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A antecipação da tutela em face da Fazenda Pública

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10/07/2014 às 16:16
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3 O CONFLITO ENTRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E O INTERESSE PÚBLICO

Procura-se justificar a atribuição de tratamento especial à Fazenda, quando parte em juízo, em face da proteção que ela confere ao interesse público.                                

Na verdade, o interesse social e o geral estão relacionados com a coletividade ou com a sociedade civil, enquanto o interesse público mantém ligação com o Estado. Ao Estado cabe não somente a ordenação normativa do interesse público, mas também a soberana indicação do seu conteúdo. O interesse público constitui interesse de que todos compartilham. A finalidade dos atos administrativos deve vir informada pelo interesse público. A expressão interesse público evoca, imediatamente, a figura do Estado e, mediatamente, aqueles interesses que o Estado escolheu como os mais relevantes, por consultarem aos valores prevalecentes na sociedade. Há uma aproximação terminológica entre interesse público e interesse geral. O interesse público não é a soma dos interesses particulares, sendo certo que a Administração é competente para definir o interesse público naquilo que não constitui domínio reservado para o legislador. [75]

Todavia, tal tratamento diferenciado tem sua justificativa relativizada conforme a percepção que a sociedade tem acerca da relação entre o interesse público e o individual. Isso porque, se determinada sociedade entende que o interesse individual deve prevalecer quando em conflito com o interesse coletivo, como ocorreu, por exemplo, na era burguesa, esse tratamento desigual perde fundamento jurídico.

Dentro desse contexto, serão analisadas teorias sociais acerca da relação entre o interesse público e o privado, procurando adequá-las ao Estado de Direito conferido pela Constituição Brasileira de 1998.

3.1 Teorias sobre a posição do indivíduo em relação ao poder público

Há inúmeros estudos acerca da relação entre o interesse publico e o interesse individual, uma vez que, muitas vezes, eles entram em conflito. Esse é o caso da antecipação de tutela contra Fazenda, em que certas prerrogativas em favor do Poder Público, destinadas a resguardar o interesse coletivo, ferem o interesse individual.

Desenvolveram-se, então, diversas teorias morais que pudessem justificar a supremacia dos interesses da coletividade sobre os do particular, bem como outras que comprovavam exatamente o contrário.  Algumas delas compatibilizam-se com a Constituição de 1998, que expressamente adotou o Estado Democrático de Direito e consagrou como princípio inexorável a dignidade da pessoa humana.

Parece-nos que a afirmação da supremacia do interesse da coletividade sobre os direitos pertencentes a cada um dos seus componentes pode, do ponto de vista de uma teoria moral, ser justificada a partir de duas perspectivas diferentes, que, no entanto, mantêm alguns denominadores comuns: o organicismo e o utilitarismo. Para o organicismo, o interesse público seria algo superior e diferente ao somatório dos interesses particulares dos membros de uma comunidade política, enquanto, para o utilitarismo, ele confundir-se-ia com tais interesses, correspondendo a uma fórmula para a sua maximização. Já a tese da supremacia indondicionada dos direitos individuais sobre os interesses da coletividade assenta-se sobre o individualismo.[76]                                

3.1.1 Organicismo

O organicismo, defendido principalmente pelo sociólogo Émile Durkheim, é uma teoria que prima pelo interesse público em detrimento do individual. Entende uma comunidade como um todo composto de indivíduos que atuam como órgãos da mesma.

Os adeptos dessa teoria entendem que o objetivo máximo de uma comunidade deve ser a realização dos interesses coletivos.  

Na concepção durkheimiana de sociedade, o todo social é superior à simples soma de indivíduos, a consciência individual gera inter-relações que associam os indivíduos em vida social. Este social ultrapassa os interesses individuais gerando ações em prol da sobrevivência e desenvolvimento do grupo. Restringindo o campo de atuação da Sociologia e definindo as pretensões da citada Ciência, Max Weber delimita a atuação na compreensão e interpretação das ações sociais.

Importante citar, acerca dessa teoria, que um de seus grandes adeptos, especificadamente do organicismo modero, foi Hegel.

O Estado, como realidade em ato da vontade substancial, realidade que esta adquire na consciência particular de si universalizada, é o racional em sei e para si: esta unidade substancial é um fim absoluto, imóvel, nele a liberdade obtém o seu valor supremo, e assim este ultimo fim possui um direito soberano perante os indivíduos que em serem membros do Estado têm o seu mais elevado ser.                                                 

Quando se confunde o Estado com a sociedade civil, destinando-o à segurança e proteção da propriedade e das liberdades pessoais, o interesse dos indivíduos, enquanto tais, é o fim supremo para que se reúnem, do que resulta ser facultativo ser membro do Estado. Ora, é muito diferente a sua relação com o individuo. Se o Estado é o espírito objetivo, então só como membro é que o individuo tem objetividade, verdade e moralidade. A associação como tal é o verdadeiro conteúdo e o verdadeiro fim, e o destino dos indivíduos está em participarem de uma vida coletiva; quaisquer outras satisfações, atividades e modalidades de comportamento têm seu ponto de partida e o seu resultado neste ato substancial e universal.[77]                    

Todavia, o organicismo minimiza o ser humano, não levando em consideração que, apesar de sua função na sociedade da qual faz parte, é um valor em si mesmo, o qual deve ser respeitado. Cada pessoa possui interesses, valores e objetivos que não podem ser superados pelo interesse da comunidade: devem ser compatibilizados. Inclusive, apesar da importância da vida humada na sua dimensão publica, ela não possui qualquer sentido sem a dimensão privada.

Todavia, toda essa argumentação acerca da importância do interesse público não reflete a sociedade que foi se formando: Weber chamou de “desencantamento” do mundo o processo de superficialização das relações humanas, ocasionado principalmente pela quebra da unidade religiosa após a reforma e o avanço das ciências. Realmente, nas antigas comunidades o vínculo entre as pessoas era forte e profundo, mas foi sucumbindo nas sociedades modernas nas quais preponderam laços frágeis e artificiais.

Paulo Bonavides alerta sobre o risco do organicismo, principalmente utilizado por defensores de direito, autoritários e antidemocratas. Com o tempo, a prioridade incondicional do coletivo anula o interesse individual, que passa a servir tão somente como instrumento do organismo coletivo e superior. [78]

Juridicamente, o organicismo não se coaduna com os princípios da dignidade da pessoa humana, que não pode ser tratada como meio para algum fim. O Estado Democrático de Direito, ainda, é baseado no reconhecimento do valor fundamental da autonomia pública e privada, sendo aquela teoria incompatível com a Constituição de 1998, que define, em seu art. 1, o Estado Brasileiro como Estado Democrático de Direito e fundamentado na dignidade da pessoa humana.

3.1.2 Utilitarismo

O utilitarismo tornou-se a mais importante ideia moral e política do séc. XIX, tendo ajudado a dar rosto à estrutura das sociedades democráticas desenvolvidas do séc. XX.

Diferentemente do organicismo, o utilitarismo não prevê o interesse publico como algo diverso e superior ao individual, mas sim como um instrumento para maximizar-se os interesses dos indivíduos. Seus principais defensores são Adam Smith e Stuart Mill.

O objetivo do utilitarismo é a busca, em cada situação, de uma solução que acarrete em maior escala a satisfação do maior numero de pessoas. O utilitarismo foi igualmente denominado, na história da filosofia, de radicalismo filosófico, uma vez que propõe uma reestruturação dos valores éticos e, em alguns casos, como no pensamento de Bentham, uma reforma da própria ordem social. Longe de pregar uma moral solipsista, baseada apenas na obtenção de prazer individual, o utilitarismo, em sua concepção filosófica, compreende a utilidade igualmente como felicidade, e esta, por sua vez, como o maior prazer do maior número de pessoas.  

Todavia, também o utilitarismo é incompatível com a nossa Constituição, exatamente por causa da relevância que atribui aos direitos fundamentais. Essa teoria não vislumbra os direitos fundamentais como superiores ao interesse das maiorias. Eles serão preservados, tão somente se isso for útil à promoção do bem estar da maioria das pessoas. No Estado Democrático de Direito, os direitos fundamentais devem ser protegidos ainda que contrariem os interesses da maioria dos membros da sociedade.

Os utilitaristas defendem a manifestação de cada individuo considerando o proveito que isso tem em relação ao bem-estar geral, e não porque isso respeita a dignidade humana. Nas situações, todavia, em que os direitos fundamentais não levam à maximização dos interesses da maioria, eles são relevados. É aí que reside sua incompatibilidade com a Constituição Brasileira.

Na verdade, o utilitarismo parece equiparar as sociedades a indivíduos – aproximando-se neste ponto do organicismo. Isto porque a justiça, para as teorias utilitaristas, equivalerá à procura da medida mais favorável ao bem-estar geral, que será definido através do cômputo dos interesses de todos os membros da sociedade. Só que, com isso, estas teorias justificam a perda de direitos sofridos por uns, desde que em benefício de um bem-estar maior usufruído por outros. Não há uma preocupação com a distribuição deste bem-estar dentre os diferentes componentes da sociedade, mas apenas com a maximização geral do bem-estar. Tal como no organicismo, os indivíduos acabam sendo tratados como partes no todo, e não como fins em si, porque não se atribui relevância moral à separabilidade e à independência das pessoas.[79]

3.1.3 Individualismo        

Diferente e quase que contrariamente às teorias apresentadas, os defensores do individualismo defendem a primazia dos interesses individuais em prol do interesse coletivo.

Teoria consagrada no final do século XIX e que, diante da atual crise do Estado Social, está renascendo. Conforme essa teoria, os interesses coletivos e derivados das relações entre os membros do grupo são submetidos ao interesse individual.

O individualismo surgiu após o Estado Burguês, sendo que tal nascimento é facilmente compreensível. Durante a era burguesa, o indivíduo era apenas considerado para fins econômicos, como mero instrumento de produção e circulação de riquezas. Seus interesses pessoais, vontades, etc., eram completamente relegados, importando apenas o que o burguês desejava. O Estado, na época, não interferia nas liberdades individuais e nem no funcionamento do mercado, uma vez que sua existência era vista como um perigo à liberdade. Tal atitude é compreendida se considerado o contexto de que o Estado burguês instaurou-se após a queda do Antigo Regime, e a instauração, posterior, do Estado Social de Direito, também é compreendida após conhecidas as características da era burguesa.

Portanto, o homem, apesar de valorizado pelo individualismo, era somente considerado no âmbito econômico. As pessoas, que não burguesas, eram vistas por esses como meros instrumentos de mercado.  

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Os direitos fundamentais, sob a ótica individualista, eram, por enquanto, direitos negativos[80], ou seja, que exigiam a abstenção do Estado em relação aos indivíduos. Eles seriam como que direitos de defesa, inerentes às pessoas.

Todavia, o Estado Burguês, apesar de produzir muita riqueza, gerou muita desigualdade e miséria. Foi assim que se abriram as portas para o Estado Social, no qual foram exigidas do Estado medidas intervencionistas, a fim de proteger os mais miseráveis. Foram requeridas condições materiais básicas de existência e foi preciso abrir-se os olhos para os indivíduos que viviam ao lado. Passou-se a enxergar a pessoa sob a ótica de um grupo, carente de medidas que lhes proporcionasse uma vida mais digna. A supremacia do interesse individual sucumbiu, portanto, ao interesse coletivo. É a fase dos direitos fundamentais de segunda geração, a partir do início do século XIX.

Em síntese, na leitura estritamente individualista, a igualdade jurídica é a mera igualdade formal, com a recusa a qualquer pretensão de utilização do Direito para fins redistributivos. A solidariedade não é um principio normativo, mas apenas uma virtude humana, que escapa às considerações da ordem jurídica. E a liberdade é a não-intervenção; a simples ausência de impedimentos externos para o comportamento individual, afigurando-se irrelevante a existência ou não da possibilidade real do agente de fazer suas escolhas e de agir em conformidade com elas. [81]

Compreendendo-se que a teoria individualista preza, fortemente, a ausência de intervenção do Estado, visto como o adversário da liberdade individual, é possível depreender a razão de ela não se compatibilizar com a Constituição de 1988. Em inúmeros artigos da Carta Magna encontra-se exigência de intervenção do Estado para garantir condições sociais do povo, como os direitos sociais previstos nos artigos 6 a 11, bem como no artigo que prevê os objetivos da República Federativa do Brasil, art. 3 inciso I e III.[82]

A igualdade, no nosso ordenamento, não é apenas um limite para intervenção do Estado; ela inclusive exige a participação pública para que seja promovida ou então para que sejam redistribuídas as riquezas. A Constituição Brasileira consagra a idéia de que deve haver liberdade da pessoa humana não só em face do Estado, mas também das demais pessoas e instituições presentes na sociedade real.

3.1.4 Personalismo e a ordem Constitucional Brasileira        

O personalismo, aplicado à ordem jurídica, é o responsável por construir em seu interior uma noção de personalidade que se baseia em uma concepção pré-normativa de pessoa. Ou seja, para os persoalistas, a noção de pessoa humana deve ser reconhecida pela ordem jurídica em toda a sua plenitude axiológica. Tal qual a pessoa, a personalidade é "noção insusceptível de gradação e mensuração".

A criação de uma ordem jurídica voltada para os valores da pessoa humana era defendida, desde o primeiro quartel do século, por Mounier e posteriormente, por Maritain e Mata-Machado. O Personalismo Jurídico, como ficara conhecido tal movimento, defendia a necessidade de uma ordem jurídica imersa em valores da pessoa humana

A noção moderna de personalismo, enquanto denominação de um movimento, teria surgido em França, por volta de 1930, em torno de uma revista denominada "Esprit" coordenada por Emmanuel Mounier, tendo como base: o cristianismo, o existencialismo e o socialismo. Não se firmou como um sistema, mas enquanto uma filosofia que parte da concepção de pessoa não como um objeto, mas sim, como um ser que está e que se afirma no mundo, comunicando, aderindo e apreendendo idéias, enfim um ser que conhece a si mesmo em um constante processo de autocriação realizado em sociedade. [83]

A visão personalista, em semelhança à individualista, coloca a pessoa humana como o centro da sociedade. Mas, diferente da teoria antes explanada, o indivíduo não é vazio mas sim completo de interesses e desejos. O Estado, conforme o personalismo, é atuante e participativo em prol de medidas que promovam o interesse público, assumindo funções que, para o liberalismo clássico, eram da ingerência da sociedade.

Para essa teoria, o Estado age introduzindo às pessoas a possibilidade e as condições essenciais para que façam suas escolhas e agir conforme essas, mas não regulam os planos e organizações desses. Sua ingerência é limitada e útil. Aqui se pode diferenciar fundamentalmente as teorias do organicismo e do personalismo: para aquele, os desejos e planos de cada indivíduo deveriam ser tratados conforme a melhor forma para a promoção do interesse público; já para o personalismo,o Poder Público interfere tão somente para promover o interesse individual, fomentando-o e respeitando-o.

Essa é, sem sombra de dúvida, a teoria filosófica que mais se adéqua à Constituição de 1988.  Ela assegura a prevalência das liberdades fundamentais, consagra o pluralismo político, preconiza os valores comunitários, promoção cultural,  os direitos transindividuais. Ela declara a primazia do direito individual sobre o Estado e prevê meios de exercer essa liberdade do indivíduo. Por outro lado, e afastando-se do liberalismo, reconhece carências da sociedade e nesse ponto permite a interefência do Poder Estatal.

O personalismo é o equilíbrio, pois, ao mesmo tempo que repudia a supremacia do interesse público sobre o individual, também não permite a prevalência incondicionada do interesse individual sobre o interesse público; tal como o fez a Constituição Federal de 1988.

3.2 Ponderação entre os interesses em conflito: O princípio da proporcionalidade

A questão da possibilidade de antecipação de tutela contra a Fazenda apresenta, portanto, o problema do conflito entre direitos fundamentais e o interesse público: são valores igualmente relevantes em abstrato. De um lado, a inafastabilidade da proteção adequada e efetiva, o que pode ocorrer somente se a tutela for antecipada em regime de urgência, e, de outro, o risco de graves danos ao interesse público.

Ao verificar-se a ocorrência do conflito, deve o Magistrado levar em consideração determinados princípios, ínsitos ao sistema constitucional, quais sejam:

a) o princípio da necessidade, que determina só ser legítima a solução se o conflito for real, não podendo os interesse em litígio conviverem simultaneamente;

b) o princípio da menor restrição possível, segundo o qual a restrição ao direito fundamental não pode ir além do limite;

c) princípio da salvaguarda do núcleo essencial, o qual determina não ser legítima solução que elimina um dos direitos fundamentais.

Estes princípios é que devem ser levados em consideração na própria aplicação do princípio da proporcionalidade.

Os subprincípios da proporcionalidade são a adequação (correspondência entre meio e fim), a necessidade (invasão mínima) e a proporcionalidade em sentido estrito (precedência de um valor sobre outro).     Pelo subprincípio da necessidade, requer-se que a esfera de liberdade do indivíduo seja invadida o mínimo possível, além do fato de que a escolha feita tenha sido a melhor e única possível, ou seja, que a medida restritiva seja indispensável e a mais eficaz à defesa de um direito fundamental. O subprincípio sub examine leva à idéia de pluralidade de meios aptos à consecução de determinado direito fundamental, sendo que dessa gama seja escolhido o menos gravoso. A adequação refere-se à pertinência entre o meio adotado e o fim almejado, devendo haver uma relação de causalidade entre o meio empregado e o objetivo colimado.[84]

O subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito trata da proporção entre os interesses protegidos através da medida aplicada e os bens jurídicos que foram sacrificados ou restringidos, procurando-se preservar o mínimo de sacrifício ou restrição possível. A proporcionalidade em sentido estrito preserva a existência mínima do direito restringido, não podendo ele ser eliminado ou demasiadamente prejudicado.

A doutrina é pacífica no entendimento de que os princípios são normas jurídicas e, ainda quando implícitos, são obrigatórios e vinculam deveres tal como as regras jurídicas. A norma é gênero da qual são espécies os princípios e as regras. Enquanto essas têm em si mesmas a descrição específica das hipóteses a que se aplicam, os princípios têm sua incidência ilimitada. A aplicação dos princípios sempre exige um significativo juízo de valor: é que os princípios possuem conteúdo radicalmente axiológico. Já a aplicação da regra prescinde desse juízo de valor, a sua maioria aplica-se objetivamente aos fatos, sem necessidade de um prévio critério valorativo.

Ao examinar-se a aplicação de uma regra, define-se pela sua incidência ou não; ou ela é válida, ou não é. Já o princípio vai incidir ora com maior, ora com menor extensão. É, como afirma Alexy, um mandado de otimização; uma norma que ordena que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes.[85]

Portanto, conflitando duas regras, é simples a solução: uma delas será inteiramente aplicada. Agora, conflitando dois princípios, devem ser ponderados e aplicados conforme o princípio da proporcionalidade. Um cederá perante o outro, na medida do necessário. Naquela situação específica, um dos princípios precede ao outro, sendo que em situação diversa, esse outro pedido que cedeu pode ser o que precede.

Segundo Bonavides, a construção do princípio da proporcionalidade é o mais importante mecanismo jurídico de proteção eficaz da liberdade.[86] Exerce papel muito importante na concretização dos direitos fundamentais, harmonizando os conflitos entre princípios constitucionais.

A amplitude com que a jurisprudência dos tribunais faz uso desde método explica-se, especialmente, pela ausência de uma delimitação rigorosa das hipóteses normativas destes direitos, a não indicação das notas distintivas, em relação, por exemplo, ao que é ‘exigível’. Os direitos, cujos limites não estão fixados de uma vez por todas, mas que em certa medida são ‘abertos’, ‘moveis’, e, mais precisamente, esses princípios podem, justamente por esse motivo, entrar facilmente em colisão entre si, porque a sua amplitude não está de antemão fixada. Em caso de conflito, se se quiser que a paz jurídica se restabeleça, um ou outro direito ( ou um dos bens jurídicos em causa) tem que descer até um certo ponto perante o outro ou cada um entre si. A jurisprudência dos Tribunais consegue isto mediante uma ‘ponderação’ dos direitos ou bens jurídicos que estão em jogo conforme o ‘peso’ que ela confere ao bem respectivo na respectiva situação. [87]

O princípio da proporcionalidade torna possível a concretização da Justiça; enquanto a lei em sentido genérico define abstratamente os valores jurídicos a serem protegidos, é o magistrado que, concretamente, quando eles entram em conflito, aplica o princípio da proporcionalidade e soluciona a lide.

Se o Tribunal conclui pela impossibilidade de obtenção de um denominador comum aos bens jurídicos em conflito, deve respeitar que a mitigação que for feita a qualquer um deles seja a menor possível: as restrições a um direito fundamental, ou a um princípio constitucional, que são inevitáveis, mas apenas na medida do necessário. Deve ser respeitada a salvaguarda do núcleo essencial, que prevê a ilegitimidade da decisão conformadora se, ao procurar resolver o conflito entre direitos ou princípios, eliminar um deles ou lhe retirar toda a substância elementar.

3.2.1 A proteção de direitos fundamentais e a antecipação contra a Fazenda:

Como já se viu da leitura dos capítulos anteriores, em se tratando de princípios constitucionais, inafastabilidade da proteção adequada e efetiva e proteção do interesse público, não se deve abstratamente definir qual prevalece. Todavia, a Lei 9.494/97 o fez, determinando previamente que o interesse particular deve ceder ao interesse público em certas situações.

Apesar de o STF reconhecer a constitucionalidade da ADC n. 4, ajuizada em relação ao art. 1 da referida Lei, já entendeu que apenas concretamente, no exame de cada caso em que pleiteia a antecipação de tutela, é que o juiz terá a possibilidade de verificar a razoabilidade da restrição. Ao examinar pedido de suspensão cautelar da MedProv 173/90, que vedava a concessão de liminares em processos que tratassem de questões relativas ao Plano Collor, exarou o seguinte voto, que é perfeitamente aplicável a situações em que se discutem as vedações à concessão de antecipação de tutela contra a Fazenda:

[...] Assim, creio que a solução está no manejo do sistema difuso, porque nele, em cada caso concreto, nenhuma medida provisória pode subtrair ao juiz da causa um exame de constitucionalidade, das restrições impostas ao seu poder cautelar, para, se entender abusiva essa restrição, se a entender inconstitucional, conceder a liminar, deixando de dar aplicação, no caso concreto, à medida provisória, na meida em que, em relação àquele caso, a julgue inconstitucional, porque abusiva. [88]        

O Ministro afirma, ainda, que há duas dimensões da inconstitucionalidade: uma norma poderia ser inconstitucional em todo e qualquer caso, ou a inconstitucionalidade poderia dar-se especificamente em determinados casos concretos. O primeiro tipo de inconstitucionalidade poderia ser objeto de reconhecimento tanto na via do controle difuso quanto no incidental; já o segundo, só no incidental. Então, no caso da tutela antecipada, o reconhecimento da constitucionalidade na via direta ainda não afastaria a possível constatação, na via incidental, da inconstitucionalidade concreta.

Assim como não há como os conflitos entre os valores fundamentais serem solucionados pela lei infraconstitucional, também não há como o serem em sede de controle direto e abstrato de constitucionalidade. Esse controle é destinado apenas para detectar inconstitucionalidade que independem de ponderação concreta. Não é o caso. O Pleno do STF, inclusive, já se manifestou nesse sentido:

Na Ação direta de inconstitucionalidade, examinam-se as leis impugnadas, apenas, em seus conteúdos, no sistema normativo que definem e nos efeitos delas decorrentes, de forma abstrata, em face de preceitos da constituição federal, não cabendo, assim, em princípio, ao STF, no âmbito estrito desse processo, confrontar ou considerar, em sua individualidade concreta, casos, situações ou efeitos particulares, porventura resultantes da aplicação da lei, objeto da representação, até a data do julgamento.[89]

 Acerca da ADC n. 4, inclusive, em algumas situações o STF entende que as limitações devem ser interpretadas restritivamente, não podendo ser estendidas a outros casos, indicando estarem fora da vedação, por exemplo, verbas previdenciárias e verbas de qualquer natureza quando, “na hipótese de valor que, já antes recebido, fora retirado e é restituído por força de tutela antecipada”.[90]

Quando presente restrição à concessão de tutela antecipada, seja por se tratar das situações elencadas pelo art. 1 da Lei 9.497/97, seja por incompatibilidade com as previsões processuais, como a remessa oficial, a necessidade de precatório, é impossível assegurar de antemão a prevalência pelo interesse público. Tal determinação vai de encontro às consagrações de ordem personalista da Constituição de 1988.

Supor que todos os conflitos entre valores constitucionais poderiam ser solucionados na lei infraconstitucional significaria esvaziar o conteúdo constitucional dos princípios. Mais do que isso: implicaria negar a própria idéia de princípio. A essência do princípio, como se viu, reside na maleabilidade de sua incidência no caso concreto, de modo a compatibilizar-se com outros princípios. Em primeiro lugar, a idéia de que o legislador poderia – de antemão e integralmente – predefinir essa incidência teria por resultado transformar todo princípio constitucional em regra infraconstitucional: princípio constitucional seria aquilo que a lei infraconstitucional diz que é. Depois, nessa perspectiva, os princípios seriam normas destinadas unicamente ao legislador: um princípio apenas poderia incidir diretamente quando não houvesse conflito entre valores (hipótese, de resto, incompatível com uma ordem jurídica que consagra uma pluralidade de valores). Vale dizer, incidiria de modo direto precisamente quando desnecessária, ou menos necessária, a sua incidência como mandado de otimização. Cair-se-ia, assim, na negação da essência do princípio.[91]

A solução do conflito entre valores fundamentais implica considerar a realidade em questão. No ordenamento jurídico não é possível aceitar-se leis puramente harmonizadoras dos direitos fundamentais: a lei deve permitir a consideração das circunstancias do caso em exame, restringindo-se ao estabelecimento de critérios relevantes por meio de cláusulas gerais ou de conceitos indeterminados a serem preenchidos pelo Juiz. É a aplicação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade no caso concreto.

A tutela urgente é um resultado de regras de realização de um princípio, qual seja, o acesso à justiça. No exame das limitações a essa em face do Poder Público, quando a concreta ponderação de bens conduzir à preponderância do princípio do acesso à Justiça em face dos valores que inspiram as regras proibitivas, essas terão sua incidência afastada no caso concreto: o princípio que as revestem será ponderado e cederá parcialmente espaço.

É o caso, por exemplo, de situação que diz respeito ao acesso à saúde: pedido de antecipação de tutela contra a Fazenda para o fornecimento de valores destinados à compra de medicamentos. Aqui se ponderam duas questões: a necessidade de aplicação do princípio da proporcionalidade, entre o direito fundamental à saúde e o interesse público, bem como a observância da “reserva do possível”.

No julgamento do pedido de suspensão de antecipação de tutela no Agravo Regimental n. 175, proferiu o Min. Celso de Mello o seguinte entendimento:

O alto significado social e o irrecusável valor constitucional de que se reveste o direito à saúde não podem ser menosprezados pelo Estado, sob pena de grave e injusta frustração de um inafastável compromisso constitucional, que tem, no aparelho estatal, o seu precípuo destinatário.

O objetivo perseguido pelo legislador constituinte em tema de proteção ao direito à saúde, traduz meta cuja não realização qualificar-se-á como uma censurável situação de inconstitucionalidade por omissão imputável ao Poder Público, ainda mais se se tiver presente que a Lei Fundamental da República delineou, nessa matéria, um nítido programa a ser necessariamente implementado mediante adoção de políticas públicas conseqüentes e responsáveis.        

O Ministro, ainda, ponderou que, entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se qualifica como direito subjetivo inalienável e assegurado pela Constituição, ou fazer prevalecer um interesse financeiro e secundário do Estado, entende, conforme razões de ordem ético-jurídica, ser devida a opção que privilegia o respeito indeclinável à vida e à saúde. Aplicou, portanto, o princípio da proporcionalidade.

Cabe ressaltar que, apesar da necessidade de ponderação entre os valores em conflito, é de ser observado o princípio da reserva do possível. Esse diz respeito ao fato de que as normas constitucionais, por serem normas de direito público, no mais das vezes, exigem dispêndio de dinheiro. A existência de recursos configura uma limitação econômica e real à eficácia jurídica dessas normas. Observe que se fala em normas constitucionais em geral e não apenas normas de direitos sociais.

Em sede de efetivação e implementação onerosa dos direitos econômicos, sociais e culturais, cujo adimplemento, pelo Poder Público, impõe e exige prestações estatais positivas concretizadoras de tais prerrogativas, é indispensável que se observem as possibilidades orçamentárias do Estado. Se comprovada, objetivamente, a alegação de incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir a imediata efetivação do comando.[92]

Apesar, portanto, da inaplicabilidade imediata das normas expressa ou implicitamente restritivas da concessão da antecipação de tutela contra a Fazenda, deve ser observada também a cláusula da reserva do possível, não se podendo exigir do Poder Público o fornecimento de valores que superem suas previsões orçamentárias.

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Sobre a autora
Flávia Faermann

Procuradora do Estado do Rio Grande do Sul, graduada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS, especialista em Direito Processual Civil pela PUC/RS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FAERMANN, Flávia. A antecipação da tutela em face da Fazenda Pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4026, 10 jul. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30154. Acesso em: 19 abr. 2024.

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