6. Conclusão
Uma análise cuidadosa da Constituição Federal não leva a outra conclusão senão a de que o Estado não está obrigado a fornecer todo medicamento aos cidadãos brasileiros – pelo menos não com base no texto constitucional.
A análise do art. 196 da CF não pode ser encerrada na primeira oração (“a saúde é direito de todos e dever do Estado”). Isto representaria um grave erro hermenêutico. Como a Constituição não possui palavras inúteis, o seu intérprete não pode restringir-se à parte inicial do dispositivo e ignorar o resto de seu conteúdo, pois isto resultaria em manipulação da teleologia do texto constitucional e clara ofensa à norma maior do Estado brasileiro.
Da mesma forma, a lei que regulamentou a prestação do serviço de saúde, Lei 8.080/90, não obriga o fornecimento integral de medicamentos. Embora determine a assistência farmacêutica integral, conceitua tal assistência como aquela necessária para o tratamento de todas as doenças, e não como o fornecimento de todos os medicamentos. Pelo contrário, determina expressamente que somente serão fornecidos os medicamentos constantes de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas, que são elaborados pelo Poder Executivo com base nos critérios estabelecidos pela legislação. Ou seja, não existe norma constitucional ou legal que sustente o fornecimento integral de medicamentos.
Ao tentar alcançar a justiça, o operador do Direito não pode esquecer que o próprio conceito de justiça está intrinsecamente ligado ao conteúdo das normas constitucionais, que se revela, em um primeiro momento, através de sua interpretação gramatical, da extração do significado de cada uma das palavras utilizadas, o que abrirá o caminho para a utilização do método teleológico, por meio do qual se encontrará a intenção do constituinte. E, no caso da universalidade do acesso à saúde, o constituinte originário declarou expressamente seu alcance de maneira progressiva, e não imediata.
Logo, embora se almeje que os objetivos da Constituição sejam alcançados rapidamente, e que todos os indivíduos tenham acesso a serviços públicos de qualidade, ignorar a teleologia do texto constitucional não leva a outra coisa senão à injustiça.
Não obstante, não pode ser aceito que o “não imediatismo” do acesso universal à saúde sirva de autorização para omissão dos Poderes Executivo e Legislativo na melhoria nas políticas públicas relativas à implementação de tal direito. Embora a Constituição não imponha o alcance imediato da universalidade do acesso à saúde, a norma maior obriga que o Estado adote políticas públicas que garantam a constante evolução do serviço, até que todos tenham acesso a ele. Assim, não garantir melhorias contínuas no serviço de saúde é conduta inconstitucional; afinal, a Constituição Federal não é carta consultiva dos poderes estatais, mas sim norma jurídica à qual deve ser garantida a maior eficácia possível, conforme determina o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais.
Por esse motivo, o Poder Judiciário não pode voltar à posição que adotou nas duas décadas posteriores à promulgação da Constituição, qual seja, de somente garantir o cumprimento daquelas questões constitucionais que já tenham sido regulamentadas pelos poderes Executivo e Legislativo. Cabe ao Judiciário, com base no sistema de freios e contrapesos, revisar aquilo que já foi feito pelos outros poderes em relação ao fornecimento de medicamentos, e, fazendo uso dos princípios da hermenêutica constitucional, concluir se está de fato ocorrendo a evolução do serviço, e se esta evolução está de acordo com os ditames constitucionais e legais, com as necessidades da população e com as possibilidades financeiras do Estado naquele momento. Almeja-se, porém, que o Poder não se exceda nesse controle e ingresse na área de atuação dos demais poderes, pois isto ofende o princípio da uniformidade funcional e, em consequência, a própria Constituição.
A questão é delicada, mas no sistema constitucional brasileiro, complexo e bem elaborado, encontra-se a solução. Basta que o intérprete – seja ele administrador, legislador ou julgador – aja com razoabilidade, a fim de que seus atos sejam adequadamente guiados pelas ordens da Constituição Federal, pois ela é o maior bem de uma democracia.
7. Referências
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Notas
[1] PIERDONÁ, Zélia Luiza. A proteção social na Constituição de 1988. In: Revista de Direito Social nº 28. Notadez: Porto Alegre, 2007, p. 12.
[2] Conforme determinação dos artigos 25 e 26 do Decreto Federal 7.508/2011, que regulamenta a Lei nº 8.080/90, a cada dois anos o Ministério da Saúde deverá publicar a atualização da Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde (RENASES) e da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME), nas quais são previstos, entre outros, os medicamentos a serem fornecidos pelo Estado. Somente na última revisão RENAME, o número de produtos na lista passou de 550 para 810 medicamentos. A lista passou a incluir, além dos medicamentos de atenção básica, alguns medicamentos destinados ao tratamento de doenças raras e complexas, bem como todos os medicamentos ambulatoriais, entre eles insumos e vacinas. (Em: <http://portalsaude.saude.gov.br/portalsaude/noticia/4603/162/relacao-nacional-de-medicamentos-quase-dobra.html>. Acesso em: 18 jun. 2013). Além destas relações, de ordem federal, existem aquelas publicadas pelos Estados e Municípios, de acordo com suas obrigações legais sobre o serviço de saúde.
[3] Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Editora IOB, 2012.
[4] Apud GUERREIRO FILHO, Evaldo José. Ensaio sobre as correntes doutrinárias da constituição: da concepção jusnaturalista à concepção pós-positivista. ___, 2010. Disponível em: < http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8182>. Acesso em: 15 jun. 2013.
[5] Apud, Ibid.
[6] Apud, Ibid.
[7] Importante mencionar que, diferente dos métodos hermenêuticos clássicos, os métodos constitucionais específicos não podem ser aplicados em conjunto, pois conflitantes um com o outro.
[8] COELHO, Inocêncio Mártires. Métodos e princípios da interpretação constitucional: o que são, para que servem, como se aplicam. ___. Disponível em: <http://www.direitopublico.idp.edu.br/index.php/direitopublico/article/viewFile/474/447>. Acesso em: 16 jun. 2013. p. 30.
[9] FERREIRA, Aurélio B. de Hollanda (1910-1989). Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 672.
[10] Ibid, p. 2.079.
[11] Responsáveis solidários pela prestação do serviço – art. 198, I, da Constituição Federal.
[12] “Conjunto de atos e não atos que uma autoridade pública decide pôr em prática para intervir (ou não intervir) em um domínio específico” (DA ROCHA, Álvaro Filipe Oxley. O Judiciário e a concretização dos direitos fundamentais sociais: jurisdição e políticas públicas. In: STRECK, Lenio Luiz; DE MORAIS, Jose Luis Bolzan. Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: anuário do programa de pós-graduação em Direito da UNISINOS: mestrado e doutorado. 1. ed. São Leopoldo: UNISINOS, 2010, p. 19)
[13] A utilização de todos os postulados em conjunto é, em verdade, a forma mais recomendável de se realizar a atividade interpretativa de qualquer texto normativo, seja ele constitucional ou não.
[14] MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 140.
[15] DA ROCHA, Álvaro Filipe Oxley. O Judiciário e a concretização dos direitos fundamentais sociais: jurisdição e políticas públicas, op. cit., p. 17.
[16] Ibid, p. 22.
[17] Embora os Poderes sejam independentes, a Constituição criou um mecanismo de controle recíproco entre eles, a fim de coibir abusos e garantir o cumprimento de suas funções. É o chamado “sistema de freios e contrapesos” (MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 21. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2007. p. 389)
[18] Em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?pagina=adi&servico=estatistica>. Acesso em 22/06/13.
[19] Para garantir a correta compreensão da polêmica, deve ser ressaltado que não se discute aqui a atuação do Judiciário para obrigar o Estado a fornecer os medicamentos já incluídos na lista do SUS. Quanto a isto, não há dúvida: se o Estado já assumiu o compromisso de fornecer determinado medicamento à população, o Judiciário deve atuar para garantir que o produto chegue ao paciente.
[20] MENDES, Gilmar Ferreira et al. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 73.
[21] [...] 2. Embora seja descabido o fornecimento de medicamentos que não possuem registro na ANVISA, em situações excepcionais, quando devidamente comprovada a necessidade do paciente fazer uso em face do risco de vida, esta Corte de Justiça tem relativizado tal restrição, como ocorre no presente caso. [...] (RIO GRANDE DO SUL, Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça, Ag. Inst. Nº 70054983937, Relator: Des. Ricardo Moreira Lins Pastl, 2013)
[...] 2. O registro do medicamento junto Ministério da Saúde não se constitui em requisito absoluto para o fornecimento pelo ente público, podendo ser afastado diante das peculiaridades do caso concreto, máxime por constar do laudo médico o caráter inexitoso dos demais tratamentos ministrados.3. Recurso conhecido e não provido. (MINAS GERAIS, 6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça, Ag. Inst. 1.0395.13.000695-4/001, Relator: Des. Corrêa Junior, 2013)
[22] A omissão administrativa pode ocorrer tanto com a ausência de norma reguladora (no que se assemelha com a legislativa), quanto com a falta de análise de determinado produto pelo órgão responsável pela formulação da lista de medicamentos, ou até mesmo quando for comprovado que os protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas estão defasados em relação à realidade científica.
[23] Por questões de honestidade acadêmica, deve ser mencionado que não foi a esta conclusão que chegou o Ministro Gilmar Mendes no caso concreto que menciona em sua obra. Embora entenda que o tratamento fornecido pelo SUS deve ser privilegiado, o Ministro entendeu que se o tratamento for ineficaz ao paciente, o Estado poderia ser condenado pelo Judiciário a fornecer o medicamento. Da mesma forma, entende que “o alto preço do medicamento não é, por si só, motivo para o seu não fornecimento” (Mendes et al, Curso de direito constitucional, op. cit., pp. 73-74)
[24] Uma suposta solução para os impactos em outras áreas do orçamento muito disseminada no meio jurídico seria a possibilidade de determinação, pela autoridade julgadora, de que a verba para o custeio dos medicamentos não previstos no orçamento fosse retirada da dotação orçamentária destinada à publicidade. No entanto, este parece ser um entendimento que: (1) aceita que os orçamentos públicos no Brasil são, em sua integralidade, corrompidos pelas vaidades e/ou interesses escusos dos governantes, o que parece ser muito exagerado; (2) não entende o papel fundamental que a publicidade possui para a informação da população sobre os serviços que estão à sua disposição, até mesmo os da área da saúde. Publicidade governamental não pode ser confundida com campanhas pró-governante. Abusos são cometidos, é claro, mas divulgar informações sobre serviços públicos ou sua atuação em geral não é apenas uma necessidade, mas também uma obrigação constitucional do Administrador. Ao invés de servir como brilhante solução para o problema do impacto orçamentário de tais decisões judiciais, a determinação da subtração das verbas destinadas à publicidade prejudica o acesso da população à informação, representando mais uma ofensa a princípio constitucional advindo de tal posicionamento.