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Soberania popular e a limitação injustificada quanto à iniciativa nos Projetos de Emendas Constitucionais

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12/01/2015 às 11:55
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5. Do Poder Constituinte

Quando se aborda a soberania popular, a primeira expressão de seu exercício que surge é o Poder Constituinte.

Muito embora a ideia de Poder Constituinte, como aquele que produz normas fundamentais de organização do Estado, permeie o pensamento político desde a antiguidade[18] é no século XVIII com Sieyés[19] que uma teoria própria do Poder Constituinte começa a se desenvolver. [20]

O livro de Sieyés não antecede nem se sucede à Revolução Francesa: sua dinâmica revela a perspectiva da própria revolução, com contradições, paixões e esperanças que envolveram esse momento histórico.

O autor inicia sua obra propondo três perguntas[21] para as quais já aponta a resposta e vai, ao longo da obra, desenvolver sua tese.

1) o que é o terceiro estado? – TUDO

2) o que tem sido ele, até agora, na ordem política? – NADA

3) o que se pede? – ser alguma coisa.

Para a terceira questão o autor apresenta então três petições:

a)    Que os representantes do Terceiro Estado sejam escolhidos apenas entre os cidadãos que realmente pertençam ao Terceiro Estado. (Cidadãos que não possuam quaisquer privilégios)[22]

b)    Que seus deputados sejam em número igual ao da nobreza e do clero.

“Todo cidadão que reúne as condições determinadas para ser eleitor, tem direito de se fazer representar, e sua representação não pode ser uma fração da representação de outro. Esse direito é uno; todos os exercem por igual, como todos estão protegidos igualmente pela lei que ajudaram a fazer. Como é possível sustentar-se por um lado, que a lei é expressão da vontade geral, quer dizer, da maioria, e querer, ao mesmo tempo, que dez vontades individuais possam contrabalancear mil vontades particulares? Isso não equivale a se expor a deixar a que a minoria faça a lei, o que é contrário, evidentemente, à natureza das coisas? [23]

c)     Que os Estados Gerais votem não por ordens, mas por cabeças. “para o Terceiro Estado essa demanda é consequência necessárias das outras duas”.[24]

Durante a obra vai construindo então uma teoria para o que seria o poder Constituinte, formado por integrantes do Terceiro Estado sem qualquer privilégio e que seria incondicionado e permanente para elaborar a constituição de uma nação. Para Sieyés, uma constituição não deve ser obra de um poder constituído e sim de um poder constituinte. O poder constituinte reproduz a vontade da nação enquanto que o poder constituído recebe sua existência e suas competências do primeiro. Daí porque limitado ao primeiro.

Somente a Assembleia Constituinte, onde os representantes comparecem desprovidos de seu privilégios tem as condições necessárias para fixar os novos limites da convivência social[25]

Trazendo a Teoria do Poder Constituinte para a atualidade, podemos conceituar o Poder Constituinte como “aquele que põe em vigor, cria ou mesmo constitui normas jurídicas de valor constitucional”[26]

Dessa forma, podemos diferenciar duas espécies de poder constituinte:

1)    Poder Constituinte Originário

2)    Poder Constituinte Derivado[27]

A doutrina ainda estabelece algumas características peculiares a cada um deles:

O Poder Constituinte Originário é superior (dada a natureza constitucional de suas normas), inicial (pois inicia uma nova ordem Constitucional), ilimitado[28] (pois não há direito anterior que o limite) e incondicionado (pois não há vinculação a qualquer procedimento anterior à ele), uno e indivisível pois não se partilha com outros poderes Constituídos – na realidade ele serve como fundamento para criação dos demais poderes e, finalmente, é permanente. Permanece latente quando a assembleia constituinte se dissolve após a promulgação da constituição. 

A questão que surge é qual sua implicação com a questão da soberania popular. A resposta surge quando analisamos quem é o titular do Poder Constituinte: o povo, que se expressa de forma direta ou por seus representantes através de sufrágio universal.

Em alguns desenhos institucionais, o povo, através de sufrágio universal elege representantes exclusivamente para concretizar por meio de uma assembleia constituinte os valores que entende mais relevantes para a vida social. Há no entanto, uma forma de participação mais ativa do povo no procedimento constituinte que é o de manifestar-se através de referendo, aceitando ou não aceitando a nova ordem constitucional.

Quanto ao poder constituinte derivado, mais especificamente o Poder Constituinte Reformador, temos que a questão da soberania popular fica significativamente mais afastada, tendo em vista que inexiste mecanismos de atuação mais direta da vontade popular. É justamente esse ponto que se discute no presente trabalho.

Uma questão bastante importante se coloca é sobre a legitimidade e limites do Congresso Nacional no tocante ao poder de reforma.

Os positivistas colocam de maneira bastante sucinta que, tendo em vista que a própria Constituição (elaborada através de Poder Constituinte Originário – cujo titular é o povo) estabelece que sua reforma deve seguir determinados parâmetros, uma vez observados, não há o que se debater acerca da legitimidade.

No entanto, o debate persiste. Ocorre, que a legitimidade embora decorra do próprio texto constitucional, também está relacionada intrinsecamente à legitimidade do constituinte .

 A doutrina é uníssona no sentido de atribuir maior legitimidade àqueles procedimentos de criação ou reforma constitucional em que o povo é chamado a participar. Dessa forma, aqui novamente surge o questionamento acerca da proibição de, por iniciativa popular, haver propostas de emendas constitucionais.

Outra questão que suscita embate é a limitação desse poder de reforma. Aqui também vale consignar a conexão entre o poder constituinte e a soberania popular.

E em que momento se entrecruzam ou deveriam se entrecruzar os conceitos de soberania popular e o poder de reforma. No caso brasileiro, a resposta é encontrada não só no § 4º do art. 60 da Constituição Federal, mais ao longo de todo o texto pode-se encontrar limitações implícitas decorrentes da própria alma constitucional.

5.1. Limites do Poder Constituinte

Como já mencionado anteriormente, muito embora comumente se diga que o poder constituinte ser ilimitado e que a própria soberania popular também goza desse atributo, há que reiterarmos a posição mais atual da doutrina no sentido de reconhecer a existência de determinados limites a ambos, ou seja, reconhecer a existência de limites ao poder constituinte implica em reconhecer em maior ou menor medida a limitação da soberania popular.

E estas limitações se concretizam tanto no poder constituinte originário quanto no Poder Constituinte Reformador.

Quanto aos limites do Poder Constituinte Originário, Jorge Miranda assim ensina:

Daqui não decorre, porém, que o poder constituinte equivalha a um poder soberano e que signifique capacidade de emprestar à constituição todo e qualquer conteúdo, sem atender a quaisquer princípios, valores e condições. Não é poder soberano absoluto sobre a constituição – e isso à luz de uma visão jus naturalista ou na perspectiva do Estado de Direito como na perspectiva da localização histórica concreta que se tem de pronunciar o órgão nele investido. O poder constituinte está sujeito à limites.[29]

Canotilho também segue na mesma direção e de forma bastante clara assim diz :

Desde logo, se o poder constituinte se destina a criar uma constituição concebida como organização e limitação do poder, não se vê como esta “vontade de constituição pode deixar de condicionar a vontade do criador. Por outro lado, este criador, este sujeito constituinte, povo ou nação, é estruturado e obedece a padrões e modelos de conduta espirituais, culturais, éticos e sociais radicados na consciência jurídica geral da comunidade e, nesta medida, considerados como “vontade do povo”. Além disso as experiências humanas vão revelando a indispensabilidade de observância de certos princípios de justiça que, independentemente da sua configuração (como princípio suprapositivos ou como princípios supralegais mas intrajurídicos) são compreendidos como limites da liberdade e omnipotência do poder constituinte. Acresce que um sistema jurídico interno (nacional, estadual) não pode, hoje, estar out da comunidade internacional. Encontra-se vinculado a princípios de direito internacional (princípio da independência, princípio da autodeterminação, princípio da observância de direitos humanos).

Essa ideia de vinculação jurídica conduz uma parte da doutrina mais recente a falar da ‘jurisdicização’ e do carácter evolutivo do poder constituinte. Se continua a ser indiscutível que o exercício de um poder constituinte anda geralmente associado a momentos fractais ou de ruptura constitucional (revolução, autodeterminação de povos, quedas de regime, transições constitucionais), também é certo que o poder constituinte nunca surge num vácuo histórico-cultural. Trata-se antes, de um poder que, de forma democraticamente regulada, procede a alterações incidentes sobre a estrutura jurídico política de uma comunidade (P. Häberle, Baldassare)[30]

A questão de limitação do poder constituinte fica mais tormentosa quando se analisa o poder constituinte reformador, quando, em grande medida, a expressão da soberania popular se evidencia um pouco  mais afastada.

 Um conceito bastante conciso de poder reformador é o Calcini (2009)

O Poder Reformador consiste na entidade competente e constituída pelo poder constituinte originário, para, dentro dos parâmetros externados na Constituição, reforma-la a fim de atender aos anseios da atualidade e, inclusive, induzir a mudanças sociais, funcionando como um instrumento de adequação e de continuidade jurídica do estado, além de garantir a superioridade desta lei fundamental.[31]

Nos casos de desenhos institucionais em que são adotadas constituições rígidas, como o caso brasileiro, os limites constitucionais para a sua reforma se encontram no próprio texto, quer explicitamente quer implicitamente. Costuma-se dizer que as limitações para o poder de reforma são de três espécies: limites formais, limites circunstanciais e limites materiais.

a)    Limites formais:

A questão não oferece grande dificuldade. O texto constitucional estabelece no artigo 60, incisos I, II e III, §§ 2º, 3º e 5º, que:

Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:

I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal;

II - do Presidente da República;

III - de mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.

(...)

§ 2º - A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros.

§ 3º - A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem.

(...)

§ 5º - A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa.

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b)        Limites circunstanciais

Neste ponto, não existe qualquer dificuldade no seu entendimento.

Art. 60 § 1º - A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio.

c) Limites materiais expressos

Toda Constituição rígida possui um núcleo duro, ou seja, um  rol de princípios e disposições relacionados aos fundamentos e estrutura do Estado e direitos sem os quais a própria Constituição perderia sua razão de existência. Tais conteúdos que representam o cerne da Constituição ficam então, por disposição expressa ou tácita, impedidas de serem modificadas ou abolidas.

  As limitações expressas na Constituição brasileira, estão basicamente contempladas no § 4º do art. 60.

Tais disposições são chamadas de cláusulas pétreas. A própria designação já indica a natureza de imutabilidade ou inamovibilidade que possuem.

Poderíamos então citar o art. 60 § 4 º da Constituição que assim dispõe:

 § 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I - a forma federativa de Estado;

II - o voto direto, secreto, universal e periódico;

III - a separação dos Poderes;

IV - os direitos e garantias individuais.

Bem como também podemos incluir dentre o rol de cláusulas pétreas os dispositivos que tratam da Polícia Federal e Ministério Público com instituições permanentes.

Seguindo neste raciocínio, os próprios artigos que dispõe sobre cláusulas pétreas, também são cláusulas pétreas, desta vez, implícitas, pois caso contrário, uma simples manobra legislativa tendente a modificar o artigo poderia, em tese, quebrar a rigidez pretendida pelo poder constituinte originário.

d)   Limites materiais implícitos e a ideia do coto vedado

Ainda com relação aos limites tácitos, a doutrina espanhola desenvolveu a ideia do coto vedado, que poderia ser conceituado como uma forma de limitação implícita ao poder de reforma constitucional que implique prejuízos ao próprio regime democrático. Assim, alarga-se o leque de intangibilidade das normas constitucionais.  Neste ponto, cumpre ressaltar o papel do Poder Judiciário no controle jurisdicional de constitucionalidade.[32]         

 Nos trabalhos de Thiago Setti Xavier da Cruz e José Juan Moreso a ideia do coto vedado aparece, inclusive, nas reflexões acerca da razoabilidade de um poder constituinte originário impedir que gerações futuras possam optar por desenhos constitucionais diferentes daquele desenhado originalmente.

Neste sentido, assim os autores dizem que Coto Vedado pode ser conceituado como uma forma de limitação implícita ao poder de reforma constitucional que implique prejuízos ao próprio regime democrático. A pergunta é: Como impedir que o povo se auto destitua de seu poder erigido constitucionalmente, em prol de um grupo totalitário? Vale dizer:  O que impede que a maioria possa decidir, de forma irretratável, que não deve mais ter a democracia a seu favor, abdicando do poder de decidir? Se a democracia é o método de tomada de decisões pela maioria, a primazia constitucional implica precisamente em restringir ao que a maioria pode decidir, daí as cláusulas pétreas).  Neste sentido, a teoria do o coto vedado retrata um compromisso com a estrutura institucional que é o constitucionalismo.

Jon Elster elaborou uma analogia entre determinados mecanismos do que denomina – racionalidade imperfeita de caráter individual- e o caso do paradoxo da democracia. O exemplo utilizado é o de Ulisses e as Sereias. Sua situação – ser vulnerável - e saber-se – é o que o impulsionava a criar instrumentos de racionalidade imperfeita com o objetivo de superar a fragilidade da vontade. Esse mecanismo de Ulisses[33] é um mecanismo de pré-compromisso, um modo de vincular-se a si mesmo.  A ideia de pré-compromisso vem adequadamente expressada na ideia de Democracia Constitucional, conforme ensina o filósofo. Determinadas matérias estão fora da agenda política cotidiana,  não estando sujeitas a regra de maioria.[34]

Pode-se concluir que o problemas acerca das mencionadas limitações, sob a forma de pré-compromissos assumidos pelo Constituinte Originário tem sua fundamentação maior na proteção das gerações futuras. Tal tese encontra opositores logicamente mas, há que reconhecer-se que, o constitucionalismo forte é construído a partir da ideia de constituições rígidas dotadas, portanto, de mecanismos de auto proteção e proteção das instituições que estruturam o Estado.

Retornando ao caso brasileiro, a ideia de coto vedado é bastante útil, pois  diante da enorme produção de emendas constitucionais e tentativas de rompimentos do próprio sistema lógico constitucional, parece salutar um horizonte maior de limitação ao poder de reforma o que vem em auxílio da própria manutenção do Estado Democrático de Direito.[35]

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Sobre a autora
Andrea Bechelli

Advogada. Graduada em direito pela PUC/SP. Pós-graduada em direito público pela PUC/MG. Mestranda em direito pela PUC/SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BECHELLI, Andrea. Soberania popular e a limitação injustificada quanto à iniciativa nos Projetos de Emendas Constitucionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4212, 12 jan. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30740. Acesso em: 22 dez. 2024.

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