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A antecipação da tutela em face da Fazenda Pública

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10/07/2014 às 16:16
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2 A ANTECIPAÇÃO DE TUTELA EM FACE DA FAZENDA PUBLICA

Muito se tem discutido acerca do cabimento do instituto da antecipação de tutela prevista no art. 273 do CPC contra a Fazenda Pública. Dentre os argumentos acerca da impossibilidade da concessão da medida contra o ente estatal estão: as prerrogativas do Poder Público em Juízo; a remessa obrigatória; a inexistência de dano irreparável ou de difícil reparação contra a Fazenda ou de abuso do direito de defesa ou manifesto propósito protelatório da fazenda; a necessidade de precatório para o pagamento das obrigações de pagar quantia certa e as restrições previstas na legislação.

2.1 Prerrogativas da Fazenda

Em razão da própria atividade de proteger o interesse publico, a Fazenda Pública ostenta condição distinta das demais pessoas físicas ou jurídicas de direito privado. Ela atua no processo exatamente em razão da existência de interesse público, e assim deve-lhe ser possibilitado atuar da melhor e mais ampla forma possível, evitando-se condenações injustificáveis ou prejuízos para o Erário.           

Todavia, para que atue da melhor forma possível é imprescindível que lhes sejam conferidas condições adequadas para tanto. Dentre as tais, estão as chamadas prerrogativas processuais. Elas devem estar revestidas de razoabilidade, observado o princípio da igualdade nos termos definidos por Aristóteles, qual seja, tratar os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual.

Antes de adentrar nas prerrogativas propriamente dita, questiona-se o que é o termo Fazenda Pública. Esse termo possui diversos sentidos, mas os principais são o sentido técnico e o administrativo.

Quanto ao sentido administrativo, o termo Fazenda Pública é utilizado como o órgão que detém a responsabilidade sobre a situação financeira do Estado; essa é a razão de muitas vezes serem utilizadas as expressões Ministério da Fazenda e Secretaria da Fazenda.[38]

Por outro lado, o sentido técnico refere-se às próprias pessoas jurídicas de direito público interno em Juízo. Alguns doutrinadores, como Odete Medauar, definem que essa expressão é atribuída à Fazenda quando atua na qualidade de parte em ações judiciais, sob o enfoque dos ônus patrimoniais da ação.[39]

Portanto, “Fazenda Pública” no sentido técnico processual diz respeito à União, Estado, Municípios e ao Distrito Federal. A doutrina ainda acrescenta as autarquias e as fundações públicas.

A razão para a definição do que seja a Fazenda reside na identificação dos legitimados a gozar das prerrogativas processuais conferidas a seus entes integrantes. Apesar de haver argumentos no sentido de que essas normas regradoras violariam o princípio da isonomia, o posicionamento dominante é quanto a sua constitucionalidade.  

Sendo o Estado uma organização burocrática de alta complexidade, que cuida, de forma simultânea, de interesses direcionados às mais variadas áreas, o tratamento processual diferenciado destinado à Fazenda Pública não compromete o princípio constitucional da isonomia.[40]

Sendo assim, quando a Fazenda Pública atua em juízo, possui determinadas prerrogativas que não são estendidas aos particulares, mas que, ao mesmo tempo, também não ferem o princípio da isonomia. São necessárias para que a Fazenda possa representar o poder público em seu aspecto financeiro.

No que tange especificamente às suas prerrogativas, podemos verificar o juízo privativo, cabendo ressaltar que no âmbito federal ele também beneficia as empresas públicas, conforme art. 109, I, da Constituição Federal; os prazos mais dilatados, conforme os artigos 188 e 277 do CPC; a dispensa do pagamento de despesas judiciais que, conforme o art. 27 do CPC, será paga ao final pelo vencido, sendo que também está dispensada de preparo dos recursos – art. 511 do CPC; o procedimento próprio para execução de créditos em favor da Fazenda Pública, e a possibilidade de obtenção de medida liminar na ação de arresto sem justificação prévia (art. 816, inc. I do CPC).

É possível ainda citar como prerrogativas, e são as indicadas como principais óbices à tutela antecipada contra a Fazenda: procedimento próprio para execução das condenações da Fazenda Pública em pagamento de quantia certa, conforme art. 100 da Constituição; o duplo grau de jurisdição obrigatório ou remessa oficial das sentenças proferidas contra a Fazenda, art. 475, II, do CPC e o regime próprio quanto às decisões proferidas contra si em caráter provisório.

Muito se discutiu, e até hoje doutrinadores impugnam esse tratamento diferenciado dipensado à Fazenda Publica quando ‘e parte em ação judicial, pois ocorreria desrespeito ao principio da isonomia conferir aos entes públicos privilégios não extensíveis aos particulares.

O Estado brasileiro, para se beneficiar quando parte em processo judicial, desde sempre manipulou a legislação (e, desde 1998, com maior liberdade, as medidas provisórias) para criar situações inexistentes para os particulares e dessarazoadas e injustificáveis mesmo para quem, por definição, conglomera interesses de toda uma coletividade. A desigualdade por ele perpetrada, para alcançar esse mister, ‘e indesmentivel.[41]

O fundamento para as prerrogativas é a própria supremacia do interesse publico sobre o privado. Ela, por conglomerar o direito de toda a coletividade, recebe esse tratamento diferenciado

Frise-se, ainda , que alem da necessidade de haver previsão legal expressa para que seja legitima a norma que concede prerrogativas à Fazenda Publica em nome da supremacia do interesse publico sobre o privado, é  indispensável que a mesma tenha sido lastreada pelos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, sob pena de ser repudiado pelo próprio Poder Judiciário. [42]                                

Não se pode esquecer, todavia, que se de um lado o Estado possui diversas prerrogativas, de outro, os particulares também necessitam de instrumentos eficazes em face desse Estado, a fim de serem preservados seus direitos individuais.

O problema surge, portanto, ao tentar-se compatibilizar as prerrogativas da Fazenda com o instituto da tutela antecipada, que procura preservar o provável direito do autor, o qual tem urgência em desfrutá-lo, e que fica obstaculizado em razão da necessidade de remessa oficial, de pagamento por precatório e do regime próprio quanto às decisões proferidas contra si em caráter provisório.

Essas três prerrogativas, dentre outras especificidades da relação jurídica da Fazenda, acabaram por ser apontadas como principais impedimentos à concessão da antecipação de tutela contra a Fazenda.

2.2 Principais óbices à antecipação contra a Fazenda

Apesar de a previsão do art. 273 do CPC não restringir a aplicabilidade da antecipação de tutela a nenhuma parte, o artigo deve ser interpretado dentro do sistema processual e constitucional.           

Da leitura do próprio Código de Processo Civil se observa que a necessidade de remessa oficial às sentenças contra a Fazenda obstaculiza a antecipação dos efeitos da tutela. Já a Constituição, ao prever a o sistema de inscrição em precatório das quantias certas a serem pagas pela Fazenda, também torna discutível sua aplicação. Ainda, defende-se que não há a ocorrência dos pressupostos alternativos indispensáveis à concessão da tutela, quais sejam, risco de dano irreparável ou abuso de direito: tais não seriam existentes quando presente a Fazenda em Juízo.

Afora esses óbices implícitos, há ainda um óbice expresso: a Lei n. 9.497/97 expressamente estendeu à tutela antecipada as restrições à concessão de liminares contra o Poder Público.

Sendo assim, os óbices à antecipação contra a fazenda podem ser divididos entre óbices infraconstitucionais e constitucionais.

Quanto aos primeiros, são então as previsões da Lei n. 9494/97 que estendeu expressamente as limitações à concessão de liminar em face do Poder Publico às antecipações de tutela. Tal previsão legislativa desencadeou inúmeras discussões doutrinarias, uma vez que é polemica a extensão da aplicação das regras de um instituto processual, a medida liminar, a outro que possui diversas peculiaridades que desde o distingue, qual seja, a antecipação de tutela. Al’em dessa, a exigência geral de reexame necessário em causas que envolvam a Fazenda Publica, polemizando a questão de que tal previsão somente se aplica às sentenças finais, e não às decisões interlocutórias; e alegada impossibilidade de verificação dos pressupostos alternativos para concessão de tutela antecipada, ou seja, Inexistência de dano irreparável ou de difícil reparação contra a Fazenda ou de Abuso do direito de defesa ou manifesto propósito protelatório da Fazenda.

No que tange ao óbice constitucional, trata-se da necessidade de observância do sistema constitucional de precatórios, que seria um óbice à tutela antecipada nos casos de obrigações de pagar quantia certa pois essas deveriam obedecer àquela ordem cronológica.

Todavia, apesar de todas as restrições previstas, ainda assim cada caso deve ser analisado dentro de seu contexto, uma vez que por diversas vezes não é possível aguardar-se a remessa oficial, a inscrição no precatório ou a observância das normas legais restritivas. Nesse sentido, inclusive, já decidiu o STJ no julgamento do Resp n. 442.693.[43]

2.2.1 Óbices infraconstitucionais

Os óbices infraconstitucionais são determinações previstas em lei que, ao determinar certas peculiaridades processuais em relação à Fazenda Pública, tornam polêmica a aplicação da tutela antecipada.

Neste especial, vale, inclusive, assinalar que, em inúmeras situações, os Poderes Legiferantes (Executivo, por vias transversas, e Legislativo, por imposição constitucional) tem comumente confundido os diferentes institutos da tutela cautelar (de nítida função acautelatória, relativa a uma jurisdição imprópria (extensiva), com referibilidade processual) e da tutela antecipatória (de nítida função cognitiva, relativa a uma jurisdição própria (de conhecimento), com referibilidade material), editando normas regulamentares de difícil interpretação, como o caso da Lei n. 9494/97 que, ao disciplinar mecanismos restritivos em relação à concessão da tutela antecipatória, acabou por estabelecer uma  inconveniente (e equivocada) similitude com a tutela cautelar, dispondo, em seu. Art. 1, a plena aplicabilidade das restrições ao deferimento de liminares acautelatórias, expressamente consignadas nos arts. 5 e parágrafo único e 7. da Lei n. 4348/64, art. 1 e seu par. 4 da Lei 5.021/66 e nos arts. 1,3 e 4 da Lei n. 8437/92, às medidas antecipatórias previstas nos arts. 273 (tutela antecipada) e 461 (tutela específica), ambos do CPC.[44]

2.2.1.1 As limitações da Lei 8437/92 ou 9494/97

Antes mesmo da publicação da Lei n. 9.494/97, já havia normas limitadoras às liminares contra a Fazenda em sede de mandado de segurança e ação cautelar. Essas restrições estavam conexas à conjuntura econômica da época.

Assim, exemplificativamente, a Lei n. 2.770, de 04 de maio de 1956, que suprimiu a concessão de medidas liminares para a liberação de mercadorias de procedência estrangeira, teve por finalidade a proteção da incipiente indústria automobilística nacional; a Lei n. 5.021/66, que limitou o pagamento de vencimentos e vantagens em sede de mandado de segurança, teve por objetiva restringir a discussão da reforma administrativa que se implantava à época; a Lei n. 8.076, de 23 de agosto de 1990, que impediu as medidas liminares em cautelares e mandados de seguranças, tinha por objetivo liminar a discussão sobre as reformas econômicas implantadas pelo Plano Collor.[45]                                                       

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A Lei n. 8.437/92 estabeleceu limitações à concessão de liminares em mandado de segurança e em ações cautelares em face do Poder Público. [46] Inicialmente, a doutrina divergia quanto à aplicação de suas disposições à antecipação de tutela em face da Fazenda, o que restou superado com o advento da MP n. 1.570, de 26 de março de 1997, posteriormente convertida na Lei n. 9.494, de 10 de setembro de 1997, que disciplinou taxativamente determinadas hipóteses de antecipação de tutela contra a Fazenda, situação em que o legislador estendeu-lhe expressamente as limitações da Lei n. 8.437/92.[47]

Segundo Reis Freire, apesar de muitas normas, anteriores à Constituição Federal, imponham limites para a concessão de liminares e de antecipação da tutela, a doutrina e a jurisprudência têm se posicionado de forma majoritária no sentido de que as mesmas afrontam diretamente princípios constitucionais expressos e implícitos, ferindo, assim, o poder cautelar geral, o poder cautelar genérico e o poder cautelar de forma ampla; defendem, assim, a ineficácia jurídica dos mesmos, a qual deve ser declarada pelo julgador.[48]

Parte-se, então, a uma análise crítica de alguns dispositivos previstos nessa Lei que tem sua constitucionalidade questionada.

O art. 1, caput da Lei nº 5.021/66 prevê que o pagamento de vencimentos ou vantagens pecuniárias asseguradas em sentença final a servidor público federal, da Administração direta e autárquica, e a servidor estadual e municipal, somente será efetuado relativamente às prestações que se vencerem a partir do ajuizamento da inicial.

De fato, sendo dispositivo previsto para aplicação no restrito âmbito do mandado de segurança, carece de sentido quando se tenta transpantá-lo para o processo comum de conhecimento. Ora, quando se estabelece que as vantagens pecuniárias de servidores só abrangerão os valores que se vencerem a partir do ajuizamento da inicial, apenas se está limitando o âmbito de aplicação do mandado de segurança, que não se presta como ação de cobrança de valores pretéritos, nos termos da Súmula 271 do STF. Assim, os valores anteriores ao ajuizamento do mandado de segurança. Assim, os valores anteriores ao ajuizamento do mandado de segurança deverão ser pleiteados pela ação judicial apropriada, que, no caso, é uma ação de conhecimento condenatória.[49]

Todavia, como a antecipação de tutela ocorre no próprio processo de conhecimento, se é aplicado esse dispositivo à antecipação de tutela estará inviabilizada a cobrança destas vantagens anteriores ao ajuizamento da ação de conhecimento: tornar-se-iam incobráveis.

Outro dispositivo questionável é o que estendeu à tutela antecipada o art. 5, parágrafo único da Lei. 4.348/64, que condiciona a execução da sentença ao trânsito em julgado quando a decisão tiver por objeto as matérias previstas na referida lei. Ora, esse dispositivo diz respeito ao provimento final pois, se aplicado à antecipação de tutela, causa a dúvida acerca da possibilidade de execução provisória nos casos em que não for concedida a antecipação de tutela. Conclui-se, assim, que a concessão da antecipação não constitui parâmetro que condicione a eficácia da sentença final.

Apesar de todas as controvérsias, o STF tem se posicionado, mesmo que em cognição sumária, pela constitucionalidade das restrições à antecipação de tutela. Após a edição da Lei n. 9494/97, o Presidente da República e as mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal ingressaram com a Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 4, com o objetivo de se obter provimento judicial que impedisse a concessão de tutela nos casos previstos pela lei. O Pleno da Corte, em 12-02-1998, deferiu parcialmente o pedido de medida cautelar, suspendendo, com efeito vinculante e eficácia ex nunc, a prolação de qualquer decisão sobre pedido de tutela antecipada contra a Fazenda que tenha como pressuposto a inconstitucionalidade do art. 1 da Lei.

Já em 01-10-2008 foi julgada, por maioria, procedente a Ação Declaratória de Constitucionalidade, entendendo os Ministros que o art. 1 da Lei 9.497/97 é constitucional.

Apesar dessa decisão, que entendeu compatível a extensão, à antecipação de tutela, das restrições previstas nos arts. 5º e seu parágrafo único e 7º da Lei nº 4.348, de 26 de junho de 1964, no art. 1º e seu § 4º da Lei nº 5.021, de 9 de junho de 1966, e nos arts. 1º, 3º e 4º da Lei nº 8.437, de 30 de junho de 1992, ainda assim o próprio STF e os Tribunais preconizam ser prudente a análise de cada caso concreto, a fim de sopesar os interesses conflitantes.

Embora tenha reconhecido a constitucionalidade das restrições e vedações à concessão da tutela antecipada contra o Poder Público, o STF vem conferindo interpretação restritiva ao referido dispositivo, diminuindo seu âmbito de abrangência para negar reclamações constitucionais em algumas hipóteses que lhe parece cabível a medida antecipatória, mesmo para determinar o pagamento de soma em dinheiro.[50]

O TRF 1 Região nesse sentido já decidiu, entendendo que os impedimentos previstos no art. 1 da Lei 9.497/97 não é irrestrita.[51]

2.2.1.2 Reexame necessário como condição de eficácia da decisão contra a Fazenda

Grande parte da doutrina considera a necessidade de reexame necessário como um dos maiores obstáculos à concessão da antecipação de tutela contra a Fazenda.[52] Para superá-lo, predomina o entendimento de que essa necessidade de remessa oficial diz respeito à sentença, e não à decisão interlocutória.[53]

Todavia, esse argumento não é suficiente, pois leva à conclusão de que o art. 475 impediria a execução imediata da sentença contra a Fazenda, mas não esta execução em face de tutela antecipada.

Em verdade, a análise objetiva do dispositivo não é suficiente para afastar o art. 475 II do CPC, pois pode levar ao entendimento de que, enquanto a sentença, proferida após cognição plena e exauriente, não pode ser imediatamente executada, aquela decisão, obtida após cognição sumária, pode.

Deve ser observado que os efeitos de uma sentença ainda não recorrida são iguais aos de uma sentença proferida contra particular na qual foi interposta apelação com efeito suspensivo. Ora, o recebimento de uma apelação com efeito suspensivo não impede a concessão de tutela antecipada, pois, se assim o fizesse, tornaria inócuo o instituto. É imperiosa uma análise sistemática do artigo da remessa oficial e da antecipação de tutela para que se conclua acerca de seus efeitos.

Conforme leciona Marinoni, entender que o art. 475 impede a tutela antecipatória contra a Fazenda implicaria em inconstitucionalidade em face da previsão do art. 5., XXXV da Constituição, que garante o direito de acesso à Justiça.[54]

Outro argumento que rebate a consideração da previsão da remessa como óbice à tutela antecipada é o que compara essa restrição à eficácia de uma sentença contra a qual foi interposto apelo com efeito suspensivo. Ora, assim como o recebimento de um apelo em seu duplo efeito não impossibilita a antecipação de tutela e a execução imediata da sentença, também a sentença proferida contra a Fazenda não pode afastar a possibilidade de antecipação de tutela: seus efeitos são os mesmos.

Não é possível, portanto, a remessa oficial ser considerada como impedimento assim como não se pode falar em impossibilidade de antecipação de tutela proferida contra particular de cuja sentença final possa ser interposta apelação recebida no duplo efeito.

A exigência geral de reexame necessário em causas que envolvam a Fazenda Pública refere-se apenas à sentença final (art. 475, I , do CPC) – e não ao pronunciamento antecipador. Essa conclusão deriva da interpretação tanto literal quanto teleológica da disposição legal sobre reexame. Aliás, mesmo quando a antecipação de tutela é veiculada no bojo da própria sentença, ela não fica sujeito ao efeito suspensivo de eventual apelação interposta pela Fazenda ( art. 520, VII do CPC). Essa constatação confirma que a eficácia da tutela não se subordina ao reexame necessário. Vale aqui a diretriz que tem sido repetidamente afirmada pelo STJ no sentido de que o reexame necessário não se põe como condição de eficácia daqueles provimentos cuja apelação ressente-se de efeito suspensivo.[55]

Se imaginarmos que, interposto o apelo com efeito suspensivo, não possa mais ser concedida a antecipação da tutela, é negar existência a esse próprio instituto. A garantia da reapreciação da sentença e o efeito suspensivo não impedem que o relator do processe antecipe a decisão a fim de que seja evitado perigo da demora, bem como de punir o apelante que abusa de seu direito.[56] Da mesma forma deve ser considerado quanto à remessa oficial.

Teori Albino Zavascki leciona que deve a remessa oficial e a decisão antecipada serem compatíveis entre si, devendo aquela ser efetivada sem prejuízo da execução de suas providências decorrentes.[57]         

Outro argumento interessante acerca dessa questão é o que considera que a previsão da necessidade remessa é indispensável à formação de coisa julgada material, e não da produção de seus efeitos. A Súmula 423 do STF prevê que: Não transita em julgado a sentença por haver omitido o recurso ex officio, que se considera interposto ex lege. Defende-se que essa expressão “não poderá ser executada” não possui o mesmo sentido que “não poderá ser executada”, pelo fato de que o trânsito em julgado só ocorrerá após iniciada a execução provisória, se interposto recurso sem efeito suspensivo.

Ainda, e por fim, contestando o preceito de que a remessa oficial seria impedimento, cabe ressaltar o fato de que, em sede de liminar em mandado de segurança, ela nunca o foi. Mesmo que sujeitas a reexame, podem ser executadas.

Para corroborar o entendimento doutrinário de que ela não é óbice, cita-se precedente de Tribunal, inclusive, tem entendido que a previsão da remessa oficial não se estende às antecipações de tutela.[58]

2.2.1.3 Inexistência de dano irreparável ou de difícil reparação contra a Fazenda ou de Abuso do direito de defesa ou manifesto propósito protelatório da fazenda

Outro impedimento à concessão da antecipação de tutela é a inaplicação dos pressupostos alternativos nas relações jurídicas com a Fazenda Pública. Isso porque parte da doutrina afirma ser impossível a existência de dano irreparável a ela. Afirma-se que, se é o próprio Estado que se encontra na relação, não há o que se preocupar acerca do seu adimplemento: ele sempre poderá arcar com os débitos decorrentes de uma ação judicial, tornando-se desnecessária a antecipação de tutela.[59]

Da sua primeira leitura é possível abstrair o equívoco da premissa: ora, nem sempre a Fazenda está em juízo para discutir pretensões de cunho patrimonial. Como ficariam as questões que dizem respeito a relações pessoais? Ainda, a Fazenda pode causar danos irreparáveis ou de difícil reparação a direitos patrimoniais cuja proteção possa ensejar uma antecipação da tutela de cunho delcaratório, constitutivo, condenatório de entrega de coisa certa ou incerta, ou, ainda, antecipação de tutela mandamental.

O termo “difícil reparação” deve ser interpretado no sentido de que, posteriormente, quando do provimento final, este não seja mais útil ao que demanda contra a Fazenda.

Cabe ainda ressaltar, quanto ao tema, que muitas vezes o direito patrimonial está associado a um direito não patrimonial, sendo que esse poderá ser afetado de modo irreparável. Isso ocorre, por exemplo, quando, por ação ou omissão do Estado, alguém sofra dano irreparável em direito fundamental como a saúde ou a educação, ou ainda não possa manter seu sustento.

Esse argumento, portanto, de inexistência de dano de difícil reparação, em se tratando da Fazenda, se adotado, traz como conseqüência a possibilidade de o autor ter seu direito lesionado.

Passando à análise do outro pressuposto alternativo, argumenta-se que a Fazenda não atuaria de forma abusiva na defesa de seu direito, pois, se o fizesse, agiria com litigância de má-fé, não encontráveis na atuação dos procuradores da Fazenda. Esses agem conforme os princípios da moralidade e da legalidade, bem como veracidade e probidade.

Muitos doutrinadores associam o abuso do direito com a atuação de litigância de má-fé.[60]

Qualquer comportamento que possa ser entendido como abuso de direito de defesa ou manifesto propósito protelatório do réu deve conduzir o magistrado, desde que presentes os pressupostos do caput do art. 273, `a antecipação da tutela fundamentada no inciso II. O art. 17, ao cuidar dos atos de litigância de ma-fe, e um bom referencial de comportamentos que devem ser levados em conta para fins de antecipação da tutela com base nesse dispositivo de lei, sem prejuízo de outras situações, que não estejam lá previstas, levem à mesma conseqüência. [61]      

Todavia, há quem afirma ser possível abusar-se do direito de defesa, ou ainda, demonstrar manifesto propósito protelatório sem, contudo, ser litigante de má-fé.[62] O renomado processualista destaca que é possível haver abuso de direito sem, contudo, atuar como litigante de má-fé. Exemplifica o autor citando a situação em que a Fazenda interpõe recurso: existem recursos reconhecidamente como protelatórios, que causam lentidão na prestação do direito. Nesses casos, a Fazenda abusa do seu direito de defesa, sem, todavia, agir com litigância de má-fé. Reconhecer que não é possível a concessão da antecipação de tutela por abuso de direito ou manifesto propósito protelatório pela Fazenda é permitir que ela faça uso de atos que estendam a litispendência do processo indefinidamente.

2.2.2 Óbice Constitucional

Há situações, também, em que os próprios princípios constitucionais estão em conflito com normas previstas na Constituição, como é o caso da previsão constitucional da execução por precatório.

A doutrina, portanto, elenca como a necessidade de expedição de precatório paga pagamento de quantia certa óbice à antecipação da tutela. O art. 100 da Constituição Federal prevê que as condenações de pagar quantia certa, proferidas contra a Fazenda Publica, serão pagas através de precatório, com exceção das de pequeno valor.[63] Nesse caso, faz-se imprescindível a existência de transito em julgado da sentença.

Todavia, mais uma vez a regra não pode ser aplicada sem consideração do sistema jurídico, ou seja, sem analisar os interesses que possam ser prejudicados por sua aplicação.

Então, in casu, tem-se dois institutos onde o fator tempo é tido diferentemente para cada um deles, isto é, para o precatório, a demora é mesmo da sua essência e, ao contrário, para a tutela antecipada, o vetor temporal há de ser vencido a todo custo, sob pela de malogro de tal meio procedimental.

[...]se a ordem jurídica haverá de ser cumprida em nível de tutela de urgência, a principiologia acima mencionada recomenda que é proporcional, razoável e jurídico que o desembolso, em caso que tal, seja levado a efeito fora dos parâmetros do requisitório.[64]

2.2.2.1 Necessidade de cumprimento de condenação de pagar quantia certa através do instituto do Precatório

Argumenta-se, portanto, que a antecipação de tutela contra a Fazenda, nessas situações, só poderia ocorrer através do instituto do precatório, com exceção das obrigações de pequeno valor, para as quais esse foi dispensado.

No regime das ordenações Manuelinas e Filipinas, a execução contra a Fazenda Pública se processava da mesma forma que contra qualquer pessoa, constituindo-se a penhora no ato que revela a essência da execução, sem qualquer privilegio a proteger os bens do Estado.

No entanto, essa legislação foi alterada por sucessivas leis que excluíram da penhora bens e mais adiante, a renda e ordenado de ofício dos nobres, sem licença régia, passando-se, posteriormente, a considerar que os bens da Fazenda Nacional só poderiam ser alienados e penhorados por Decreto da Assembléia-Geral, vindo, afinal, a constar do art. 15, par. 15, da Constituição do Império,o princípio da impenhorabilidade dos bens públicos.

Com a impossibilidade de penhorar bens públicos, a antiga precatória de vênia transformou-se no precatórios, como conhecemos atualmente, aparecendo pela primeira vez no art. 41 do Decreto n. 3.084, de 5/11/98, que aprovou a Consolidação das Leis referentes à Justiça Federal, embora com o nome de “precatória”.[65]                                

O precatório é o instituto mediante o qual o Judiciário requer ao Poder Executivo que reserve determinada quantia para o pagamento de quantia ao qual foi condenado judicialmente. Isso tudo porque, diferentemente dos demais devedores, o Poder Público não sofre a penhora, e o credor, consequentemente, não possui essa garantia.

A execução contra a Fazenda é uma execução especial. A sua especialidade reside em que a Fazenda Publica apresenta uma forma particular para o cumprimento de seus débitos pecuniários ( art. 100, CRFB), na medida em que os bens públicos, porque se encontram vinculados em principio a uma finalidade publica, são inalienáveis (art. 100, CC), não sendo passiveis de penhora (art. 649, CPC). Mesmo os bens públicos alienáveis – os bens públicos dominicais – têm regime jurídico próprio de alienação, não sendo possível sua venda em face de execução forçada (arts. 101, CC, e 23, Lei 9.636, de 1998). Consideram-se Fazenda Publica a Uniao, os Estados, os Municípios, o Distrito Federal, suas autarquias e fundacoes publicas. As empresas publicas e as sociedades de economia mista não entram no conceito de Fazenda Publica para os efeitos dos arts. 730, 731, do CPC.[66]        

Há diversos posicionamentos doutrinários acerca da definição da necessidade de precatório como impedimento à antecipação de tutela em face da Fazenda. Fredie Didier Jr., por exemplo, entende que a emenda que previu a necessidade de precatório seria inconstitucional, uma vez que afronta, diretamente, o direito fundamental à tutela preventiva e efetiva. Afrontaria normas fundamentais, pretéritas e impositivas.[67]       

Esse vinculo ao transito em julgado é fruto de emenda à Constituição que, seria despiciendo dizer, estivéssemos, eventualmente, em outro lugar do mundo, deve observar determinadas regras que lhe são anteriores e impositivas. Assim, na exata medida em que a necessidade de aguardar o transito em julgado para que o jurisdicionado se beneficie de uma decisão judicial que o favorece tem aptidão para colocar em risco uma situação de ameaça ou criar uma lesão de difícil reparação ou irreparável, o lapso temporal correspondente atrita com a proteção do art. 5, XXXV. Nesse sentido, a emenda constitucional é inconstitucional. [...] é que não há problema nenhum em atrelar o pagamento ao transito em julgado, justamente porque é de tutela antecipada que se está a tratar aqui. Nos casos em que não há necessidade de antecipação de tutela, aguarda-se o transito em julgado; em outras situações em que há urgência ( art. 273, I, por exemplo), antecipa-se a tutela, não obstante o texto da Constituição. Se antecipar é efetivar antes do tempo, que seja antes do transito em jugado. [68]        

O STJ, inclusive, no julgamento do REsp n. 834.678-PR, já se manifestou no sentido de admitir o cumprimento de tutela antecipada contra a Fazenda para o pagamento de quantia independentemente de precatório, uma vez ser ele incompatível com a tutela de urgência. [69] Há, ainda, dois posicionamentos opostos acerca dessa questão. Um deles determina que a emissão do ofício precatório só ocorreria com a prolação de uma sentença, e não de uma decisão interlocutória, uma vez que o artigo é claro ao se referir a “sentença judiciária”. Assim, estaria inviabilizada a concessão de antecipação de tutela contra a Fazenda, em caso de pagamento de quantia certa.[70]

Diverso posicionamento é no sentido de que, não se referindo o artigo às condenações realizadas em sede de decisão interlocutória, não é possível uma interpretação extensiva do artigo e considerar a restrição aplicável às decisões interlocutórias.[71]

Há, ainda, posição no sentido de que ambos os entendimentos citados estariam incorretos, uma vez que partem de uma interpretação literal dos artigos.[72] Conforme essa corrente, o art. 100 da CF não pode ser interpretado literalmente, e defende que a antecipação de tutela não poderia ser obstada porque, embora não seja considerada titulo judicial, nunca se defendeu o não cabimento da sua execução provisória.

Imperioso citar o entendimento de Vicente Greco Filho, que argumenta que a admissão da dispensa do sistema de precatório não tornaria os bens da Fazenda penhoráveis, sendo que o exeqüente restaria sem garantia nenhuma para sua execução. Considera que os créditos devidos pela Fazenda não poderiam ser pagos sem dotação orçamentária e que o Poder Judiciário não possui poder constritivo sobre a Fazenda para coagi-la a pagar.[73]

A posição doutrinaria majoritária é a que não dispensa o precatório, ainda que para a concessão de antecipação de tutela nas execuções para pagamento de quantia certa. Todavia, cada situação deve ser analisada peculiarmente: não se pode olvidar que, enquanto a demora é inerente ao precatório, a antecipação de tutela é um instituto que objetiva exatamente impedir os efeitos cruciais do tempo.

É perfeitamente cabível, portanto, que, em casos especiais, quando o magistrado entenda pela impossibilidade de espera pelo exeqüente, seja afastada a necessidade de inscrição na ordem do precatório, e seja deferida a antecipação de tutela.

O artigo 100 da Constituição Federal, com o procedimento estabelecido no art. 730 do Código de Processo Civil, não pode ser considerado como um dispositivo que prevalece em qualquer situação, independentemente dos princípios constitucionais ou bens jurídicos em conflito.[74]

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Sobre a autora
Flávia Faermann

Procuradora do Estado do Rio Grande do Sul, graduada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS, especialista em Direito Processual Civil pela PUC/RS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FAERMANN, Flávia. A antecipação da tutela em face da Fazenda Pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4026, 10 jul. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30154. Acesso em: 24 abr. 2024.

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