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A possibilidade de realização de acordos judiciais e extrajudiciais por advogado público, sem prévia lei autorizativa

Métodos operacionais à luz do Neoconstitucionalismo

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14/10/2014 às 14:18
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4 DA (IN)DISPONIBILIDADE DO INTERESSE PÚBLICO, DA (DES)NECESSIDADE DE LEI PRÉVIA AUTORIZATIVA PARA FORMULAÇÃO DE ACORDOS E DAS DIRETRIZES PARA O OPERADOR JURÍDICO E ADMINISTRATIVO NA ANÁLISE DOS PRINCÍPIOS.

O presente capítulo é dividido em seis partes, verificando nos primeiros subcapítulos se é possível transacionar mesmo diante do interesse público primário e, em caso positivo, se prescinde ou não de lei prévia autorizativa.

Verifica, ainda, os casos em que o Direito não comporta transação e os que imprescindem de lei prévia autorizativa. Verifica, também, se nos casos em que a realização de acordo é possível esta é uma obrigação ou faculdade do Estado em realizá-lo.

O presente capítulo visa apontar, também, as principais diretrizes ao operador jurídico e administrativo na solução de controvérsias entre o Estado e o cidadão, à luz do novo paradigma do direito administrativo interpretado com base na juridicidade e sob a análise dos principais princípios constitucionais. Faz a verificação, ainda, da utilização dos precedentes e da jurisprudência como forma de realização do Estado.

Por fim, aponta os principais casos em que a legislação se mostra favorável à realização de acordos.

4.1 A TRANSAÇÃO E A QUESTÃO DA DISPONIBILIDADE DOS DIREITOS PATRIMONIAIS E DA (IN)DISPONIBILIDADE DO INTERESSE PÚBLICO PRIMÁRIO.

O interesse público, em si, é indisponível. Porém, o tema não comporta soluções simplistas e generalizadoras. Afinal, a indisponibilidade do interesse público não implica que o Poder Público não possa ou não deva, em certas condições, submeter-se a pretensões alheias ou mesmo abdicar de determinadas pretensões. Há uma série de nuances e matizes a considerar (TALAMINI, 2004, p. 01-02).

A diferença entre interesse público primário e sua indisponibilidade e o interesse público secundário com nítida repercussão patrimonial e, por conseguinte, disponível, tem sido enfrentada e consolidada pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça – STJ[28], que tem enfatizado a diferença entre duas espécies de interesse público que desde há muito tempo já são estabelecidas pela doutrina e já tratado em capítulo anterior.

Amparada na linha da argumentação proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, Selma LEMES (2007, p. 141) assinala que os interesses da Administração são disponíveis quando se tratar de direitos patrimoniais (econômicos) os quais se referem aos interesses públicos secundários, que são disponíveis e servem para operacionalizar (caráter instrumental) os interesses públicos originários.

Há, pois, possibilidade jurídica de transação pela Administração Pública, quer quando se trate de direitos disponíveis – transação plena – quer quando o objeto da transação verse sobre aspectos adjacentes da questão central sobre direitos indisponíveis – transação parcial. Essa denominação é atribuída por Nelson NERY JÚNIOR e Rosa Maria ANDRADE (2007, p. 602) feita apenas com o intuito de diferenciar a transação celebrada sobre direitos disponíveis da transação realizada sobre direitos qualificados, a princípio, como indisponíveis. Nesse caso, a transação é realizada apenas sob a parcela patrimonial do direito, razão pela qual, é denominada pelos autores de parcial.

Apesar desses entendimentos, cabe aqui fazer referência à correta acepção de “indisponibilidade”, a fim de verificar se é possível ou não transacionar sobre ela.

Na lição de Eduardo TALAMINI (2004, p. 14), deve-se retomar a distinção das duas acepções de indisponibilidade originadas propriamente do direito material: (i) na primeira delas, a “indisponibilidade” põe-se como vedação à renúncia de um direito existente; e (ii) na segunda, a “indisponibilidade” configura-se como proibição de espontaneamente se reconhecer que não se tem razão e se submeter voluntariamente ao direito alheio. Nesse caso, apenas a Jurisdição poderia dizer quem tem razão e aplicar as consequências jurídicas cabíveis. Essa hipótese é melhor definida como sendo de “necessariedade de intervenção jurisdicional”.

Contudo, o princípio geral é o de que o Poder Público tem o dever de cumprir obrigações e respeitar direitos alheios independentemente de intervenção jurisdicional.

É apenas a segunda acepção da “indisponibilidade” que tem relevo para a aferição do cabimento de acordos administrativos ou judiciais. Por isso se diz que o Poder Público, ao entabular uma acordo, não renuncia a direitos (TALAMINI, 2004, p. 16), mas apenas confere solução mais rápida ao cidadão, conforme já visto nos capítulos anteriores.

Cabe o acordo sempre que a matéria envolvida possa ser resolvida pelas próprias partes, independentemente de ingresso em Juízo. Se o conflito entre o particular e a Administração Pública é eminentemente patrimonial e se ele versa sobre matéria que poderia ser solucionada diretamente entre as partes, sem que se fizesse necessária a intervenção jurisdicional, então a transação é cabível. Caso verse sobre questões indisponíveis, prudente que o acordo seja realizado apenas judicialmente, em que o juízo verificará as suas condições e cumprimento do interesse público (fim), em sede de homologação.

Não é possível pretender invocar a primeira acepção de “indisponibilidade” há pouco referida para assim negar o cabimento de acordo envolvendo o Poder Público.

A compreensão inicialmente defendida por quase unanimidade da doutrina, no sentido da impossibilidade de transação, quando o litígio envolver direitos indisponíveis, está sendo, aos poucos, superada.

Imbuído do espírito de constitucionalização do Direito Administrativo, o ordenamento pátrio, na contramão da defesa da arraigada doutrina, passou a contemplar diversas leis que autorizam a transação envolvendo direitos transindividuais, ou interesse público primário[29]. Na esfera federal, um exemplo de transação de direito indisponível foi contemplada pela Lei nº. 9.469, de 10 de julho de 1997, que admitiu a concessão e a renúncia de direitos da Fazenda Pública para pôr a litígio já judicializado.

Em verdade, sob a luz de vários princípios constitucionalmente consagrados, percebeu-se que o acordo administrativo, em diversas situações, será um instrumento legítimo e eficaz para preservação de direitos.

A doutrina e grande parte da jurisprudência parecem concordar pela possibilidade de se transacionar, o Estado e o cidadão, quando se tratar de interesse público secundário (patrimonial) ou sobre o aspecto patrimonial do interesse público primário.

No julgado de 15/05/1994 (ACO 374 QO/MS), o Supremo Tribunal Federal decidiu:

[…] TRANSAÇÃO CELEBRADA ENTRE AS PARTES PARA POR FIM AO LITIGIO. AUTORIZAÇÃO DAS ASSEMBLÉIAS LEGISLATIVAS DOS DOIS ESTADOS. TRANSFERENCIA PELO ESTADO RÉU E METAMAT AO ESTADO AUTOR DE 40% DAS AÇÕES QUE METAMAT DETEM NO CAPITAL SOCIAL DE URUCUM MINERAÇÃO S.A.. BENS E DIREITOS DISPONIVEIS PELOS ESTADOS. CÓDIGO CIVIL, ARTS. 66 E 67. NÃO RESULTA DA LEI COMPLEMENTAR N. 31/1977 QUALQUER OBICE A TRANSAÇÃO AJUSTADA. NÃO E CABIVEL ENTENDER QUE AS PARTES, DEVIDAMENTE HABILITADAS, NÃO POSSAM TRANSIGIR, EM TORNO DE MATÉRIA DISPONIVEL, PARA POR TERMO AO LITIGIO. TRANSAÇÃO HOMOLOGADA, A FIM DE PRODUZIR SEUS JURIDICOS EFEITOS, DECLARANDO-SE EXTINTO O PROCESSO, COM JULGAMENTO DO MÉRITO (CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ART. 269 , III).

Contudo, apesar de se reconhecer que o tema comporta divergências argumentativas, em decisão mais recente o Supremo Tribunal Federal sinalizou pela possibilidade do Poder Público transacionar com particulares também em caso que versa sobre interesse público primário.

O julgado de 2002 reconhece que, de regra, os bens e o interesse público são indisponíveis, porque pertencem à coletividade. Todavia, reconheceu que há casos em que o princípio da indisponibilidade do interesse público deve ser atenuado, mormente quando se tem em vista que a solução adotada pela Administração é a que melhor atenderá à ultimação deste interesse.

Merece transcrição da ementa do RE 253.885-0/MG:

Poder Público. Transação. Validade. Em regra, os bens e o interesse público são indisponíveis, porque pertencem à coletividade. É, por isso, o Administrador, mero gestor da coisa pública, não tem disponibilidade sobre os interesses confiados à sua guarda e realização. Todavia, há casos em que o princípio da indisponibilidade do interesse público deve ser atenuado, mormente quando se tem em vista que a solução adotada pela Administração é a que melhor atenderá à ultimação deste interesse. Assim, tendo o acórdão recorrido concluído pela não onerosidade do acordo celebrado, decidir de forma diversa implicaria o reexame da matéria fático-probatória, o que é vedado nesta instância recursal (Súm. 279/STF). Recurso extraordinário não conhecido. (STF - RE: 253885 MG , Relator: ELLEN GRACIE, Data de Julgamento: 04/06/2002, Primeira Turma, Data de Publicação: DJ 21-06-2002 PP-00118 EMENT VOL-02074-04 PP-00796).

O julgado seguiu as linhas do Direito Administrativo contemporâneo, aplicando o Direito conforme a sua finalidade e não pela legalidade estrita, como prevalecia na doutrina clássica. Concluiu pela validade da transação porque o acordo serviu a uma mais rápida e efetiva consecução do interesse público, não havendo, assim, que se falar em ofensa ao princípio da legalidade. O acordo celebrado nada mais fez do que antecipar a justiça, na tentativa de minimizar os desastrosos efeitos ocasionados às autoras pela perseguição política impingida pela administração anterior. O acordo evitou, ainda, que o Município suportasse os ônus da sucumbência e os acréscimos naturais que adviriam da atualização dos valores retidos, em respeito aos princípios da economicidade e eficiência. Prevaleceu, ainda e dentre outros, o princípio da autotutela estatal.

O precedente serviu para modificar o inconsciente coletivo dos operadores do Direito que ainda tem a ideia de que o Poder Público, por cuidar de bens e interesses públicos, não poderia reconhecer o pedido do autor e, consequentemente, transigir.

Para ilustrar esse pensamento, cabe citar o doutrinador José Carneiro da CUNHA (2008, p. 90): "não se tem admitido que a Fazenda Pública reconheça a procedência do pedido. Sendo indisponível o direito tutelado pela Fazenda Pública, não parece ser possível haver o reconhecimento da procedência do pedido".

Contestando esse entendimento, Fábio Henrique Rodrigues de Moraes FIORENZA (2010) lembra que o Poder Público, no exercício do seu poder de autotutela, deve anular os seus atos eivados de vício de ilegalidade, nos termos do art. 53, da Lei nº. 9.784/99[30], e não há razão alguma para crer que ela não possa reconhecer a existência de erro em juízo ou após o ajuizamento da ação. Traz o seguinte exemplo para demonstrar a inconsistência da doutrina contrária:

pode um ente público reconhecer e satisfazer administrativamente a pretensão de uma pessoa, caso ela esteja amparada no Direito? Óbvio que sim, não há quem possa negar. Então por que não poderia fazer o mesmo em juízo? Sim, pois se o INSS pode deferir o pedido de um benefício previdenciário ou proceder à revisão de uma renda mensal inicial calculada erroneamente, ou se a União, por meio da Receita Federal, pode reconhecer administrativamente, no bojo de um processo administrativo instaurado pela impugnação do contribuinte, que um determinado lançamento tributário foi equivocado, o mesmo pode ser feito em juízo. Ou se defenderá que, uma vez que a pretensão não foi reconhecida administrativamente o ente não poderá fazê-lo em juízo, ainda que o erro esteja patente?

Na mesma linha, José dos Santos Carvalho Filho (2006, p. 25) lembra que só quando a Administração Pública restaura uma situação de regularidade (corrigindo ou extirpando a irregular) é que ela estaria observando o princípio da legalidade, do qual a autotutela é um dos mais importantes corolários:

defrontando-se com esses erros [...] pode ela mesma [a Administração] revê-los para restaurar a situação de regularidade. Não se trata apenas de uma faculdade, mas também de um dever, pois que não se pode admitir que, diante de situações irregulares, permaneça inerte e desinteressada.

Ademais, conforme já verificado neste trabalho, a transação, para o Poder Público, não se baseará no exercício de uma liberdade, mas no cumprimento da vontade da lei (entendida como Direito).

Se a Administração Pública pode – rectius, deve –, em juízo, reconhecer a procedência de um pedido, então ela pode transacionar a respeito dele e realizar a conciliação. Este entendimento em nada destoa do reconhecimento da indisponibilidade dos direitos de que cuida a Administração Pública, pelo contrário (FIORENZA, 2010).

Celso Antônio Bandeira de MELLO (2004, p. 46) resume o que se deve entender por indisponibilidade do interesse público: “os bens e os interesses não se acham entregues à livre disposição da vontade do administrador. Antes, para este, coloca-se a obrigação, o dever de curá-los, nos termos da finalidade a que estão adstritos. É a ordem legal que dispõe sobre ela”.

Logo, se a ordem legal dispõe que alguém tem um direito em face da Administração, não pode ela fazer outra coisa senão o satisfazer, sob pena de ofensa à ordem legal que, por princípio constitucional, tem a obrigação de observar. Ofende, também, o princípio da finalidade, corolário do princípio da legalidade, por não dar a bens e valores a destinação legal, agarrando-se a eles com unhas e dentes processuais – preliminares, defesa de mérito, exceções, incidentes e recursos juridicamente infundados (no qual se deixa de dar efetividade ao princípio da celeridade e da duração razoável do processo) –, à revelia da vontade do Direito vigente (FIORENZA, 2010).

No mesmo sentido relata Eduardo TALAMINI (2004, p. 08), em que as situações que poderiam ser espontaneamente resolvidas extrajudicialmente, continuam podendo ser igualmente compostas, dispensando-se decisão judicial, mesmo depois de instaurado o processo:

Sustentar que, uma vez instaurado o processo, o Estado não teria mais o dever de reconhecer que está errado – significaria imaginar que a litispendência imuniza a Administração de seu dever maior, de submeter-se à legalidade. Significaria supor que o processo, fenômeno eminentemente instrumental, teria o condão jurídico-material de mudar os parâmetros de legalidade, os critérios do correto agir público. É por isso que, mesmo com um processo em curso, permanece a possibilidade de o ente público reconhecer sua falta de razão e pôr fim ao litígio.

Não se trata, pois, a transação realizada por ente público, de livre disposição de bens e interesses públicos, mas sim de disposição vinculada aos termos das normas jurídicas.

Isso não quer dizer que o interesse público passou a ser disponível[31], mas apenas que, uma vez observada a existência do direito alegado pelo cidadão, está a Administração Pública autorizada a transacionar sobre ele. Caso fosse disponível o interesse público, poderia a Administração transacionar indiscriminadamente, ainda que sabedora da inviabilidade ou improcedência da pretensão ou até mesmo ceder bens públicos a quem não faz jus – o que não é verdade (FIORENZA, 2010).

O problema não está na indisponibilidade. Não se contesta que o interesse público, em seu núcleo essencial, é indisponível. A verdadeira questão reside em identificar quando há interesse público no caso concreto – ou até, muitas vezes: “de que lado está” o interesse público (TALAMINI, 2004, p. 23).

    O interesse público não coincide necessariamente com as posições concretas defendidas por aqueles que ocupam os cargos públicos. A noção de interesse público não pode ser utilizada como um escudo, um pretexto para a Administração não cumprir os valores fundamentais do ordenamento. Deve-se combater essa invocação vazia, meramente retórica, do “interesse público” – tão mais perniciosa porque sempre se quer fazer acompanhar dos atributos da “supremacia” e “indisponibilidade”, ínsitos ao verdadeiro interesse público (TALAMINI, 2004, p. 23).

Pelo exposto, possível se transacionar tanto interesse público primário quanto secundário, com as devidas cautelas e sempre com base à finalidade legal, como forma de mitigação do princípio da indisponibilidade do interesse público, sempre fundamentado em princípios constitucionais e na regra de ponderação de valores. Logo, a indisponibilidade do interesse público não inviabiliza a realização de transações pela Administração Pública e o posicionamento dos Tribunais Superiores sinalizam que a adoção de meios alternativos para a solução de controvérsias – seja o instituto da arbitragem, transação ou conciliação, entre outros – é plenamente compatível com o Direito Público brasileiro.

As limitações ao poder de transacionar serão expostas no capítulo 4.3 deste trabalho.

4.2 DA DESNECESSIDADE DE LEI PRÉVIA PARA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA EFETUAR ACORDOS EM DETERMINADAS HIPÓTESES.

Tendo ficado demonstrado que não há oposição entre a indisponibilidade do interesse público e a realização de conciliação e transação pela Administração, há de se questionar se ela está autorizada a tanto somente nas hipóteses previstas em lei ou se também poderá fazê-lo praeter legem, ou seja, em casos que não tenham previsão legal expressa.

O princípio da legalidade insculpido no art. 37, da Constituição Federal não impõe que seja necessário conferir reconhecimento normativo expresso para cada órgão da Administração Pública para celebrar acordos. Nessa seara, não se alude à violação do princípio da legalidade, uma vez que a forma de atuação da Administração, seja ela imperativa ou consensual, não se encontra predeterminado pelo ordenamento jurídico.

Se a lei poucas vezes determina que a Administração atue imperativamente, tem-se que é quase sempre possível admitir a realização da transação que venha substituir, no mesmo escopo, determinado ato imperativo, mesmo na ausência de lei específica autorizativa para a prática do ato de forma concertada. Dito de outro modo, a transação pode ser celebrada em situações nas quais a Administração pode decidir unilateralmente determinar a solução do caso concreto (BATISTA JÚNIOR, 2007, p. 490-491).

A Administração, por estar sujeita ao princípio da legalidade, deverá sempre se dispor ao acordo em casos em que a pretensão do autor estiver conforme os precedentes jurisprudenciais ou que não envolverem discussões mais complexas, independentemente de previsão legal (FIORENZA, 2010).

Com efeito, se a conciliação nada mais é que uma consequência do dever da Administração Pública de reconhecer e satisfazer o direito do administrado – dever esse decorrente do princípio constitucional da legalidade – logo, uma lei que a autorize a transigir nada mais faz senão explicitar esse dever em casos específicos. Assim, as leis com esse teor, a rigor, apenas dizem que o princípio da legalidade deve ser respeitado nas hipóteses nelas tratadas. Trata-se, portanto, de uma redundância, pelo que tais leis não seriam indispensáveis para autorizar a realização de conciliações (FIORENZA, 2010).

Pode-se pensar, contudo, que seria uma redundância que surte efeitos positivos se for considerado que, assim, supera-se a resistência dos representantes dos entes públicos em realizar conciliações, como é o caso de algumas Procuradorias. Nessa situação, FIORENZA (2010) entende que melhor seria uma lei mais abrangente, que não tratasse de hipóteses específicas, mas genéricas, um verdadeiro estatuto da conciliação para os entes públicos, que não restringisse o juízo para proceder à conciliação a uma ou poucas pessoas, como fez a Lei nº. 11.941/2009, que modificou a redação do art. 1° e 2º, caput, da Lei nº 9.469/1997[32], conferindo maior liberdade aos Procuradores.

A possibilidade de a Administração Pública realizar transação independentemente da existência de lei que a autorize já foi reconhecida pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal no RE 253.885-0/MG: “[...] o acordo celebrado não é oneroso e nem gera gravame patrimonial ao município, sendo despicienda autorização legislativa para tanto”.

Cumpre registrar que o STF rechaçou os argumentos do Município recorrente, que alegou ofensa ao art. 37 da Constituição Federal, aduzindo que o princípio da legalidade aplicado à Administração explicita a subordinação da atividade administrativa à lei e, portanto, não havendo lei a autorizar a transação, tal não poderia ter sido celebrada, ainda mais porque o Poder Público é mero executor do interesse público, que é fixado em lei, não podendo dele dispor.

Uma questão importante destacada nessa decisão e que, ao lado do princípio da legalidade, justifica a realização de acordos em hipóteses praeter legem, é que a conciliação pode, em verdade, atender melhor ao interesse público que a negativa em fazê-la.

Juarez FREITAS (2007, p. 12) leciona que a Administração deve “intensa vinculação não apenas à legalidade, senão que à totalidade dos princípios regentes das relações jurídico-administrativas, mormente os de vulto constitucional”.

Ademais, a submissão da Administração à lei estrita não garante a melhor persecução do interesse público.

Afinal, conforme aduz Odete MEDAUAR (2003, p. 144-145), o princípio da legalidade não pressupõe que o Estado somente pode realizar atos ou medidas que a lei ordena, pois, se assim o fosse, o significado geral do princípio da legalidade paralisaria a Administração porque seria necessário um comando geral específico para cada ato ou medida editada pela Administração, tornando-a inviável. A autora enfatiza que é sabido que a submissão total da Administração à lei é irrealizável, provavelmente, nunca se realizou.

Nesse enfoque, a legalidade a que a Administração está vinculada é aquela que deflui do sistema jurídico do Estado de Democrático de Direito, feita a partir de uma interpretação conforme a Constituição.

Assim, pode-se afirmar que o instituto da transação serve exatamente para afastar, face às inúmeras especificidades de cada caso concreto, a exigência de lei genérica, ou mesmo cláusulas autorizativas específicas, que pretendam a aplicação mecânica de resultados ineficientes.

Conforme registra Onofre Alves BATISTA JÚNIOR (2007, p. 548), não é o Poder Legislativo o mais apto a escolher alternativas concretas, mas, usualmente, é a Administração Pública que pode avaliar as nuanças e sutilezas de cada caso concreto e adotar a solução otimizada.

Na mesma linha exposada prescreve Roberto Gil Leal FARIA, citado por FIORENZA (2010):

Eis minha proposta: o que é indisponível é o "interesse público" em si, e não o entendimento de que o gestor público só poderia agir em determinada linha se houvesse diploma legal expresso que o autorizasse a tal. Nessa ótica, o "interesse público" seria alcançado observando-se não apenas o princípio da legalidade, mas também os da eficiência e da economicidade, igualmente constitucionais. De acordo com essa proposição, seria inadmissível o gestor público adotar postura omissiva, a gerar, na prática, prejuízo aos cofres ou à sociedade de modo difuso, sob a alegação de inexistência de lei que o autorize a agir com métodos contemporâneos para evitar tal prejuízo.

Aplicando o entendimento doutrinário acima, questiono: a Administração deve buscar a transação judicial nos processos em que a probabilidade de derrota é elevada? Estou convicto que sim. Afinal, de acordo com as peculiaridades da demanda, defender-se-ia o erário com a propositura de acordo em valores mais reduzidos do que os comumente adotados pelo Judiciário. [...] Cada caso[...] deve ser analisado isoladamente para se estabelecer uma lógica de economicidade.

Nesse compasso, a conformação de uma Administração Pública democrática que tem como pressuposto a participação do cidadão em suas atividades, ao propiciar a busca de soluções consensuais para a resolução de controvérsias contratuais, está agindo em simetria com o princípio constitucional da eficiência, o qual reclama a atuação administrativa otimizada na satisfação do interesse público da coletividade.

Para os fins deste trabalho, importa destacar a ideia da juridicidade administrativa que, elaborada a partir da interpretação dos princípios e regras constitucionais, passa a integrar o campo da legalidade administrativa e é quem fundamenta a atuação administrativa consensual para a realização do interesse público.

A esse respeito, conferir passagem esclarecedora de Gustavo BINENBOJM (2006, p. 38):

Isso significa que a atividade administrativa continua a realizar-se, via de regra, (i) segundo a lei, quando esta for constitucional (atividade secundum legem), (ii) mas pode encontrar fundamento direto na Constituição, independente ou para além da lei (atividade praeter legem), ou, eventualmente, (iii) legitimar-se perante o direito, ainda que contra a lei, porém com fulcro numa ponderação da legalidade com outros princípios constitucionais (atividade contra legem, mas com fundamento numa otimizada aplicação da Constituição).

Embora a teoria do instituto da transação tenha sido construída sob os moldes privatícios, o certo é que a transação administrativa não é a mesma do Direito Privado, tendo em vista que esta última traz em seu núcleo a persecução do melhor interesse público como resultado.

Sem prejuízo disso, não seria razoável a reconstrução de uma teoria da transação administrativa emancipada e distinta da transação privada (BATISTA JÚNIOR, 2007. p. 327).

Assim, em consonância com o Estado Constitucional Democrático, que requer uma Administração Pública mais eficiente e democrática, defende-se que quando a Administração possuir competência para a prática de determinada relação jurídica administrativa – por exemplo, celebrar contrato administrativo de execução de obras – será competente para celebrar a transação no mesmo contrato, tendo por finalidade a busca da melhor solução para o interesse público. Dito de outro modo, é a autoridade competente para decidir unilateralmente que possui a competência para celebrar a transação, de forma consensual, sem a necessidade de que exista lei autorizativa específica para tanto.

É o ordenamento jurídico constitucionalizado que impõe ao administrador público e à própria advocacia pública, como representante do administrador e tuteladora do interesse público primário, a busca da melhor solução para o interesse público.

O princípio da legalidade não coloca óbices à atuação consensual administrativa. O critério a ser aferido é o de verificar se a solução adotada, seja imperativa ou consensual, possibilita como resultado o atendimento otimizado do interesse público. Em qualquer área do Direito Administrativo, se a transação for mais benéfica ao interesse público, na ponderação de valores do caso concreto, estar-se-á cumprindo o comando constitucional, principalmente os princípios da celeridade, da economicidade e realizando o próprio Estado Democrático Constitucional.

4.3 DO DEVER DE TRANSIGIR PELO PODER PÚBLICO E DOS CASOS VEDADOS OU DE EXIGÊNCIA DE LEI PRÉVIA AUTORIZATIVA.

Por meio do instrumento de transação a Administração Pública renuncia à imposição unilateral e, efetivamente, persegue um ponto de equilíbrio entre os interesses públicos e privados, em determinado caso concreto, à luz dos princípios constitucionais que reclamam uma Administração mais eficiente e democrática. Na ordem constitucional democrática, todo o plexo de princípios do ordenamento jurídico administrativo constitucional vincula a atuação do administrador público.

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Importa registrar que no texto constitucional, em nenhuma passagem pode-se encontrar quaisquer princípios ou regras que permitam concluir que, em sede de Direito Público, seja impossível celebrar transações, ou mesmo que essas devam ser evitadas. Pelo contrário, é da interpretação da Constituição que pode se extrair a determinação pela busca de soluções por meio de instrumentos consensuais, uma vez que a Carta determina a realização do Estado brasileiro como Estado Democrático de Direito, inclusive já com esta diretriz em seu preâmbulo, conforme já destacado.

A doutrina processualista elenca a pacificação social como sendo um dos escopos da jurisdição. E a conciliação talvez seja, dentre todas as formas de se resolver jurisdicionalmente um conflito, a que mais próxima chega desse objetivo, uma vez que, por ela, as próprias partes estabelecem livremente os termos e as condições para a solução da demanda. A conciliação, ainda, na medida em que faz valer as vontades das partes na elaboração da norma do caso concreto, configura uma participação direta dos jurisdicionados na atuação de um dos poderes do Estado, o que é sempre salutar e desejável numa sociedade que se pretende democrática, aproximando-se do ideal manifestado pelo constituinte no parágrafo único, do art. 1º[33].

O artigo 125, inciso IV, do Código de Processo Civil, prescreve que compete ao juiz "tentar, a qualquer tempo, conciliar as partes". Assinale-se que essa tentativa, mais que uma faculdade do juiz, é uma obrigação sua (FIORENZA, 2010). Além disso, o legislador previu a realização de uma audiência de tentativa de conciliação no procedimento comum, tanto na modalidade sumária, quanto na ordinária. O mesmo ocorre no procedimento dos Juizados Especiais, tendo a Lei nº. 9.099/95, inclusive, inovado ao prever a conciliação também para os processos penais relativos a crimes de menor potencial ofensivo.

Sob o aspecto da legalidade, Eduardo TALAMINI (2004, p. 03) ensina que:

a Administração, uma vez constatando que não tem razão em dado conflito, tem o dever de submeter-se aos parâmetros da legalidade.

Em regra, tal submissão independe da instauração de processo judicial. Trata-se de imposição inerente à própria relação material de direito público: se o Estado constata que o particular tem determinado direito em face dele, cabe-lhe dar cumprimento tal direito.

Isso é decorrência direta do princípio constitucional da legalidade (CF, art. 37, caput). Se a todo sujeito de direito a imposição de cumprir seus deveres já se colocaria, aos entes e agentes da Administração Pública ela se põe com ainda maior vigor. Para eles, a legalidade não é apenas um limite, uma baliza, mas vetor fundamental da sua atuação.

Concerne, ainda, à imposição de que a Administração Pública paute suas condutas de acordo com o princípio da boa-fé. No Brasil, tal princípio tem assento constitucional, também no caput do art. 37 da Constituição, que determina à Administração o respeito ao princípio da moralidade. Há reprovação qualificada (justamente porque constitucional) à postura desleal da Administração Pública. Se a Administração constata que a posição jurídica do particular é correta, não lhe é dado valer-se de artifícios ou subterfúgios para subtrair-se ao cumprimento do dever dali extraível.

Referido autor explica que quando a Administração Pública satisfaz o direito do cidadão não está dispondo ou “abrindo mão” do interesse público. E isso pela óbvia razão de que, nessa hipótese, se não há direito em favor da Administração, não há que se falar em interesse público (TALAMINI, 2004, p. 04).

Relembre-se que de há muito, a doutrina já esclareceu que interesses pragmáticos da Administração que não encontrem amparo no ordenamento não constituem interesse público, são meros interesses secundários, ilegítimos. Arremata, Eduardo TALAMINI (2004, p. 04), baseando-se na doutrina italiana e nas lições de Celso Antonio Bandeira de Mello:

O interesse de que o agente público deve buscar a satisfação não é, simplesmente, o interesse da Administração como sujeito jurídico em si mesmo (“interesse secundário”), mas, sim, o “interesse coletivo primário”, formado pelo complexo de interesses prevalecentes na coletividade.

Nesse passo, cumprir deveres e reconhecer e respeitar direitos do administrado é atender ao interesse público. Só assim estará sendo observado o interesse público primário, que é o verdadeiro e único interesse público.

Quando o Poder Público sabe e reconhece a sua falta de razão tem o dever de pôr fim ao litígio. Destaca Eduardo TALAMINI (2004, p. 09):

O agente público tem o dever de agir dessa forma pelas mesmas razões que lhe impunham proceder assim fora e antes do processo: atendimento do interesse público primário, o respeito à legalidade e à moralidade administrativa.

A esses fundamentos, acrescenta-se outro: cabe ao agente público procurar mitigar os prejuízos que a Administração sofreria com a derrota judicial.

Verificadas certas circunstâncias, estabelece-se um poder-dever de a Administração Pública conciliar (FIORENZA, 2010). A ausência de acordo em causas onde manifestamente cabível pode implicar responsabilização invertida ao agente público. Efetivamente, o custo com o processo a partir do momento em que a conciliação poderia haver se dado é algo injustificável. Em tal sentido, há de se considerar dois aspectos: 1) a possibilidade de desconto no valor total da obrigação eventualmente devida; 2) a ausência de incidência de juros, honorários e eventuais despesas processuais (ALVES, 2000, p. 6).

Claudio Penedo MADUREIRA (2011, p. 11) destaca que :

a Advocacia Pública, quando depreende que o administrado tem razão, tem o dever administrativo de corrigir o equívoco cometido pela Administração Pública quando da aplicação originária do Direito (autotutela), devendo, portanto, procurar compor o litígio com a parte adversária.

A Administração Pública não está dispondo de um direito seu, mas apenas cumprindo deveres que lhe cabem. E poderá fazer isso mediante acordo. Isso porque, nesse caso, não há uma renúncia da Administração a um direito que legitimamente detenha (que exige lei autorizativa, conforme se verá na sequência), mas simplesmente composição em caso em que se constata o acerto total ou parcial da posição do adversário.

Injustificável, portanto, a recusa pura e simples à conciliação não lastreada em argumentos concretos que a desautorizem especificamente (ALVES, 2000, p. 7).

Em sentido oposto ao que foi até agora referendado, há doutrinadores que entendem que a transação não é uma obrigação tampouco um dever a ser efetivado, mas algo que deve ser utilizado excepcionalmente. Nessa linha, a autora Cristiane SCHWANKA (2009, p. 149) destaca:

Não se deve jamais perder de vista que a transação possui caráter de excepcionalidade, devendo apenas ser adotada nos casos em que se justifique como condição para atingir a otimização do interesse público, mediante juízos de ponderação entre os interesses envolvidos.

Para fins desse trabalho, adota-se a corrente de que a realização de acordos é um dever da Administração Pública, à luz dos princípios constitucionais já elencados.

Para ser possível a realização do acordo, na lição de Claudio Penedo MADUREIRA (2011, p. 9), duas são as motivações teóricas: (i) o autor da ação, ou o cidadão que dirige requerimento administrativo ao poder público, tem razão, ou seja, o Direito assegura a ele a fruição do direito subjetivo alegado; (ii) a demanda não vale a pena, quando considerados os seus custos e os seus benefícios. Diante da primeira hipótese (o administrado tem razão), o acordo deve ser implementado como modo de assegurar ao cidadão o acesso a uma ordem jurídica justa e de realizar o interesse púbico. Como cediço, as ações judiciais servem para corrigir eventuais equívocos na interpretação e aplicação do Direito pelas partes. A justiça, de seu turno, relaciona-se ao convencimento, por razões sólidas (discurso), apresentadas em contraditório (debate), de que o Direito deve ser aplicado de determinado modo a determinado caso.  A coisa julgada põe fim à discussão. Mas é possível, e até mesmo recomendável (desde que o seu adversário tenha razão), que a parte convença-se, no curso do processo, das razões de seu adversário.

Outros requisitos à realização de acordo são trazidos por Carlos Ari SUNDFELD e Jacintho Arruda CÂMARA (2006, p. 5): (i) a convicção quanto à inevitabilidade do débito [Direito]; e (ii) a conveniência da solução em face das possibilidades orçamentárias e da vantajosidade de se efetivar um acordo para pagamento do débito. Assim, a viabilidade do acordo haveria de ser analisada caso a caso.

Para que o acordo seja válido, é óbvio que ele deve apresentar justificativa razoável e atender aos reclamos da boa administração. Seria inviável, por exemplo, o reconhecimento espontâneo de direito de particular arrimado em fatos muito incertos ou mesmo em interpretação jurídica heterodoxa e não consolidada. Nessa esteira, outro requisito indispensável é a demonstração de vantajosidade do acordo para a Administração (SUNDFELD; CÂMARA, 2006, p. 5).

Uma vez concretizada a transação, deve o titular da Secretaria de Estado encaminhar o instrumento ao órgão jurídico do ente político para que se possa adotar as medidas necessárias à extinção do feito judicial (Parecer GQ-03, da AGU).

Por outro lado, a Administração Pública não poderá transacionar quando estiver, direta ou indiretamente, obrigada a escolher a forma do ato administrativo imperativo ou quando o cidadão se recusa a admitir a transação proposta pela Administração (BATISTA JÚNIOR, 2007, p. 326).

Por vezes, a decisão administrativa já vem definida em lei e a Administração está impedida de valorar.

Segundo a lição de Hely Lopes MEIRELLES (1998, p. 555), a autorização legislativa será necessária para atos que importarem (i) renúncia de direitos, (ii) alienação de bens, (iii) ou assunção de obrigações extraordinárias para o Executivo. Além desses, segundo fundamentação do RE 253.885-0/MG, imprescinde de lei autorizativa casos de comprometimentos de bens, afetação de verbas, criação de cargo novo ou inusitado aumento de despesa.

Cabe aqui um exemplo citado por Eduardo TALAMINI (2004, p. 12) para diferenciar a autocomposição nos casos em que a Fazenda constata que não tem razão daqueles outros casos em que autocomposição se dá com verdadeira renúncia, que depende de lei:

Na execução fiscal, para cancelar a inscrição em dívida ativa ou substituí-la por outra em valor menor, mesmo no curso da execução, basta o Fisco constatar que errou na inscrição original, ou seja, basta averiguar que está cobrando algo indevido. Já para propriamente anistiar, perdoar uma dívida fiscal efetivamente devida, o Fisco depende de prévia lei que o autorize a tanto.

As composições que envolvam verdadeira renúncia, se e quando couberem, dependerão – essas sim – de autorização legislativa.

Porém, a autorização legislativa não precisa ser específica, pontual para cada caso. Muitas vezes, a depender dos valores constitucionais que a justificam, a autorização pode ser dada através de parâmetros gerais (TALAMINI, 2004, p. 12), como ocorre em diversos casos na esfera federal, a exemplo das Leis n°s. 9.469/97, 10.259/01, da Portaria n°. 505/02 da AGU, da Portaria n°. 915/09, da PGF, da Portaria n°. 990/09 da AGU e da Portaria n°. 2/14, da Procuradoria-Geral da União.

Apenas para ilustrar, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina entendia pela impossibilidade do Poder Público transacionar se não houver autorização legislativa, ainda que se tratasse de indenização/ressarcimento. Extrai-se da ementa do agravo de instrumento nº. 2000.001639-0, julgado em 2002:

AGRAVO DE INSTRUMENTO - TRANSAÇÃO ENTRE MUNICÍPIO E PARTICULAR VISANDO INDENIZAÇÃO TRABALHISTA NÃO HOMOLOGADA PELO JUIZ A QUO - INEXISTÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO LEGISLATIVA PARA A TRANSAÇÃO EFETUADA - RECURSO DESPROVIDO.    "Por essa razão, há necessidade de lei para alienar bens, para outorgar concessão de serviço público, para transigir, para renunciar, para confessar, para relevar a prescrição (RDA, 107:278) e para tantas outras atividades a cargo dos órgãos e agentes da Administração Pública" (GASPARINI, Diogenes. Direito administrativo. 6ª ed. rev. atual. e aum. São Paulo: Saraiva, 2001. pp. 16/17).     "À Fazenda Pública é defeso firmar 'transação', negócio jurídico de direito privado, salvo com autorização legal" (STJ - 1ª Turma, REsp 68.177-4/RS, Min. Milton Luiz Pereira, j. 2.9.96. in NEGRÃO, Theotonio. Código de processo civil e legislação processual em vigor. 33 ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2002). (TJSC, Agravo de Instrumento n. 2000.001639-0, de Balneário Piçarras, rel. Des. Francisco Oliveira Filho, j. 16-12-2002).

Referido julgado baseou-se nas premissas da doutrina clássica e pode ser que esse entendimento seja alterado com as novas disposições do Direito Administrativo contemporâneo.

No capítulo anterior restou assentado que a Administração pode realizar conciliação mesmo que não haja previsão legal autorizando-a a tanto. Cuidando-se, todavia, de bens e interesses disponíveis, o juízo a respeito da conveniência e oportunidade de fazê-lo está assentado numa liberdade restrita, não podendo o representante judicial dispor livremente deles como se estivesse cuidando de bens particulares. Por isso, é importante verificar em que casos a conciliação pode ser realizada independentemente de previsão legal.

O critério que deve inspirar o juízo do representante judicial a respeito da possibilidade da conciliação é a harmonia entre a pretensão do autor e o Direito. E isto se verifica tanto quando houver precedentes jurisprudenciais afinados com as premissas normativas da pretensão, como quando o caso não envolver discussões mais complexas – como, por exemplo, na hipótese de a conduta administrativa estar maculada com vício de legalidade perceptível primo ictu oculi, ou em que a controvérsia estiver pontuada apenas por matéria de fato e esta tiver sido devidamente resolvida, em favor do autor, durante a instrução (FIORENZA, 2010). Mas, contrario sensu, se a pretensão do autor for manifestamente improcedente não é cabível a realização de acordo, esteja o caso inserido em hipótese prevista em lei ou não.

Não se nega que existem valores, atividades e bens públicos que, por sua imprescindibilidade para que o Estado exista e atue, são irrenunciáveis e inalienáveis. Vale dizer, no que tange ao núcleo fundamental das tarefas, funções e bens essencialmente públicos, não há espaço para atos de disposição (TALAMINI, 2004, p. 02). Eduardo TALAMINI (2004, p. 02) traz a seguinte ilustração:

Existem atividades e bens que, em vista de sua absoluta essência pública, não podem ser abdicados ou alienados, ainda que mediante alguma contrapartida e nem mesmo com expressa autorização legal. Por exemplo, não se concebe que sequer por meio de lei o Poder Público possa renunciar, ainda que parcial ou pontualmente, ao seu poder de legislar ou à titularidade do poder de polícia. Do mesmo modo, não se admite que o Poder Público possa desfazer-se de uma parte do território nacional, ainda que autorizado por lei.

Contudo, conforme visto, há casos que embora o bem jurídico seja indisponível, outros valores constitucionais podem justificar a ultimação do interesse público ou até que o Estado renuncie a determinadas decorrências ou derivações do bem indisponível, nesse caso desde que mediante lei autorizativa.

Denis Borges BARBOSA (2014) após estudo discorreu acerca das condições e práticas do uso da transação nas várias esferas da Administração, abordando sua apreciação pelos Tribunais e pelos juristas pátrios, apresentando as seguintes conclusões:

a) a transação implica em disponibilidade do interesse; nem todos os interesses na esfera da Administração seriam indisponíveis, o que preserva a possibilidade de transigir;

b) impossível a transação quando existe vedação legal de seu objeto ou vedação específica para transigir;

c) a indisponibilidade patrimonial e mesmo apatrimonial quanto a bens é relativa, suscetível aos mecanismos de desafetação;

d) a disponibilidade de interesses envolvendo os poderes da Administração encontra restrições mais veementes, embora se incline a critérios como economicidade e razoabilidade;

e) existem intensas restrições doutrinárias à transação pela Administração, muito embora a jurisprudência pareça prestigiar mais intensamente o requisito da competência legal do agente transigente do que o conteúdo dos interesses transigidos;

f) admite-se a transação extrajudicial, muito embora a maioria dos textos legais, pareceres e julgados enfatizem a desejabilidade ou mesmo obrigatoriedade que a transação seja judicial;

g) no tocante à transação tributária, prevista no CTN, encontram-se normas legais abrangentes, não questionadas judicialmente prevendo acertamento na totalidade do objeto do tributo; mas a maioria dos índices pesquisados aponta para a restrição objetiva da matéria transacionável, e imposições de cautela específica;

h) entrevê-se indisponibilidade dos interesses contratuais da Administração quando vinculados ao exercício da supremacia;

i) a transação judicial é extensamente praticada, seja como instrumento de eficiência, seja como instrumento de razoabilidade;

j) é particularmente consagrada na doutrina, jurisprudência, e pelos órgãos de tutela da Administração a transação em matéria já consolidada pela jurisprudência dominante;

k) a transação, especialmente em matéria tributária, suscita importantes questões quanto à isonomia e transparência.

Da referida pesquisa o autor demonstra que a Administração estaria autorizada a utilizar da transação sempre que o conflito esteja judicializado.

A questão da existência de maciça jurisprudência contrária ao ente público, que seria autorizativa para a celebração da transação, foi analisada pelo Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, por meio da Informação n? 57/2000, a qual contém a seguinte recomendação[34]:

e)  a transação judicial, mesmo que respaldada em lei genérica, restaria inadmissível, acaso envolvesse, exemplificativamente, questões controvertidas, ou tratando de matérias inéditas, a respeito das quais inexistissem posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais fartos e dominantes

(…);

f)  a celebração de acordo judicial seria possível de ser efetivada, repisamos, uma vez que autorizada em lei, e desde que alcançasse situações ou temas sobre os  quais houvesse farta e dominante jurisprudência; onde pudesse materializar -se vantagem efetiva e inequívoca para o Poder Público, e/ou em que,  inquestionavelmente, a Administração estivesse fadada a ser condenada. Portanto, em cada caso, caberia à Administração demonstrar e comprovar clara, objetiva e formalmente, as reais e efetivas vantagens que adviriam da aludida celebração, considerados os princípios da economicidade e da razoabilidade (…);

Jorge Ulisses Jacoby FERNANDES (2000, p. 110-112) recomenda:

é temerário, porém, fazer acordo – transigir – quando a questão versa sobre teses inovadoras, sem precedentes jurisprudenciais; assuntos não decididos pela Justiça, com base em mera probabilidade, avaliado por juristas, ainda que especialistas. Assim, para fazer acordo em questão que envolva meramente Direito é recomendável a prévia existência de firme e remansosa jurisprudência contrária ao interesse da Administração, ou quando o Supremo Tribunal Federal - a mais alta Corte de Justiça - tenha se pronunciado conclusiva e inequivocamentesobre a questão.

A conclusão que se chega é que o Poder Público tem o dever de realizar acordos, inclusive prescindindo de prévia autorização legislativa. Contudo, necessário atentar que há casos em que não se é possível transacionar e casos que a lei prévia se mostra necessária, a exemplo dos casos que importem renúncia de direitos, alienação de bens, afetação de verbas ou inusitado aumento de despesa para o Poder Executivo.

4.4 A UTILIZAÇÃO DO ACORDO COMO REALIZAÇÃO DO ESTADO À LUZ DOS PRINCIPAIS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS ADMINISTRATIVOS: UMA VISÃO CONTEMPORÂNEA.

Na análise dos princípios constitucionais administrativos já tratados no capítulo segundo, tem-se que, em relação à questão da atividade de conciliação ou acordos da Administração Pública, é importante destacar, inicialmente, o princípio do interesse público correlacionado à subordinação ao princípio da dignidade da pessoa humana. A vontade geral legítima deve preponderar sobre a vontade egoisticamente articulada, observando-se que a vontade egoísta pode em muitos casos ser a do Estado e aí não poderá prevalecer. É o caso, por exemplo, em que, havendo precedentes suficientes firmados, o Estado insista em utilizar as vias recursais. Nessa hipótese não estará sendo realizado o interesse público, na forma como preconizado pela Constituição. Juarez FREITAS (2004, p. 35) destaca:

Desse modo, não consulta o interesse público, por exemplo, que persista o modelo iníquo de desobediência às ordens judiciais pela Administração Pública, incorrendo no abuso de recursos judiciais meramente protelatórios. Com efeito, a invocação do interesse público, maculado por supostas razões subalternas do Estado, não pode servir de biombo ou argumento para o desacato ou crônicos descumprimento das decisões judiciais, nem para o acintoso menosprezo dos direitos fundamentais e, não raro, para manobras protelatórias ofensivas à dignidade da prestação da tutela jurisdicional.

Conforme observa o citado jurista, é justamente essa relatividade que caracteriza o princípio do interesse público que torna justo admitir transações, ainda que cuidando de direitos outrora tidos como indisponíveis. Nesse caso, “não se infirma, ao contrário, valoriza-se o princípio ao se tentar a solução de consenso marcada pelo exercício da racionalidade dialógica, na senda das transformações em curso” (FREITAS, 2004, p. 34).

Pertinente, aliás, a referência à decisão do Supremo Tribunal Federal no já mencionado RE 253.885-MG, sob a relatoria da Ministra Ellen Gracie, em que se observa que há casos em que o princípio da indisponibilidade do interesse público deve ser atenuado, mormente quando se tem em vista que a solução adotada pela Administração é a que melhor atenderá à ultimação desse interesse.

Outro princípio que merece consideração é o da proporcionalidade, especialmente na parte que se refere à impossibilidade de o Estado agir de modo insuficiente na consecução de seus objetivos enquanto Estado, o que impõe à Administração Pública uma obrigação de agir no sentido de criar mecanismos que viabilizem a realização das transações em juízo, quando cabíveis.

Quanto ao princípio da legalidade é interessante notar a existência no direito administrativo atual de uma superação da legalidade estrita, devendo-se interpretar o Direito em sua totalidade sistemática e aberta, conforme já verificado anteriormente. Nesse contexto, nas palavras de Emmerson GAZDA (2006) não se coaduna com o princípio da legalidade como entendido na atualidade a posição preestabelecida que muitas vezes se encontra judicialmente contra a realização de acordos pela existência de um suposto “posicionamento da Administração” contrário à pretensão em discussão ou pela ausência de uma súmula administrativa específica, apesar de se tratar de matéria já pacificada.

Do princípio da legalidade decorrem outros importantes princípios, tais como o da finalidade e da autotutela. O primeiro, José Afonso da SILVA (2008, p. 335) ensina que:

 de fato o [princípio da finalidade] é [um aspecto da legalidade], na medida em que o ato administrativo só é válido quando atende ao seu fim legal, ou seja, o fim submetido à lei. Logo, o fim já está sujeito ao princípio da legalidade, tanto que é sempre vinculado.

O princípio da autotutela ou autotutela administrativa consiste no poder-dever de a própria Administração exercer o controle de seus atos. No exercício deste poder-dever a Administração, atuando por provocação do particular ou de ofício, reaprecia os atos produzidos em seu âmbito, análise esta que pode incidir sobre a legalidade do ato ou quanto ao seu mérito. Na primeira hipótese, a decisão administrativa pode ser no sentido de sua conformidade com a ordem jurídica, caso em que será o ato terá confirmada sua validade; ou pela sua desconformidade, caso em que o ato será anulado. Na segunda hipótese, poderá a Administração decidir que o ato permanece conveniente e oportuno com relação ao interesse público, caso em que permanecerá eficaz; ou que o ato não se mostra mais conveniente e oportuno, caso em que será ele revogado pela Administração.

O princípio da autotutela sempre foi observado no seio da Administração Pública, e está contemplado na Súmula nº 473, do Supremo Tribunal Federal[35].

Quanto ao princípio da imparcialidade, denominado pelo Constituinte de impessoalidade, tem-se que deriva do princípio da igualdade e, como tal, fixa ao Estado-Administração a obrigação de observância dos precedentes judiciais firmados e da jurisprudência.

Consoante Juarez FREITAS (2004, p. 49):

segundo o princípio, a Administração Pública precisa dispensar tratamento isonômico a todos, sem privilégios espúrios, tampouco qualquer manobra persecutória. Quer-se a instauração, acima de sinuosos personalismos (sem prejuízo da valorização diferencial do bem agente público), do governo dos princípios, em lugar de idiossincráticos projetos de cunhos particularista e antagônico à consecução do bem viver.

Assim, não pode o Estado, sob a alegação de estar observando o que denomina de interesse público secundário, desviar-se de cumprir o princípio da isonomia, uma vez que este não pode ser sobrepujado por questões de arrecadação de um governo, deixando o acerto de contas com o cidadão para momento futuro (GAZDA, 2006).

A mesma conclusão é a que se chega à luz dos princípios da moralidade e da confiança ou boa-fé nas relações administrativas. Quando o Estado-Administração deixa de agir objetivamente pautando sua conduta pelo acertamento geral das obrigações que o próprio Estado, na sua função Judiciária, já fixou como devidas, fere o princípio da moralidade administrativa e o subprincípio da probidade administrativa. Desrespeita, ainda, o princípio da confiança que “estatui o poder-dever de o administrador zelar pela estabilidade decorrente de uma relação timbrada por uma autêntica fidúcia mútua, no plano institucional” (FREITAS, 2004, p. 60), quebrando algo essencial à própria existência do Estado que é a “confiança de um povo em si mesmo e nas instituições públicas” (FREITAS, 2004, p. 61).

Na mesma linha, seguem os agentes administrativos (incluídos nessa categoria os Advogados Públicos) que, tendo o poder-dever de analisar os casos concretos e realizar a composição das controvérsias já pacificadas, deixam de fazê-lo. Se o Estado (Juiz) já firmou entendimento sobre determinada matéria não há razão para que esse mesmo Estado (Executivo) não cumpra o entendimento favorável ao administrado.

Para que se possa aplicar a jurisprudência, o entendimento já deve estar sedimentado pelas Cortes Superiores e o caso em análise não deve ter qualquer elemento novo que possa implicar na alteração do entendimento já firmado.

Além disso, negar um direito que se sabe existente – ou porque a questão não envolve discussões mais profundas ou porque a jurisprudência já assentou entendimento nesse sentido[36] – é uma conduta repudiada, até mesmo pelo legislador processual, que a tipificou como litigância de má-fé, nos termos do art. 17, incisos I, VI e VII, do Código de Processo Civil[37]. E partindo da Administração Pública essa conduta é ainda mais reprovável, tendo em vista que razões éticas e políticas baseadas no fundamento da existência do Estado e em seus fins recomendam que lhe seja atribuído um padrão moral de conduta mais elevado (FIORENZA, 2010).

De outro lado, o princípio da publicidade ou máxima transparência gera o dever de motivar o não-acordo, de modo a permitir ao cidadão o conhecimento das razões que levam ao tratamento diferenciado em relação às situações em que é realizado o acordo, permitindo-lhe o exercício da atividade de fiscalização da atuação da Administração Pública.

Diversa não é a situação à luz do princípio da segurança das relações jurídicas, a que está vinculado o princípio da motivação. Ensina Juarez FREITAS (2004, p. 62) que “toda discricionariedade resta vinculada aos motivos que obrigatoriamente devem ser dados […] evitando-se, sempre que possível, qualquer decisão unilateral, desmotivada e instabilizadora de direitos”.

Quanto ao princípio da unicidade da jurisdição, o seu estudo para o presente trabalho comporta duas vertentes: a primeira, sob a face da possibilidade de controle judicial dos atos administrativos tidos como discricionários e a segunda, sob a face de que este princípio impõe uma obrigação de observância às decisões judiciais.

Sob a primeira vertente, Juarez FREITAS (2004, p. 71) atesta que “o agente administrativo é livre apenas para pretender o melhor”. E arremata:

se é certo que a discricionariedade tem sido identificada como a liberdade para a emissão de juízos de conveniência ou de oportunidade quanto à prática de determinados atos, tendo, aliás, Ernst Forsthoff descrito o poder discricionário como implicando conformidade jurídica de tudo o que for julgado oportuno pela Administração, não é menos certo que ele próprio cuidou de ressalvar que este poder haveria de ser exercido em consonância com o interesse geral e que a Administração não deveria agir segundo o seu bel-prazer.

É verdade e inegável que não exista uma solução única correta, mas também é verdade que “a liberdade, positiva ou negativamente considerada, precisa ser usufruída de acordo com a vontade do sistema, cuja abertura e indeterminação fazem múltiplas as possibilidades de aplicação do Direito” (FREITAS, 2004, p. 71). As escolhas, em maior ou menor escala, devem encontrar fundamentação na regularidade do sistema.

Pelo exposto, ainda que exista corrente doutrinária defendendo que a possibilidade de realizar acordos é ato estritamente discricionário, isso, por si só, não torna os agentes administrativos desobrigados de propor e realizar transações, quando esta se mostre, dentro de uma linha de razoabilidade, a solução mais adequada (GAZDA, 2006).

Sob a segunda vertente, o princípio da unicidade da jurisdição impõe uma obrigação de observância às decisões judiciais. Ora, o sistema brasileiro é instituído de tal forma que os atos administrativos sejam passíveis de submissão do controle judicial, o que significa dizer que o entendimento final sobre determinada questão pelo sistema instituído pela Constituição é do Judiciário. Dessa maneira, uma vez que sejam fixados de forma definitiva precedentes judiciais sobre uma questão, não há espaço dentro da lógica do sistema para que sejam mantidas as orientações e interpretações administrativas em sentido contrário, salvo para modificar o entendimento do próprio precedente (GAZDA, 2006).

No mesmo sentido é a diretriz que se extrai do princípio da economicidade ou da eficiência e da otimização estatal. Com efeito, como visto, o administrador público tem a obrigação de buscar a melhor atuação e, nessa busca, deve ter em conta sempre “a solução mais adequada economicamente ao gerir a coisa pública” (FREITAS, 2004, p. 74). Conforme observa Juarez FREITAS (2004, p. 75), o princípio da economicidade “está a vedar, terminantemente, todo e qualquer desperdício de recursos públicos ou aquelas escolhas que não possam ser catalogadas como verdadeiramente comprometidas com a busca da otimização ou do melhor”. É a Administração Pública prestando seus serviços com presteza, perfeição e rendimento funcional.

Assim, Emmerson GAZDA (2006) conclui que o Estado-Administração, ao insistir em recorrer de decisões judiciais que seguem precedentes já sedimentados pelas Cortes Superiores e sem qualquer elemento novo que possa implicar alteração do entendimento, não observa os princípios da economicidade e da eficiência, aumentando custos de sua própria estrutura de defesa e do Judiciário, mormente se considerada a possibilidade de propor acordos nesses casos ou estabelecer, via Legislativo, solução para todos os casos, nas hipóteses de demandas em massa. Essa última solução, aliás, é inclusive imperativo constitucional de isonomia, conforme vem sendo dito na presente exposição, implicando observância do interesse público primário do Estado na realização dos interesses legítimos dos administrados. O Poder Judiciário é uma das funções do Estado. Não é lógico se falar em o Estado litigando contra seu próprio entendimento.

Ainda quanto à eficiência, no âmbito tributário há a possibilidade de haver um acordo entre o Fisco e o contribuinte, através de transação, arbitragem ou conciliação judicial (art. 171, do Código Tributário Nacional), pois agiliza a gestão da Fazenda Pública, vindo ao  encontro dos interesses da sociedade. A prática da transação tributária, para os que a defendem, traz a certeza da arrecadação, provinda do acordo entre a Fazenda e o sujeito passivo, e apresenta como consequência economia de tempo e de dinheiro. 

O princípio da economicidade justifica, ainda, que em Juízo, uma vez superada a possibilidade de defesa jurídica com êxito, possa passar-se ao acordo como forma de defesa econômica. Sobre a questão, exemplificou Antonio Fernando Schenkel AMARAL E SILVA (2004, p. 93):

A defesa jurídica é o primeiro campo de resistência, tendo lugar nos processos enquanto exista ou persista discussão sobre a melhor exegese da norma. Exemplo atual: se é possível reconhecimento do trabalho rural do menor de 14 anos de idade. O INSS aguarda uma posição do STF.

A econômica, segunda linha de defesa, exsurge após a pacificação da matéria. Destarte, se o STF decidir em favor do trabalho adolescente, uma vez provado o labor nos autos, o acordo é a melhor opção para o réu (a outra seria deixar de recorrer), uma vez que se defenderá interesse econômico através de uma conciliação.

A economia de divisas viria do “desconto” de parte da condenação, bem como na falta de sucumbência quanto aos honorários advocatícios. A dinâmica da audiência viabilizaria um pacto vantajoso para os contendores.

Bem preparado será o causídico que souber diferenciar os casos e escolher a melhor defesa ao ente patrocinado.

Nesse ponto cabe trazer à tona a seguinte dúvida: é legítimo o particular que tem razão renunciar, nessa composição, ao seu direito ou a uma parte dos seus direitos (por exemplo, abrindo mão das verbas de sucumbência, aceitando um parcelamento etc.)? Dito de outro modo, o Estado pode pagar menos que o devido?

Em resposta, possível afirmar que, em regra, é legítimo o particular renunciar seu direito ou parte dele, visto que eventuais concessões que este faça à Administração Pública não esbarrarão em nenhum óbice de indisponibilidade, pois a sua posição, nas relações obrigacionais com a Administração, em regra, são disponíveis (TALAMINI, 2004, p. 10). Consequentemente, de regra, o Estado não pode pagar menos que o devido, em razão dos princípios que deve obedecer. Mas se a parte adversa (particular) dispõe desse direito, não há óbice ao pagamento a menor, mormente porque o Estado está cumprindo sua função de satisfazer o interesse público (incluído o particular, nesse caso) e respeitando a vontade do cidadão.

Mas aqui cabe uma observação: haverá ofensa ao princípio da moralidade e da boa-fé, por parte da Administração, quando esta passa a usar tal expediente de modo reiterado e sistemático para aviltar os direitos dos particulares. Vale dizer, é censurável a eventual postura da Administração de inicialmente resistir ao cumprimento de suas obrigações, embora desde logo sabedora da sua falta de razão, apenas para mais adiante obter uma composição com parcial renúncia a direitos pelo particular (TALAMINI, 2004, p. 10).

Mas essa constatação não afasta o cabimento de composições envolvendo os entes públicos. Reputar que o desvio de finalidade é a regra geral e proibir por isso a composição direta pelas partes equivaleria a tomar a patologia por normalidade. O desvio deve ser combatido, e não transformado em padrão, em premissa para outras conclusões (TALAMINI, 2004, p. 10-11).

O princípio da legitimidade, por sua vez, tem por objetivo estabelecer que o controle dos atos públicos seja feito de uma forma mais substancialista. Juarez FREITAS (2004, p. 76), indicando o art. 70, da Constituição Federal[38] como matiz do princípio, “o que se almeja é vedar o escudo do formalismo, graças ao qual foram e têm sido cometidas inúmeras violações impunes”. E vai além, com afirmações que mostram bem a adequação à Constituição e aos princípios da Administração Pública na atuação dos Advogados Públicos que ultrapassa a mera observância às diretrizes formais e abstratas da Administração:

Ao trazer o princípio da legitimidade para o interior do sistema constitucional, o constituinte procedeu exatamente como fizera em relação ao princípio da moralidade. É dizer, ofereceu soluções e possibilidade heterodoxas para o enfrentamento de situações-limite. Tornou jurídicos imperativos que, de certa maneira, transcendem o Direito posto. Positivou por antecipação, o que ainda não acolhido pela ordem jurídica positiva. Apesar dos riscos dessa inserção, a larga experiência histórica indica que pode estar correta, pois não se deve laborar com categorias excessivamente endereçadas para a determinação estreita, sob pena de impotência dos controles para enfrentar grandes burlas ao sistema (FREITAS, 2004, p. 77).

O que se extrai, portanto, do princípio da legitimidade é que a atuação da Administração Pública deve estar voltada à realização material dos fins do Estado, onde o espaço para a conciliação é muito mais amplo do que tradicionalmente se imagina.

A conciliação permite, outrossim, uma resolução mais rápida da demanda, e aí reverencia o princípio da duração razoável do processo, introduzido na Carta Magna pelo constituinte derivado por intermédio da Emenda Constitucional nº. 45/2004, art. 5º, inciso LXXVIII[39]. Disso decorre ainda outro aspecto positivo da conciliação, caso se difunda sua adoção, que é o desafogamento do Judiciário, resultando na diminuição de processos em trâmite e, via de consequência, uma maior celeridade também na resolução de causas em que a conciliação não tiver sido realizada (FIORENZA, 2010).

Também reduzirá o esforço e o trabalho repetitivo dos Advogados Públicos na defesa de teses muitas vezes inúteis, que podem-devem ser resolvidas de outras formas, à luz dos princípios constitucionais (FIORENZA, 2010).

Ainda, em termos de atividade de conciliação e de defesa da Administração em Juízo, pode-se identificar na Constituição uma série de direitos fundamentais a serem observados, tais como o direito à dignidade e à vida (que muitas vezes são eliminados pela utilização de recursos meramente protelatórios em casos em que poderia haver inclusive solução consensual); direito à igualdade e à propriedade (desrespeitados quando com a mera finalidade de caixa não se aplicam a todos indistintamente os direitos em massa reconhecidos definitivamente pelo Judiciário, com o respectivo pagamento das diferenças devidas); e direito à boa administração (prejudicado pela violação aos princípios da Administração Pública).

Reflexamente pode-se falar ainda que os direitos sociais e os direitos políticos reforçam a ideia da conciliação, porquanto, quando esta se realiza em casos em que efetivamente se verifica o direito do postulante, concretizam-se os fins do Estado.

Anote-se, também, que a conciliação é instrumento de participação direta dos jurisdicionados na atuação de um dos poderes do Estado, o que é sempre salutar para o incremento da cultura democrática, além de atender ao princípio insculpido no parágrafo único, do art. 1º, da Constituição Federal[40]. E justamente por pressupor a participação ativa da vontade das partes é que a resolução da lide por meio de acordo é a forma que mais se aproxima do escopo de pacificação social buscado pela jurisdição.

Com tantas vantagens e sendo um instrumento privilegiado na consecução de princípios e valores constitucionais, e não havendo óbice a que a Administração Pública a realize – ao invés, ela tem, observadas certas premissas, o dever de fazê-lo, conforme se verá –, já tarda o momento da superação da cultura do conflito pela cultura da conciliação.

Como consequência da existência de toda essa gama de direitos fundamentais, surgem juridicamente importantes limitações à atuação estatal em Juízo, tanto no aspecto negativo quanto no aspecto positivo.

No aspecto negativo, por exemplo, no sentido de (i) não obstaculizar a realização de acordos ou a fruição do direito já reconhecido judicialmente (no caso concreto e/ou por jurisprudência consolidada dos Tribunais Superiores) com medidas protelatórias ou condicionantes que não se extraem da Constituição, (ii) não realizar interpretações restritivas relativas à conciliação que não se compatibilizem com a proporcionalidade e um juízo de ponderação, (iii) não criar mecanismos que tornam na prática impossível ou muito complexa a realização dos acordos ou da fruição do direito reconhecido, dentre outros.

No aspecto positivo, consagrando um dever de agir do Estado, por exemplo, (i) com a obrigação de o Legislativo criar normas jurídicas que tornem mais ágil o reconhecimento pelo Estado-Administração do que já definido pelo Estado-Juiz, ampliando as possibilidades de acordo e aplicação administrativa a todos os casos idênticos do que for definitivamente julgado em última instância, (ii) a organização da burocracia do Estado visando a facilitar os acordos e evitar recursos desnecessários, dentre outros.

Verifica-se, em conclusão, que a conciliação é instituto repleto de vantagens e via de promoção de diversos princípios insculpidos na Constituição Federal. Sua aplicação não imprescinde que seja realizada apenas nos Juizados Especiais e na a Justiça do Trabalho. A falta de acordos em outras searas decerto seja causa da propalada cultura do conflito que predomina na mente dos operadores do direito, que obstrui a visão destes e das partes da relação litigiosa para as suas vantagens (FIORENZA, 2010).

Tem-se, ainda, que toda a ação do Estado-Administração no sentido de vedar ou limitar a prática de conciliação em Juízo em casos em que se mostre cabível pela análise dos fatos e precedentes judiciais acerca da matéria mostra-se em descompasso com as diretrizes fixadas pelos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal antes elencados, padecendo, portanto, do vício de inconstitucionalidade (GAZDA, 2006).

4.5 A REALIZAÇÃO DE ACORDOS À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA E DOS PRECEDENTES JUDICIAIS.

Uma das características do Estado Moderno é a separação dos poderes, de forma independente e harmônica entre si, evitando-se a situação do regime absolutista anterior. Nesse quadro, cada um dos poderes do Estado assume uma função primordial, não com exclusividade, mas com certa primazia de ação, distinguindo-se claramente o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Assim, pode-se dizer que o Estado é uno; as suas funções é que são partilhadas.

Na parte que interessa ao presente estudo, uma vez definida pelo Poder Judiciário a forma de tratamento de uma determinada matéria em que é litigante o próprio Estado, com o esgotamento por parte do Poder Executivo de todos os meios disponíveis até as instâncias superiores, a observância do princípio da separação dos poderes impõe que o próprio Estado, em nível de governo e administração (Poder Executivo), observe a decisão tomada (Poder Judiciário), sob pena de se contrariar toda a lógica da estrutura estatal, seus fins e razão de existência.

Uma das formas de realização do próprio Estado nessa seara é a definição pelo Poder Executivo de medidas a serem aplicadas pelos entes meramente administrativos em observância às decisões judiciais reiteradas (jurisprudência), independentemente de expressa previsão Constitucional de efeito vinculante, uma vez que a vinculação decorre da própria existência do Estado na formulação atual, o que já está fixado constitucionalmente.

Outra forma de realização do Estado é a existência de uma diretiva implícita no sentido de realização de acordos em processos judiciais em que se afigurem situações idênticas ou semelhantes às já sedimentadas jurisprudencialmente. A partir da teoria política, verifica-se que a regra em casos consolidados pelo Judiciário deve ser a observância dos precedentes, com atuação voltada para a concretização das decisões proferidas.

Precedente, na lição de Luiz Guilherme MARINONI (2013, p. 213-214):

constitui decisão acerca de matéria de direito […] e não matéria de fato. […]. Contudo, para constituir precedente, não basta que a decisão seja a primeira a interpretar a norma. É preciso que a decisão enfrente todos os principais argumentos relacionados à questão de direito posta na moldura do caso concreto. […]. Em suma, é possível dizer que o precedente é a primeira decisão que elabora a tese jurídica ou é a decisão que definitivamente a delineia, deixando-a cristalina.

Significa dizer que os precedentes legitimamente firmados pela atividade jurisdicional vinculam o Estado como um todo, o que inclui o Poder Executivo, como algo decorrente da própria natureza das coisas, da própria existência do Estado, que não pode logicamente ao mesmo tempo definir sua posição quanto a determinada questão pela função judicial típica e ao mesmo tempo descumprir tal posição no âmbito executivo.

Assim, a indiscutível força persuasiva que têm os precedentes judiciais na solução de casos concretos, notadamente em vista da crescente força vinculativa que lhes vem dando o legislador brasileiro faz com que se qualifique, juntamente com a jurisprudência, como padrão valorativo adequado a balizar a atividade interpretativa tendente à celebração de acordos no processo (MADUREIRA, 2011, p. 10).

Nessa seara, caberá a realização de acordos para pôr fim a litígios quando já existir precedente judicial pré-fixado ou jurisprudência consolidada.

4.6 EXEMPLOS DE RAMOS DO DIREITO PÚBLICO QUE OCORRE A TRANSAÇÃO.

Constatando que a negociação há muito se opera na órbita estatal, Tomáz-Ramón FERNÁNDEZ e Eduardo GARCÍA DE ENTERRÍA (1999, p. 663) registram não ser possível ignorar que a “Administração negocia e que a negociação converteu-se em um instrumento imprescindível para a tarefa de administrar”.

Um bom exemplo se deu com a promulgação da Lei de Arbitragem – Lei nº. 9.307/96. O ordenamento jurídico brasileiro, de longa data, possibilitava a solução de conflitos por meio da arbitragem[41], seja para dirimir disputas internacionais, como para solucionar matérias de Direito Privado, especialmente, de Direito Comercial. É certo que, inicialmente repudiada, a arbitragem foi sendo gradativamente inserida em no ordenamento jurídico pátrio ao longo do tempo. A consagração do instituto somente ocorreu com a promulgação da Lei de Arbitragem (Lei n°. 9.307/96), cujo art. 1° dispõe que as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.

Mesmo após a promulgação da referida legislação, no campo doutrinário do Direito Público, muito se debateu sobre a viabilidade jurídica da arbitragem no âmbito dos contratos administrativos, alegando-se que a Administração Pública não estaria autorizada, em virtude dos princípios da indisponibilidade e da supremacia do interesse público, a renunciar ao direito de recorrer ao Judiciário para dirimir suas controvérsias, bem como, que tal atitude implicaria violação ao princípio da legalidade, tendo em vista que a solução arbitral pode, em tese, fundar-se por equidade (WALD; MORAES, 2004, p. 268). Mas não é verdade. De longa data (desde 1973, ao analisar um caso de 1942) o Supremo Tribunal Federal já decidiu ser aplicável a arbitragem no Direito Público[42], assim como também o Superior Tribunal de Justiça[43]. Mesmo porque isso se opera nas relações contratuais administrativas, a exemplo da Lei nº. 8.987/95[44], que regula o regime de concessão e permissão de serviços públicos previstos no art. 175, da Constituição Federal[45]. A lei de concessão de serviço público (Lei nº. 11.079/04[46]) está ampliando e esclarecendo o previsto no art. 54, da Lei nº. 8.666/93[47], sob a máxima proteção do manto constitucional, tendo em vista o disposto nos arts. 173, § 1°, inciso II e 175, § único, inciso I, da Constituição Federal[48].

Constatando que a transação é um instituto jurídico eminentemente de Direito Privado, sustenta Paulo Henrique FIGUEIREDO (2004, p. 133-134) que com algumas adaptações tem ela sido adotada no Direito Público pátrio, em especial no Direito Tributário, no qual foi recepcionado com algumas modificações, como uma das formas de extinção das obrigações tributárias por meio do art. 156, do Código Tributário Nacional[49]. Aduz ainda o autor que o art. 171 do mesmo Códex[50] estabelece que a celebração da transação poderá ser facultada em legislação específica a qual indicará a autoridade competente para autorizar a transação em cada caso.

Se, por um lado, o Direito Tributário impõe algumas limitações e pressupostos específicos que acabam por restringir as possibilidades de celebração, em razão de sua subordinação ao princípio da tipicidade; de outro, o princípio da legalidade expresso no art. 37, da Constituição Federal, não afasta a possibilidade de transação, apenas determina a necessidade de lei que indique a autoridade competente e procedimento para que a Administração fiscal realize a transação (BATISTA JÚNIOR, 2007, p. 425).

Onofre Alves BATISTA JÚNIOR (2007, p. 427) com precisão afirma que as regras, bem como os princípios que disciplinam o procedimento de celebração de transações administrativo-tributárias, são normas do direito administrativo, tais como os princípios da eficiência administrativa, da impessoalidade, da legalidade, da razoabilidade, da moralidade, entre outros.

Não se desconhece que a aceitação da possibilidade de celebração administrativa tributária no direito brasileiro, entretanto, não é pacífica. Para diversos doutrinadores[51], o instituto da transação não poderia existir no ramo tributário, sob o argumento de que a autoridade tributária não poderia fazer concessões ao efetuar a atividade administrativa do lançamento tributário,  mas, deveria apenas fazê-lo conforme determina a lei.

Porém, na realidade, a transação administrativo-tributária representa contrato de Direito Público, o qual possibilita, em razão à existência de controvérsias e mediante concessões recíprocas, a fixação acordada do montante do crédito tributário, anteriormente ao lançamento, ou ainda, a extinção de obrigações tributárias por meio de redução ou perdão de multas, ou até mesmo o afastamento do tributo, tal como se dá na remissão ou anistia de tributos. Destaca-se que a remissão nada mais é do que modalidade de transação administrativo-tributária, uma vez que é terminativa do litígio (BATISTA JÚNIOR, 2007, p. 419).

É o próprio Código Tributário Nacional, em seu art. 171 que, ao estabelecer cláusula setorial autorizativa, admite que a Administração celebre transação com o cidadão, que permite que o crédito se mantenha tributário e que, pelo consenso, sejam acertados alguns elementos ou aspectos da obrigação tributária controversa.

Insta frisar que, em sede do Direito Tributário, a exigência de lei específica autorizativa visa atender o comando constitucional expresso no art. 150, § 6°, da Constituição Federal[52], de tal forma que a renúncia de receita não viole a competência constitucionalmente estabelecida. Sem embargo, não existem barreiras constitucionais impeditivas para que seja outorgada legalmente à Administração a faculdade de disposição do crédito tributário, senão apenas alguns cuidados e limitações especiais (BATISTA JÚNIOR, 2007, p. 430-431).

A disposição contida no art. 225, do texto constitucional[53] estabelece que o meio ambiente, bem de uso comum do povo, é absolutamente indisponível. Qualificadas como de interesse difuso, as questões afeitas ao meio ambiente tendem a ser absolutamente indisponíveis, e que, por isso mesmo, afastariam a possibilidade de transações administrativas. Entretanto, mesmo diante da restrição inconstitucional, podem existir situações em que a possibilidade de transação é autorizada por lei, relativizando-se, por consequência, a indisponibilidade do bem.

Consoante Onofre Alves BATISTA JÚNIOR (2007, p. 518-519):

[...] quanto ao meio ambiente, por exemplo, a experiência provou que a disposição do responsável pelo dano de se adequar às exigências da lei ou de satisfazer integralmente o dano acaba por atender, finalisticamente, aquilo que seria de se buscar ou já se está postulando na via judicial. Poucos valores metaindividuais têm caráter tão indisponível quanto ao meio ambiente, a ponto da Constituição Federal prever que as condutas lesivas acarretam sanções civis, penais e administrativas (§ 3? do art. 225). No entanto, nas ações envolvendo danos ao ecossistema na zona costeira, permitem-se os acordos judiciais, nos exatos termos do parágrafo único do art. 7? da Lei n? 7.661/88,  na evidência de que os termos ‘indisponível’ e ‘transação’ não são incompatíveis.

Viu-se que, de regra, interesses indisponíveis não comportam transação. Todavia, mesmo interesses absolutamente indisponíveis por determinação constitucional admitem a possibilidade de transação parcial, desde que o objeto do acordo diga respeito a aspectos adjacentes da questão central, como no caso do meio ambiente em que o Termo de Ajustamento de Conduta confere a possibilidade de celebração de transação, no caso de questões familiares referentes a alimentos – inicialmente indisponíveis porque irrenunciáveis – que admite transação entre as partes, nas questões do direito à honra ou à própria imagem – direito fundamental reconhecido pelo art. 5?, inciso X da Constituição Federal[54] – em que as consequências patrimoniais da violação podem ser objeto de transação (BATISTA JÚNIOR, 2007, p. 519-520).

Mais recentemente, outros diplomas legais foram consolidando, no ramo do Direito Público, a adoção de mecanismos alternativos para a solução de controvérsias. A promulgação da Lei n° 11.196/05, a qual alterou a redação dada ao art. 23 da Lei 8.987/95 – Lei das Concessões –  estabelece de forma expressa (art. 23-A) que o contrato de concessão poderá prever o emprego de  mecanismos privados para a resolução de disputas decorrentes ou relacionadas ao contrato, inclusive a arbitragem, a ser realizada no Brasil e em língua portuguesa, nos termos da Lei n° 9.307, de 23 de setembro de 1996.

Posteriormente, o Decreto n°. 6.017/07, que regulamentou a Lei n° 11.107/05 – Lei dos Consórcios Públicos, dispôs que os contratos de programa deverão, no que couber, atender à legislação de concessões e permissões de serviços públicos e conter cláusulas que estabeleçam o foro e o modo amigável de solução das controvérsias contratuais (art. 33, inciso XVI[55]).

Também merece consideração a questão dos acordos e os precatórios, dispostos no art. 100, da Constituição Federal[56]. A solução de controvérsias não configura burla ao sistema de precatórios ou desrespeito ao princípio da impessoalidade. A solução se dá por decisão de índole administrativa, antes mesmo de expedida ordem de pagamento definitiva pelo Judiciário. Acordo que venha a ser celebrado, judicial ou extrajudicialmente, antes de expedido o precatório, produz um dever de pagamento por si só. Não é um pagamento a ser realizado em virtude de ordem judicial, na forma determinada pela Constituição aos precatórios, razão pela qual não há óbice à realização de acordos. Contudo, em fase de execução de débitos é preciso ter cuidado. Com a Emenda Constitucional n° 62/09, tornou-se necessária a edição de lei própria para disciplinar os critérios para a celebração de acordos para quitação de débitos em fase de execução que tenham sido colhidos pelo regime transitório do art. 97, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias - ADCT[57].

Por oportuno, cumpre registrar que não se desconhece que o instituto da transação desde longa data é admitido em sede de Direito do Trabalho, bem como no Direito Penal, no qual quando a própria liberdade individual pode estar em jogo, deve ser aberta a possibilidade de transação (BATISTA JÚNIOR, 2007, p. 461).

São exemplos de normativas expressas que autorizam a transação, na esfera da União, a transacionar em juízo, por exemplo: a Lei Complementar n?. 73, de 10 de fevereiro de 1993, a Lei n?. 7.347, de 24 de julho de 1985, a Lei n?. 8.884, de 11 de junho de 1994, a Lei n?. 9.469, de 10 de julho de 1997, a Lei n?. 10.259, de 12 de julho de 2001, a Lei n?. 10.667, de 14 de maio de 2003, o Decreto n?. 4.250, de 27 de maio de 2002, a Instrução Normativa n?. 5, de 11 de julho de 2002, do INCRA, a Portaria n°. 505/02 da AGU, a Portaria n°. 915/09, da PGF, a Portaria n°. 990/09 da AGU, a Lei n?. 11.941, de 27 de maio de 2009, a Lei n?. 12.153, de 22 de dezembro de 2009, a Portaria n°. 2/14, da Procuradoria-Geral da União, dentre outros.

Outros exemplos são: o dever de a Administração Pública indenizar os prejuízos indevidamente causados ao particular; o dever de anular seus próprios autos ilegítimos; o dever de recompor os contratos administrativos, inclusive quando a equação econômico-financeira estiver desequilibrada em desfavor do particular contratado (TALAMINI, 2004, p. 04).

São apenas alguns exemplos que evidenciam a existência, no ramo do Direito Público e, em legislações específicas, de autorização para a utilização de mecanismos estimuladores de pacificação de conflitos por meio de métodos alternativos para solução de controvérsias.

Assim, é possível afirmar que a utilização de instrumentos consensuais no âmbito do Direito Público, seja em sede administrativa ou judicial, indica, não somente uma linha de transformação da dogmática clássica fundamentada do ato de autoridade, mas também uma evolução do próprio modo de agir da Administração Pública.

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Sobre o autor
Rafael Schreiber

Procurador do Município de Joinville (SC), MBA em Direito da Economia e da Empresa, Especialista em Direito Público pela LFG, formado em Direito pela FURB com habilitação em Direito Internacional. Presidente da Associação dos Procuradores do Município de Joinville - APROJOI.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SCHREIBER, Rafael. A possibilidade de realização de acordos judiciais e extrajudiciais por advogado público, sem prévia lei autorizativa: Métodos operacionais à luz do Neoconstitucionalismo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4122, 14 out. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29917. Acesso em: 25 nov. 2024.

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