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Prenome e gênero do transexual:

averbação ou retificação?

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20/03/2015 às 14:28
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4. ALTERAÇÃO DO PRENOME E GÊNERO DO TRANSEXUAL.

4.1. Pós-cirurgia: ausência de normas positivas para a alteração de prenome e gênero do transexual.

Até aqui, verificamos que o transexual passa por árduo caminho até a efetivação da cirurgia de transgenitalização, direito este reconhecido em face da autorização concedida pelo Conselho Federal de Medicina, através de resolução já comentada alhures.

São vários os requisitos a serem observados para a cirurgia de redesignação sexual, conferindo ao indivíduo genitália compatível ao seu sexo psicológico, diminuindo, a princípio, suas agonias e infelicidade, dando-lhe uma nova perspectiva de vida. Como dito, trata-se de cirurgia eminentemente terapêutica e não mutilatória.

Vimos que o Conselho Federal de Medicina é o órgão competente que regula as intervenções cirúrgicas de alteração de sexo, sendo prescindível a autorização judicial para sua realização.

Ocorre que os percalços não acabam por aí, havendo um novo problema a ser enfrentado. Depois de realizada a cirurgia, o transexual passa a enfrentar um grande problema, qual seja, a alteração de seu prenome e gênero nos registros civis.

É verdade que mesmo após a cirurgia de redesignação sexual, o transexual continua passando por sessões de psicoterapia, uma vez que o indivíduo precisa reconhecer e se adaptar ao seu novo corpo, sendo esta a ciência mais eficaz nessa transição.

Entretanto, não basta o acompanhamento psicológico, tratamento hormonal e manutenção dos caracteres secundários do seu “novo sexo” para a ressocialização do indivíduo. A sua identidade registral dissonante à sua nova aparência causam ao indivíduo indiscutíveis constrangimentos.

O diploma normativo que disciplina os registros públicos é a Lei 6.015/73. No que tange a alteração do prenome a lei, em seu artigo 58[68] e parágrafo único, recepciona o princípio da imutabilidade, autorizando a retificação do prenome só nos casos ali descritos.

A imutabilidade do nome civil é um princípio de ordem pública, em razão de que sua definitividade é de interesse de toda a sociedade, constituindo garantia segura e eficaz das relações de direitos e obrigações correlatas. Procura-se evitar que a pessoa natural a todo instante mude de prenome, seja por mero capricho, ou até mesmo má-fé, neste último caso visando ocultar sua identidade, o que poderá se traduzir em prejuízo a terceiros.

Não há dispositivo legal que disciplina especificamente a situação do transexual, cabendo aos operadores do direito um incessante exercício na interpretação de regras e princípios de modo a buscar amparo jurídico para esta tormentosa questão.

A respeito disso, a Lei de Introdução ao Código Civil, atualmente denominada Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, em seu art. 4º, é clara ao dispor que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.

Nesse sentido, assevera Maria Helena Diniz, referindo-se às lacunas existentes no direito positivo brasileiro que, estando estas presentes, o juiz deverá averiguar se existe, na própria legislação, uma similitude entre fatos diversos, fazendo o juízo de valor de que essa similitude se justapõe às diferenças. Em não encontrando, deverá recorrer às normas consuetudinárias, inexistindo estas, lançará mão dos princípios gerais do direito e, finalmente, a equidade. Reforça, ainda, que “sua solução ao caso concreto não poderá ser conflitante com o espírito desse sistema. De modo que a norma individual completamente do sistema não é e nem pode ser elaborada fora dos marcos jurídicos”.[69]

Diante disso, os juristas têm observado os preceitos constitucionais, mormente aqueles estatuídos nos artigos 3º, incisos I, III e IV[70], 5º, inciso X[71], 196[72] e 199[73] da Constituição Federal, como forma de atender o pedido de alteração de prenome e gênero dos transexuais em seus documentos.

Ademais, em capítulo específico, verificamos que a dignidade da pessoa humana é princípio basilar da Lei Maior, sobrepondo-se a imutabilidade do prenome esculpido na lei infraconstitucional, qual seja, a Lei dos Registros Públicos.

Dessa forma, mesmo diante da importância da imutabilidade no sentido de sua conveniência na individualização da pessoa, não pode o transexual, na sua nova aparência física, ser exposto ao ridículo.

Há quem dê interpretação extensiva ao disposto no parágrafo único do art. 55 da Lei dos Registros Públicos onde diz que “os oficiais do registro civil não registrarão prenomes suscetíveis de expor ao ridículo os seus portadores. (...)”. Esta interpretação busca abarcar a situação dos transexuais, pois, com a “nova aparência”, serão expostos ao ridículo quando da apresentação de seus documentos.

Nessa vertente, têm sido muitos os julgados permitindo a alteração do prenome e gênero do transexual, senão vejamos.

Em 2007, a 1ª. Câmara Cível do TJRJ reconheceu o direito de transexual de adequar seu prenome e sexo no Registro Civil. Reza a ementa:

“Transexual. Registro civil. Alteração. Possibilidade. Cirurgia de transgenitalização. Aplicação do art. 4º da LICC diante da ausência de lei sobre a matéria. Sentença que atende somente ao pedido de alteração de nome. Reforma parcial para também permitir a alteração do sexo no registro de nascimento. Provimento do apelo. A jurisprudência tem assinalado a possibilidade de alteração do nome e do sexo no registro de nascimento do transexual que se submete a cirurgia de redesignação sexual, com fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana” (AC 2006.001.611108, Des. Vera Maria Soares Van Hombeeck, j. 06.03.2007).”

No mesmo sentido, a 6ª Câmara Cível do mesmo Tribunal, em 15 de agosto de 2007, autorizou a adequação de prenome e sexo:

“Apelação cível. Registro civil. Alteração. Possibilidade. Transexual. Cirurgia de transgenitalização. Sentença que atende somente ao pedido de alteração do nome. Reforma do julgado para permitir a alteração do sexo no registro de nascimento. Precedentes deste tribunal. Recurso provido” (Ap 0012432-13.2005.8.19.0021 [2006.001.61104], Des. Francisco de Assis Pessanha, Ementário: 06/2008, n. 15, 14.02.2008).

Ainda seguindo esse raciocínio, a 8º Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, por maioria, negou provimento ao recurso do Ministério Público, determinando a alteração do prenome e do sexo do interessado. Segue a ementa:

“Retificação de registro civil (assento de nascimento). Transexualismo (ou disforia de gênero). Sentença que autorizou a modificação do prenome masculino para o feminino. Controvérsia adstrita à alteração do sexo jurídico no assento de nascimento. Admissibilidade. Cirurgia autorizada diante da necessidade de adequação do sexo morfológico e psicológico. Concordância do Estado com a cirurgia que não se compatibiliza com a negativa de alteração do sexo originalmente inscrito na certidão. Evidente, ainda, o constrangimento daquele que possui prenome ‘Vanessa’, mas que consta no mesmo registro como sendo do sexo masculino. Ausência de prejuízos a terceiros. Sentença que determinou averbar nota a respeito do registro anterior. Decisão mantida. Recurso improvido”[74].

Com vista a este último acórdão podemos ver a congruência no pensar do julgador, pois se o Estado permite a cirurgia de transgenitalização[75], oferecendo assistência para que ela possa ser realizada aos transexuais, seria uma incompatibilidade dentro do próprio sistema não permitir a adequação do prenome e gênero no assento de nascimento e, consequentemente, nos demais documentos.

Negar a mudança do prenome e sexo aos transexuais seria o mesmo que postergar seu direito à plena felicidade. Seria contraditório permitir a cirurgia de adequação sexual, impedindo o reconhecimento a uma nova identidade, que nada mais seria do que atestar uma nova realidade.

Imagine-se, por exemplo, um atleta transexual masculino que passou pela referida intervenção cirúrgica dividindo o vestiário com as demais atletas. Sua aparência física com o sexo já redesignado e os caracteres secundários já aperfeiçoados, não traria nenhuma sensação de insegurança ou qualquer outro sentimento às demais companheiras. No entanto, ao terem acesso aos seus documentos pessoais, poderão verificar que se trata biologicamente de um homem, o que traria, incontestavelmente, constrangimento ao transexual ou, melhor dizendo, ex-transexual.

Podemos citar outro exemplo. Imagine-se, pois, um transexual operado, ao ser interceptado por uma autoridade policial no trânsito, identificando-se. Ao entregar seus documentos, haveria claro constrangimento, trazendo-lhe sentimentos de vergonha e angústia, sem contar as implicações em provar de que aquela identidade não é falsa, mas sim retrata seu sexo de nascimento.

No tocante a jurisprudência, esta não tem ficado só em segunda instância, mas sim alcançando o Superior Tribunal de Justiça. Em 22.03.2007, ao julgar caso procedente do Rio Grande do Sul, o STJ, tendo como relator o saudoso Min. Carlos Alberto Menezes Direito, deliberou sobre o assunto, decidindo favoravelmente pela adequação do prenome e sexo. Eis a ementa:

“Mundança de sexo. Averbação no Registro Civil. 1. O recorrido quis seguir o seu destino, e agente de sua vontade livre procurou alterar o seu registro civil a sua opção, cercada do necessário acompanhamento médico e de intervenção que lhe provocou a alteração da natureza gerada. Há uma modificação de fato que não se pode comparar com qualquer outra circunstância que não tenha a mesma origem. O reconhecimento se deu pela necessidade de ferimento do corpo, a tanto, como se sabe, equivale o ato cirúrgico, para que seu caminho ficasse adequado ao seu pensar e permitisse que seu rumo fosse aquele que seu ato voluntário revelou para o mundo no convívio social. Esconder a vontade de quem a manifestou livremente é que seria preconceito, discriminação, opróbrio, desonra, indignidade com aquele que escolheu o seu caminhar no trânsito fugaz da vida e na permanente luz do espírito. 2. Recurso especial conhecido e provido” (STJ, Resp 678.933/RS, 3ª T., rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito). (grifei)

Conforme o exposto e diante das colações das jurisprudências acima, podemos verificar que os juízes e promotores, atualmente, estão se debruçando em estudos, acompanhando os pareceres da medicina e os problemas relacionados aos transexuais, tornando, cada vez mais, solidificado o entendimento, deferindo os pedidos para alteração do prenome e gênero.

No entanto, como não há norma especifica que trate dessa problemática, os indivíduos que sofrem de disforia de gênero, tem que buscar seus direitos na justiça, ficando à mercê do entendimento dos juízes que, nem sempre atendem os anseios destes cidadãos.           

4.2. Alteração de prenome e gênero sem a realização da transgenitalização.

Muito se discute se é possível a alteração do prenome e gênero do indivíduo sem que este se submeta à cirurgia de transgenitalização.

Tal dúvida não surge do acaso, mas de uma simples reflexão: E se o transexual, diante dos riscos cirúrgicos, não desejar que seja feita a ablação de seu órgão genital? Realmente não é tarefa fácil enfrentar esta questão.

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Ao analisarmos um transexual masculino, por exemplo, podemos facilmente confundi-lo com uma mulher, tendo em vista os vários tratamentos a que se submete, dentre eles, o consumo de hormônios femininos ou masculinos e alterações dos seus caracteres externos, tais como corte de cabelo, unhas, uso de cosméticos (batom, maquiagem e outros), cirurgias plásticas, vestimentas, etc.

Dessa forma, estaremos diante de uma aparência totalmente feminina ou masculina, sendo esta a sua real exteriorização.

Quantas vezes definimos as pessoas pertencentes a este ou aquele sexo sem precisar ver suas partes intimas? Seria racional pedir para que o indivíduo mostre sua genitália para confirmação de seu sexo biológico? Evidente que não.

Portanto, nesse linear, é comum inserimos as pessoas em determinado grupo sexual pela sua aparência exterior e pela forma com que elas se relacionam com as pessoas, e não pela sua genitália, o que, aliás, não fica a mostra. 

Nessa ótica, obrigar o transexual a passar pela cirurgia de redesignação de sexo para que pudesse ter seu gênero alterado em sua certidão de nascimento, poderia aplacar o preconceito, fechando-se os olhos para a realidade, agindo cruelmente em face da situação do transexual. Seria, talvez, negar o direito a, socialmente, adequar seu assento de nascimento à sua verdadeira identidade.

Diante do exposto em linhas acima, poderíamos ser abundantemente questionados: A simples alteração do prenome e gênero do transexual, sem a intervenção cirúrgica, seriam bastantes a trazer-lhe felicidade? O mais importante para o transexual não seria a cirurgia que amolde sua genitália para que fique tal como a do seu sexo psicológico?

São perguntas difíceis de responder. De fato, não se pode mensurar o grau de felicidade que este indivíduo teria apenas alcançando vitória no que diz respeito à alteração do seu prenome e sexo no assento de nascimento. O que é inaceitável, e com toda certeza, é obrigar que o indivíduo passe por riscos de morte ou venha a ter sua saúde abalada.

Fica tudo mais claro quando verificamos o caso do transexual feminino, que se identifica como homem.

Como abordamos, a cirurgia de neofalosplastia, que consiste na construção de um pênis, é realizada, ainda, em caráter experimental[76], considerando as dificuldades técnicas ainda presentes para a obtenção de bom resultado tanto no aspecto estético como funcional. Vale ressaltar que a cirurgia não irá trazer à paciente virilidade, razão pela qual tal intervenção apenas se mostra razoável no que tange ao aspecto estético.

Dessa forma, no caso de transexual feminino, seria pouco razoável que o indivíduo, já atestado por laudo médico sendo portador de transtorno de identidade de gênero[77], tivesse que ter como pressuposto a intervenção cirúrgica para alterar sua identificação.

Exigir a submissão do transexual à transgenitalização, notadamente a do tipo neofaloplastia, devido a sua alta periculosidade e caráter experimental, seria ultrajante, havendo total desprezo do transexual como um cidadão com direitos e garantias fundamentais. Obrigar o transexual a se sujeitar à cirurgia para ter a tão sonhada identidade, seria satisfazer mero capricho social.

Nesse sentido, desafiadora é a decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, proferida pelo magistrado Dr. André Côrtes Vieira Lopes, em que concedeu a mudança de gênero sexual feminino para o masculino, que mesmo passando pelas quatro fases do procedimento transexualizador, recusou-se a enfrentar a última fase, qual seja, a cirurgia para colocação do pênis, devido seu alto risco e caráter experimental:                                              

“Em que pese não ter sido realizada a cirurgia de redesignação, tal situação encontra pleno amparo no fato de ainda não ter a medicina conseguido, muitas vezes, segundo os relatos médicos, um novo pênis com funções e dimensões normais. Os cirurgiões são quase unânimes ao afirmarem que a adequação do transexual feminino em homem é muito mais complicada tecnicamente, por isso, esta é menos solicitada.      

A resolução parece ter sido cumprida na hipótese dos autos, existindo inclusive pareceres favoráveis da equipe multidisciplinar no juízo.

(...)

Daí por que, crendo que todos os indivíduos têm o direito de viver harmonicamente na sociedade e serem respeitados como pessoas humanas, nos termos do art. 1.º - III da Constituição da República, julgo procedente a pretensão autoral para determinar a averbação das alterações pretendidas, no sentido de que A. P. R. V., nascida como do sexo feminino, passe a ser considerado do sexo masculino, alterando-se o nome para G. R. V., devendo consta no registro a referência ao presente processo, mencionando-se nas certidões que se seguirem que ‘o assento foi modificado por decisão judicial, em ação de retificação de registro civil. Transitada em julgado a presente sentença, expeça-se mandado de averbação. Condeno, agora, o ‘autor’ nas custas processuais, com observância do disposto no art. 12 da Lei 1060/50. Sem honorários’”.

Verificamos que a decisão reconhece o transexual pelo aquilo que ele é e, primordialmente, pela forma que se apresenta à sociedade. No entanto, não podemos deixar de notar a cautela do jurisconsulto em determinar que conste que a alteração se deu por determinação judicial, havendo nítida preocupação com a segurança jurídica e com os terceiros de boa-fé.

No mesmo sentido da decisão acima, vejamos alguns acórdãos:

“Registro civil. Transexualidade. Prenome. Alteração. Possibilidade. Apelido público e notório. O fato de o recorrente ser transexual e exteriorizar tal orientação no plano social, vivendo publicamente como mulher, sendo conhecido por apelido, que constitui prenome feminino, justiça a pretensão já que o nome registral é compatível com o sexo masculino. Diante das condições peculiares, nome de registro está em descompasso com a identidade social, sendo capaz de levar seu usuário à situação vexatória ou de ridículo. Ademais, tratando-se de um apelido público e notório justificada está a alteração. Inteligência dos arts. 56 e 58 da Lei 6015/73 e da Lei 9708/1998. Recurso provido” (TJRS, AC 70001010784, 7ª. Câm. Civ., rel. Des. Luis Felipe Brasil Santos, j. 14.06.2000).”

 “Apelação cível. Registro civil. Alteração do registro de nascimento relativamente ao sexo. Transexualismo. Possibilidade, embora não tenha havido a realização de todas as etapas cirúrgicas, tendo em vista o caso concreto. Recurso provido” (TJRS, AC 70011691185, 8ª Câm. Civ.., rel. Des. Alfredo Guilherme Englert, j. 15.09.2005).”

“Alteração de registro civil. Transexualidade. Cirurgia de transgenitalização. O fato de o apelante ainda não ter se submetido à cirurgia para a alteração de sexo não pode constituir óbice ao deferimento do pedido de alteração de registro civil. O nome das pessoas, enquanto fator determinante da identificação e da vinculação de alguém a um determinado grupo familiar, assume fundamental importância individual e social. Paralelamente a essa conotação pública, não se pode olvidar que o nome encerra fatores outros, de ordem eminentemente pessoal, na qualidade de direito personalíssimo  que constitui atributo da personalidade. Os direito fundamentais visam à concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, o qual, atua como sendo uma qualidade inerente, indissociável de todo e qualquer ser humano, relacionando-se intrinsecamente com a autonomia, razão e autodeterminação de cada indivíduo. Fechar os olhos a esta realidade, reconhecida pela própria medicina, implicaria infração ao princípio da dignidade da pessoa humana, norma esculpida no inc. III do art. 1º da CF, que deve prevalecer à regra da imutabilidade do prenome. Por maioria, promoveram em parte” (TJRS, AC 70013909874, 7ª. Câm. Civ. rel. Des. Maria Berenice Dias, j. 05.04.2006).” 

“Pedido de alteração de registro de nascimento em relação ao sexo. Transexualismo. Implementação de quase todas etapas (tratamento psiquiátrico e intervenções cirúrgicas para retirada de órgãos). Descompasso do assento de nascimento com a sua aparência física e psíquica. Retificação para evitar situações de constrangimento público. Possibilidade diante do caso concreto. Averbação da mudança de sexo em decorrência de decisão judicial. Referência na expedição de certidões. É possível a alteração do registro de nascimento relativamente ao sexo em virtude do implemento de quase todas as etapas de redesignação sexual, aguardando o interessado apenas a possibilidade de realizar a neofaloplastia. Recurso provido, por maioria” (TJRS, AC 70019900513, 8ª Câm. Civ., rel. Des. Claudir Fidelis Faccenda, j. 13.12.2007).

Vale frisar que nosso entendimento é no sentido de permitir a alteração do prenome sem a redesignação sexual apenas nos casos de neofaloplastia, eis que patente os riscos advindos dessa intervenção cirúrgica, como já dito alhures. 

Não há como entender qual seria a razão de se chegar ao extremo de se mudar o sexo do transexual masculino em seu assento civil antes de submetê-lo à neocolpovulvoplastia, mantendo suas características masculinas originais, quando poderia alterá-las cirurgicamente sem riscos, já que, sendo portador de transtorno de identidade, muito mais drástico para o transexual é ter em seu corpo as feições físicas que a natureza lhe deu, não condizente com o seu sexo psíquico, do que simplesmente ter um documento com prenome e sexo condizente com este.

No entanto, como em várias passagens desse trabalho frisamos, a falta de regramento específico não traz a segurança jurídica devida aos transexuais, havendo inúmeras decisões desfavoráveis a estes, ou seja, na vereda de não autorizar a alteração do prenome e gênero sem antes verificada a redesignação sexual. Vejamos alguns julgados:

“Registro civil. Assento de nascimento. Alteração de Pedido de retificação de nome e alteração de sexo no registro civil c.c. autorização para cirurgia de reatribuição sexual. Inviabilidade. Transexualismo que reclama tratamento médico que só pelo especialista pode ser deliberado. Admissibilidade da cirurgia de transgenitalização mediante diagnóstico específico e avaliação por equipe multidisciplinar, por pelo menos durante dois anos (CFM, Resolução 1.652/02). Apelante inscrito em fila de espera para o tratamento, que deve ser definido por equipe multidisciplinar, independentemente de autorização judicial, por se tratar de procedimento médico, competindo ao médico a definição da oportunidade e conveniência. Recorrente que, por ora, é pessoa do sexo masculino. Alteração no registro civil que poderá ser tratada oportunamente após resolvida, no âmbito médico, a questão de transexualidade. Apelo desprovido (TJSP 10ª Câmara de Direito Privado Ap. 9110831-89.2005.8.26.0000. Rel. Des. Carvalho Vianna j. 09.10.2007).”

“Registro civil – Pedido de retificação de nome masculino (Luciano) para feminino (Luciano) sem o concomitante pedido de alteração do sexo anotado no assento – Inadmissibilidade – Autor com aparência externa de mulher mas que não realizou a cirurgia para alteração de sexo, permanecendo com a genitália masculina – Necessidade de compatibilidade entre os elementos do assento para impedir confusão na identificação das pessoas – Pedido indeferido – Recurso desprovido (TJSP 2ª Câmara de Direito Privado – Ap. 9215854-24.2005.8.26.000. Rel. Des. Morato de Andrade j. 09.05.2006).”

“Retificação de registro civil – Pretendida alteração de prenome masculino para feminino por transexual – Carência da ação – Cabimento – Pleito que não pode ser apreciado no mérito, posto que não realizada a cirurgia de transgenitalização – Assento de nascimento que indica o autor como sendo do sexo masculino – Impossibilidade de prosseguir a pretensão deduzida no caso específico dos autos, diante da disparidade que passaria a existir entre prenome e sexo – Recurso desprovido (TJSP 6ª Câmara de Direito Privado Ap. 9100784-17.2009.8.26.0000. Rel. Des. Sebastião Carlos Garcia j. 26.11.2009).”

“Retificação de registro civil – Pedido realizado por transexual – Inclusão de prenome feminino – Não cabimento – Interessado ainda não submetido à cirurgia de transgenitalização – Falta de interesse de agir – Caracterização – Sentença confirmada – Recurso não provido (TJSP 7ª Câmara de Direito Privado Ap. 0033051-03.2006.8.26.0451. Rel. Des. Sousa Lima j. 19.10.2011).”

“Registro civil – Retificação – Homem que deseja modificação de prenome masculino por feminino em razão de sua opção sexual – Impossibilidade jurídica do pedido – Irrelevância de como é conhecido no meio social – Cerceamento de defesa afastado – Sentença mantida – Recurso improvido (TJSP 7ª Câmara de Direito Privado Ap. 9064845-49.2004.8.26.0000 Rel. Des. Álvaro Passos j. 31.08.2005).”

Em suma, com base em todas as considerações feitas acima, bem como a colação de vários julgados, chegamos à nítida conclusão que é possível a alteração do prenome e gênero do transexual sem que este tenha se submetido à cirurgia de redesignação sexual.

Em que pese existam ainda decisórios em sentido contrário, o que vem sendo a minoria, vislumbra-se que o aspecto do gênero sexual é muito mais um prisma social do que biológico, por isso a não compulsoriedade do procedimento cirúrgico para a alteração do sexo.

Importantíssimo reforçar que quando falamos em transexual, estamos nos referindo ao indivíduo que assim foi atestado por junta médica, não sendo de modo algum sofredor de outras anomalias ou que a sua vontade de pertencer ao sexo oposto seja episódica.                       

4.3. Caso emblemático: Roberta Close.

Um caso de mudança de prenome e de gênero que teve repercussão nacional foi o da transexual, conhecida também internacionalmente, Roberta Close. Nascida com o nome de Luís Roberto Gambine Moreira, Roberta, desde a infância, sempre apresentou características atribuídas às meninas, gostando de brincar com bonecas, bem como fazer uso de utensílios femininos.

Ao atingir a maioridade era perceptível que sua personalidade em muito se compatibilizava com a do sexo oposto, apresentando acentuada silhueta e características de mulher.

Roberta sofreu muitos dissabores na vida social, não lhe restando outro caminho senão a busca terapêutica mais adequada para sua situação, qual seja, a cirurgia de redesignação sexual.

Após ser examinada por vários médicos, chegou-se a conclusão de que a transgenitalização era a medida mais indicada para diminuir os sofrimentos de Roberta.

Assim, no ano de 1989, se submeteu à cirurgia de mudança de sexo, de homem para mulher, na Inglaterra.

Realizada a cirurgia, Roberta ingressou em juízo pleiteando a retificação de seu prenome e sexo no registro de nascimento, obtendo em 1992, em sentença de primeira instância, proferida pela Juíza da 8ª Vara da Família do Rio de Janeiro, Doutora Conceição Mousnier, êxito em seu pleito.

Segue um trecho da decisão:

“Manter-se um ser amorfo, por um lado mulher, psíquica e anatomicamente reajustada, e por outro lado homem, juridicamente, em nada contribuiria para a preservação da ordem social e da moral, parecendo-nos muito pelo contrário um fator de instabilidade para todos aqueles que com ela contatasse, quer nas relações pessoais, sociais e profissionais, além de constituir solução amarga, destrutiva, incompatível com a vida”. (...) “A escolha do sexo independe, pois do determinismo biológico e resultará do tratamento que lhe coube desde a mais tenra infância. Nessa medida, ser homem ou mulher independe de ser macho ou fêmea. O sexo psicossocial se põe além do sexo morfológico ou hormonal e por estas razões, em termos psicanalíticos, a sexualidade não está absolutamente relacionada a aspectos biológicos”[78].

Contudo, o representante do Ministério Público recorreu e a sentença acabou reformada pelo Supremo Tribunal Federal, em 1997.

É bem verdade que à época em que se intentou a ação, poucos eram os diagnósticos acerca do transexualismo, bem como havia pouca literatura a respeito do assunto. 

É inegável, ainda, que naquele tempo grande era a discriminação e preconceito para com os transexuais, especificamente pelo fato de ser um fenômeno peculiar com poucos pareceres científicos.

Cerca de 12 anos após a realização da intervenção cirúrgica, Roberta propôs nova ação, juntando aos autos diagnósticos oficiais recentes sobre o transexualismo, bem como jurisprudência e legislação nacional e comparada. Vale dizer que, ao tempo dessa nova ação, já estava em vigor a Resolução 1.482/1997[79] do Conselho Federal de Medicina que, como vimos, autorizava a cirurgia.

Em 10 de março de 2005, quinze anos depois de sua primeira tentativa legal, Roberta Close conseguiu, finalmente, ter garantido o direito da mudar o prenome de Luís Roberto Gambine Moreira para Roberta Gambine Moreira. Uma nova certidão foi então emitida pelo cartório da 4ª Circunscrição do Rio de Janeiro. Nela, lavrou-se: "em 7 de dezembro de 1964, que uma criança do sexo feminino, nascida na Beneficência Portuguesa, recebeu o nome de Roberta Gambine Moreira."

Essa certidão garante à modelo a expedição no Brasil de documentos, como carteira de identidade, C.P.F. (Cadastro de Pessoa Física) e passaporte, como sendo do sexo feminino.

A conclusão feita por especialistas que acompanharam Roberta desde a sua mudança de sexo até o êxito na alteração do prenome e gênero, confirmaram a importância da cirurgia e da adequação dos documentos para a melhoria da sua saúde.

Portanto, fica claro que a intervenção cirúrgica para o transexual atinge resultados satisfatórios e, quando conjugada com a alteração do prenome e gênero nos registros civis, pode levar estes indivíduos à plena felicidade.

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Sobre o autor
Felipe Sousa Vieira

Advogado especializado em Direito Imobiliário.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIEIRA, Felipe Sousa. Prenome e gênero do transexual:: averbação ou retificação?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4279, 20 mar. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31965. Acesso em: 22 nov. 2024.

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