de promover o direito à moradia digna aos seus cidadãos, pois pelas características das áreas de preservação ambiental nestes locais não existem condições de habitabilidade digna.


CONCLUSÃO

O direito à moradia e o direito a um meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado são garantias fundamentais estabelecidas pela ordem constitucional brasileira. Portanto ambos os direitos estão sob a proteção do princípio da proibição do retrocesso social, que impede que o Estado venha a retroagir em relação a direitos fundamentais já concedidos por ele. Entretanto, nem sempre esses direitos fundamentais têm uma relação harmônica, entrando em conflito entre si, como no caso em que indivíduos vêm a exercer o seu direito à moradia em áreas ambientalmente protegidas por lei.

Porém, este conflito entre direitos fundamentais é apenas aparente e pode ser solucionado no caso concreto pela ponderação entre os direitos, visando suprimir temporariamente o exercício de um deles da maneira menos prejudicial possível ao outro. No caso da ocupação habitacional das áreas de rios e mananciais o exercício do direito à moradia prejudica o direito ao meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, pois a falta de condições de saneamento básico dessas residências gera a poluição dessas áreas protegidas por lei. Além disso, os recursos hídricos se adequam à categoria de bens naturais escassos pois constituem elemento finito e são essenciais à manutenção da vida no planeta.

Portanto nesses casos o Estado deve cumprir sua função de defensor do direito ao meio ambiente, pois este abrange um número indeterminado e muito amplo de pessoas, como também sua função prestacional em relação ao direito à moradia. Caso o Estado adote uma postura contrária a esta, flexibilizando a legislação e legalizando a posse de áreas juridicamente protegidas, estará sendo conivente com condutas inconstitucionais. Assim o Poder Público tem a obrigação de remover famílias que ocupem ilegalmente áreas de preservação permanente promovendo a efetivação de seu direito à moradia em um local apropriado e em condições que sejam condizentes com o princípio da dignidade da pessoa humana.


REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2ed. São Paulo: Malheiros, 2011.

BENJAMIM, Antonio Herman (org.). Congresso Internacional de Direito Ambiental: Direitos, água e vida. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2003.

BENJAMIM, Antonio Herman (org.). Congresso Internacional de Direito Ambiental: Direitos humanos e meio ambiente. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.

JÚNIOR, Nelson Saule (coord.). Direito à cidade: trilhas legais para o direito à cidades sustentáveis. 2003.

MAIA, Alexandre (coord.), KRELL, Andreas Joaquim (org.). A aplicação do direito ambiental no estado federativo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005.

MILARÉ, Edis (organ.), MACHADO, Paulo Afonso Leme (organ.). Direito Ambiental: Fundamentos do Direito Ambiental. Vol.1. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 17ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

TORRES, Ricardo Lobo. O direito ao mínimo existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.

Disponível em:

<http://www2.camara.gov.br/agencia/noticias/ADMINISTRACAO-PUBLICA/196187-DEFICIT-HABITACIONAL-NO-BRASIL-E-DE-5,5-MILHOES-DE-MORADIAS.html> Acesso em 24 de agosto de 2012.

Disponível em:

<http://www.jusbrasil.com.br/filedown/dev6/files/JUS2/TJSP/IT/AI_3078721320118260000_SP_1337527426806.pdf> Acesso em 04 de novembro de 2012.

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Sobre a autora
Larissa Silva Almeida

Acadêmica de Direito da UNDB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Larissa Silva. Ocupação habitacional das áreas de rios e mananciais em face da preservação de recursos hídricos:: exercício regular de um direito ou violação de um princípio de direito fundamental?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3951, 26 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27947. Acesso em: 22 dez. 2024.

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