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Prenome e gênero do transexual:

averbação ou retificação?

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20/03/2015 às 14:28
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5. A PUBLICIDADE DA ALTERAÇÃO: AVERBAÇÃO OU RETIFICAÇÃO?

5.1. Conceito de averbação e de retificação.

Antes de iniciar a conceituação de averbação e retificação é importante que se deixe claro que ambas são espécies do gênero alteração. Noutras palavras, alteração tem como espécies a averbação e a retificação. Passemos a identificá-las.

Para a busca do conceito de averbação e retificação, mais uma vez, primeiramente, recorremos aos dicionaristas.

Novamente se valendo do dicionário Aurélio, ao consultarmos a palavra ‘averbação’ temos como resultado: “Escrever em verba, à margem de. Registrar, anotar. Declaração ou nota em certos documentos”[80]. Já em relação à palavra ‘retificação’, encontramos o seguinte: “Corrigir, emendar”.

Em consulta ao dicionário eletrônico Priberam, a palavra ‘averbação’ aparece com o seguinte o significado “Escrever em verba à margem de um documento”[81]. Com base neste mesmo, temos como resultado ao consultar a palavra ‘retificação’ o seguinte: “Ato de corrigir”.

Temos que admitir que os conceitos encontrados em ambos os dicionários não são amplos o bastante para podermos separar com exatidão os dois verbetes. Em razão disso, nos socorremos da doutrina de Walter Ceneviva. O referido doutrinador esclarece que “Averbações são lançamentos à margem de registros existentes, destinadas a os modificar ou esclarecer e Retificações são alterações destinadas a corrigir assentamentos”[82].

A retificação sempre deverá ocorrer quando um dado existente no registro encontra-se eivado de erro, em desacordo com a realidade. Dessa forma, promove-se uma retificação do registro, de modo a fazer constar aquele dado, até então errôneo, de forma a espelhar a situação fática, real.

A averbação, de outro lado, não pressupõe qualquer vício no registro. A mesma visa a anotação à margem do assento existente de algum fato jurídico que, de qualquer forma, o modifica ou cancela, sem alterar seu objeto nuclear.

Após estas conceituações fica evidente a importância e o impacto social que a retificação ou averbação podem causar, trazendo várias críticas e repercussões sociais no que tange à decisão judicial que determine esta ou aquela espécie de alteração do prenome e gênero do transexual, de modo que o enfrentamento desse tema, ainda que árduo, não pode ser deixado para trás. Nessa esteira, passemos a definitivamente fazê-lo.

5.2. Prenome e gênero do transexual: Averbação ou retificação?

Depois de várias abordagens pertinentes ao desenvolvimento de qualquer trabalho sobre o transexualismo, verificamos que atualmente não há diploma legal específico regrando a situação do transexual, razão pela qual este indivíduo acaba ficando ao arbítrio das decisões judiciais que, vale frisar, são muito divergentes quanto ao seu conteúdo.

Há decisões que sequer ainda autorizam a alteração do prenome e gênero do transexual[83]; há decisões que autorizam[84] e não[85] a modificação do prenome e do sexo do transexual ainda não submetido à transgenitalização; decisões que são omissas quanto à espécie de alteração[86]. Enfim, como repetidamente foi dito nesse trabalho, enquanto não houver legislação específica pacificando estas questões, os transexuais ainda irão se deparar com vários tipos de decisões judiciais, ora concedendo as alterações, seja na forma de retificação ou averbação, isto quando não for omissa nesse sentido, ora negando-as.

A única questão que se encontra atualmente pacificada é a prescindibilidade da autorização judicial para a transmutação sexual, pois de acordo com a atual Resolução 1.955, de 12.08.2010, do Conselho Federal de Medicina, é permitida a intervenção cirúrgica, seja ela a neocolpovulvoplastia ou neofaloplastia, esta última ainda em caráter experimental. Desse modo, apenas acerca da cirurgia, que há tempos era uma barreira a ser transposta pelos transexuais, é que se pode falar em harmonização da jurisprudência no sentido de aceitá-la, notadamente pelo teor da supracitada resolução do Conselho Federal de Medicina. 

A tormentosa questão se apresenta quando nos perguntamos como deverá constar a alteração no assentamento civil do transexual? Averbação ou retificação? Esta é a questão central a ser desenvolvida neste trabalho.

Nessa ótica e diante da lacuna legislativa, o Poder Judiciário tem dado várias interpretações diante dos casos concretos que envolvem a questão do transexual. Em capítulo próprio verificamos que a possibilidade à alteração é certa na maioria dos casos, sendo que este entendimento está cada vez se solidificando nos tribunais.

É cristalino que para se concluir algo a respeito, há que se meditar e analisar os aspectos favoráveis e os pontos adversos. Não é tarefa simples encontrar solução jurídica que satisfaça plenamente a vontade do transexual e a proteção dos interesses de terceiros, que porventura venham a ser induzidos em erro essencial sobre a pessoa, por exemplo.

O conceito de retificação, contemplado alhures, é claro no sentido de expor que a alteração não deixará vestígios na certidão de nascimento, não havendo como saber qual era o conteúdo anterior contido nesse documento. Altera-se o objeto nuclear.

Nesse caso, o transexual pós-operado pode buscar na justiça a retificação, ou seja, a alteração pura e simples de seu prenome e gênero, sem constar à margem do registro tal modificação.

Sem dúvida está é a espécie de alteração mais almejada pelo transexual, haja vista que não haverá rastros ou indícios da alteração de seu anterior prenome e sexo, de modo que não é equivocado afirmar que constrangimentos futuros deixarão praticamente de existir.

Nesse sentido, colacionamos os dizeres de um transexual que teve retificado em seu registro civil o prenome e o gênero, isto é, sem constar qualquer anotação relativa a seu estado anterior:

“(...) nunca imaginei que o documento pudesse transformar tanto minha vida. Só agora sinto que tenho uma identidade e o direito de levar uma vida normal, com mais segurança e sem medo de virar motivo de conversa. Quero esquecer todas as situações constrangedoras que enfrentava no meu dia-a-dia. A partir de agora, tenho um futuro.”[87]

Com a retificação não haverá como saber se determinado indivíduo alterou seu prenome ou passou pela cirurgia de redesignação sexual, ficando, em outras palavras, omisso qualquer conteúdo nesse sentido na sua certidão de nascimento e demais documentos pessoais. 

O transexual que obtiver na justiça o direito à retificação de seu prenome e gênero poderá livremente apresentar seus documentos (certidão de nascimento, registro geral, cadastro de pessoa física, carteira nacional de habilitação, titulo de eleitor etc) sem passar por constrangimentos, extinguindo qualquer discriminação ou ridicularização que possa ser-lhe direcionado sobre sua atual condição sexual.

Não podemos perder de vista que, na maioria das vezes, antes mesmo da redesignação sexual o indivíduo já se apresenta com os aspectos secundários totalmente compatibilizados com o de seu sexo psicológico, havendo total feição com o sexo oposto[88].

Uma das primeiras decisões a enxergar a necessidade da retificação do prenome e gênero, evitando-se qualquer tipo de discriminação ao transexual, transitou em julgado em abril de 1989. O Magistrado, José Fernandes Lemos, da 3ª Vara de Família e Registros Públicos do Recife, ao proferi-la, asseverou:

“Alterando-se no assentamento do registro civil o sexo do requerente, impõe-se como corolário, deferir a mudança no prenome, como forma de não expô-lo a situações ridículas e vexatórias, que sem dúvida alguma lhe adviriam com o prenome masculino. Embora seja a imutabilidade do prenome conveniente pela importância que exerce na individualização da pessoa, a regra comporta flexões, quais sejam: o erro gráfico, ou quando exponha o indivíduo a situações vexatórias. Por ensejar situação discriminatória, a certidão a ser expedida não deve conter referência de que o assentamento contém elementos de averbação”.

Nessa mesma esteira decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo, tendo como relator o Desembargador Elliot Akel. Vejamos:

“REGISTRO CIVIL - Retificação - Assento de nascimento - Transexual - Alteração na indicação do sexo - Deferimento - Necessidade da cirurgia para a mudança de sexo reconhecida por acompanhamento médico multidisciplinar - Concordância do Estado com a cirurgia que não se compatibiliza com a manutenção do estado sexual originalmente inserto na certidão de nascimento - Negativa ao portador de disforia do gênero do direito à adequação do sexo morfológico e psicológico e a conseqüente redesignação do estado sexual e do prenome no assento de nascimento que acaba por afrontar a lei fundamental - Inexistência de interesse genérico de uma sociedade democrática em impedir a integração do transexual - Alteração que busca obter efetividade aos comandos previstos nos artigos 1º, III, e 3º, IV, da Constituição Federal - Recurso do Ministério Público negado, provido o do autor para o fim de acolher integralmente o pedido inicial, determinando a retificação de seu assento de nascimento não só no que diz respeito ao nome, mas também no que concerne ao sexo”. (Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n. 209.101-4 - Espirito Santo do Pinhal - 1ª Câmara de Direito privado - Relator: Elliot Akel - 09.04.02 - V. U.).

Ambas as decisões tem como fundamento o princípio da dignidade da pessoa humana, sobrepondo-a a qualquer outro princípio, tais como o da segurança jurídica, o da publicidade e o da imutabilidade dos registros públicos.

Nesse sentido é o que a doutrina moderna vem entendendo, seguida pelos estudiosos Luiz Alberto David Araújo, Flávio Tartuce, Maria Berenice Dias, Caio Mario da Silva Pereira e Antonio Chaves.

Referidos doutrinadores afirmam, em uma orientação liberal, que a alteração do prenome e gênero do transexual deve ser feita na modalidade retificação, não devendo constar qualquer averbação ou anotação no registro de nascimento ou em qualquer outro documento. Ensinam que a averbação só continuaria trazendo constrangimentos aos portadores de disforia de gênero, de modo que seus anseios não seriam integralmente atendidos.

Interessante salientar que este entendimento, mesmo que benéfico aos transexuais, contraria disposição literal contida na Lei 6.015 de 31.12.1973 (Lei de Registros Públicos), especificamente o art. 29, §1º, letra f, que informa a necessária averbação da alteração ou abreviaturas de nomes[89].  

Por outro lado, a doutrina e jurisprudência mais conservadora defendem que a alteração deve ser feita na modalidade de averbação, sendo imperiosa a anotação de que a alteração deu-se por sentença judicial. Dessa forma, resguardaria o interesse público, evitando que terceiros de boa-fé fossem induzidos a erro.

Seguindo esse raciocínio, Tereza Rodrigues Vieira parece propor a solução ideal, equilibrando o interesse do particular e o interesse público:

“Até a presente data, persistimos na averbação e não na criação de um registro completamente novo, para evitar, por exemplo, que um determinado indivíduo contraia casamento, sem conhecer a condição transexual do outro nubente (...). Na certidão de nascimento poderá constar apenas ‘com observações’ ou ‘com averbações’. Assim, dependendo do motivo para o qual o ‘ex-transexual’ esteja exibindo o documento, não se indagará o motivo da inscrição acima”.

De forma veemente e esclarecedora, o Superior Tribunal de Justiça já se pronunciou a favor da averbação. Em 22.03.2007, ao julgar caso procedente no Rio Grande do Sul, o saudoso Min. Carlos Alberto Menezes Direito deliberou sobre o assunto, decidindo favoravelmente pela adequação do prenome e sexo, desde que houvesse a publicidade dessas alterações. Eis a ementa:

“Mundança de sexo. Averbação no Registro Civil.

1. O recorrido quis seguir o seu destino, e agente de sua vontade livre procurou alterar o seu registro civil a sua opção, cercada do necessário acompanhamento médico e de intervenção que lhe provocou a alteração da natureza gerada. Há uma modificação de fato que não se pode comparar com qualquer outra circunstância que não tenha a mesma origem. O reconhecimento se deu pela necessidade de ferimento do corpo, a tanto, como se sabe, equivale o ato cirúrgico, para que seu caminho ficasse adequado ao seu pensar e permitisse que seu rumo fosse aquele que seu ato voluntário revelou para o mundo no convívio social. Esconder a vontade de quem a manifestou livremente é que seria preconceito, discriminação, opróbrio, desonra, indignidade com aquele que escolheu o seu caminhar no trânsito fugaz da vida e na permanente luz do espírito.

2. Recurso especial conhecido e provido”

(STJ, Resp 678.933/RS, 3ª T., rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito). (grifei)

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Assim, fica evidente que a averbação além de resguardar direito de terceiros de boa-fé, atende também, de certa forma, o desejo do transexual que é o reconhecimento de sua nova identidade.

Os demais documentos dos transexuais (ou ex-transexuais, como preferem alguns) não teriam qualquer anotação ou menção a respeito da averbação constante em seu assento civil, de modo que a apresentação dos documentos de praxe jamais os exporia ao ridículo ou a situações vexatórias.

 Mesmo em casos excepcionais que se exigisse a certidão de nascimento do transexual, nesta só seriam visíveis as seguintes expressões: “consta averbação”, “anotação”, “com observação” ou “alteração no registro por força de decisão judicial”. Este conteúdo não seria capaz de trazer angústia ao redesignado, razão pela qual nos parece a melhor saída, harmonizando os interesses de um modo geral.

Exatamente a propósito dessa posição, existem o Projeto de Lei n. 70-B, de 1.995, de autoria do Deputado José Coimbra, e o Projeto de Lei n. 6.655 de 2.006, este de autoria do Deputado Luciano Zica.

O primeiro projeto tem como objetivo a legalização das operações de redesignação sexual e a posterior mudança no registro civil.

O deputado José Coimbra propõe a inclusão de novo parágrafo no artigo 129 do Código Penal, com o intuito de excluir do crime de lesão corporal a cirurgia de adequação sexual. Tal modificação visa sedimentar o entendimento de que a conduta do médico, ao realizar a cirurgia de readequação sexual, não constitui crime de lesão corporal[90], reforçando o que já dispõe a atual Resolução 1.955, de 12.08.2010, do Conselho Federal de Medicina.

Além disso, o deputado também propõe alterações no artigo 58 da Lei nº 6.015 de 31/12/1973 (Lei dos Registros Públicos). Com a aprovação do projeto, o artigo passaria a possuir três parágrafos. O primeiro praticamente idêntico ao original. O segundo parágrafo prevê nova hipótese de alteração do nome relacionada à realização da cirurgia de transgenitalização. O terceiro parágrafo dispõe sobre a averbação de ser a pessoa transexual no registro de nascimento e documento de identidade[91].

A comissão de Constituição e Justiça e de Redação fez ressalva sobre o parágrafo terceiro do projeto. A comissão insurgiu-se contra a determinação de averbação no sentido de constar no registro que a pessoa é transexual, com fundamento no art. 5º, X, da CF, que protege, entre outras coisas, a privacidade da pessoa. Além de agredir a privacidade da pessoa, a menção ao fato de ser transexual a expõe ao ridículo.

A comissão, então, propôs nova redação ao citado parágrafo, que passou a ser a seguinte: “No caso do parágrafo anterior, deverá ser averbado no assento de nascimento o novo prenome, bem como o sexo, lavrando-se novo registro”. Foi apresentada, ainda, emenda aditiva que inclui mais um parágrafo ao artigo 58. O quarto parágrafo tem a seguinte redação: “É vedada a expedição de certidão, salvo a pedido do interessado ou mediante determinação judicial”.

Contudo, há inúmeras questões que não foram abordadas no projeto. Apesar de seu valor e iniciativa, o projeto possui diversas lacunas e ainda não poderá resolver completamente os problemas dos transexuais.

O referido projeto é omisso quanto à necessidade ou não de autorização judicial para a realização da cirurgia. Não explicitou os destinatários da norma; não determinou o estado civil do transexual para que possa submeter-se à operação e deixou de estabelecer as garantias para que ele exerça os direitos decorrentes do seu novo estado sexual. Conseqüentemente, não delimitou o alcance jurídico desse reconhecimento e, por fim, também deixou de fixar os respectivos deveres.

Embora reconheçamos que o Projeto de Lei 70-B, de 1995, de louvável iniciativa do deputado José Coimbra, seja um primeiro passo para solução dos problemas dos transexuais no Brasil, o mesmo, lamentavelmente, não se mostra adequado a resolver, definitivamente, a difícil situação em que se encontram os transexuais em nosso país.

Já o projeto de Lei de autoria do Deputado Luciano Zica propõe a alteração do artigo 58 da Lei de Registro Públicos, de forma a autorizar a alteração do prenome, mesmo sem ter passado pela intervenção cirúrgica. Já em relação ao sexo, o parlamentar propõe que seja feita a anotação de se tratar de um transexual[92].

Por fim, o projeto mais recente (Projeto Lei 1.281 de 2011), atualmente apensado aos outros dois supramencionados, de autoria do Deputado João Paulo Lima, propõe a inclusão do Art. 58-A na Lei de Registros Públicos, no sentido de autorizar a alteração do prenome independentemente de decisão judicial, desde que comprovado por laudos médicos a sua condição de transexual.

Infelizmente, os projetos de lei, em que pesem ser de boa iniciativa no sentido de minimizar os sofrimentos dos transexuais, parecem propor um retrocesso, não se coadunando com o princípio da dignidade humana. Num primeiro momento, poderíamos dizer que a proposta de incluir no registro que a pessoa é “transexual” é degradante e aviltante. É como se criasse um novo gênero, um ser diferente.     

Seguindo esse raciocínio, oportuno citar o entendimento do ilustre Luiz Alberto David Araújo:

“Autorizar a operação, mas manter a inscrição ‘transexual’, é comportamento que não define a situação do transexual. Resolve apenas o problema da aparência, assumindo o sexo desejado, mas não a questão da integração social. Embora tenha a aparência do seu sexo psicológico, na vida civil, ostentará a anotação ‘transexual’, para que firme marcado como anormal para sempre. Como se a sociedade, num gesto magnânimo, lembrasse sempre ao transexual que ele pode parecer-se com o que pretende, mas nunca será realmente o que pretende. O grilhão amarrado ao pé do transexual será sempre exibido, como pena perpétua, impedindo sua integração social”.[93]

Posto este aparato geral, passemos a pontuar as mais polêmicas situações em que a retificação e averbação do prenome e gênero do transexual estão envolvidas, contrapondo-as de modo a obter a melhor solução para o atendimento do transexual e os terceiros de boa-fé.

5.2.1. A publicidade do registro nos casos em que pode haver dificuldades na identificação do indivíduo relativo às suas obrigações civis e criminais.

Muitos podem se questionar, num primeiro momento, se a cirurgia de transgenitalização, seguida da alteração no prenome e gênero, não poderia ser uma forma de o indivíduo se escusar das obrigações civis e criminais, neste último caso, fugindo do registro de antecedentes criminais.

Em relação às pessoas que não são portadoras de distúrbio psíquico de identidade sexual, parece-nos um pouco utópico e, podemos dizer, fantasioso, um indivíduo passar por todo o procedimento previsto na atual Resolução do Conselho Federal de Medicina, moldando o seu corpo tal como o do seu sexo oposto, para fugir de obrigações com os particulares e com o poder público.

Primeiramente, tendo em vista o rigoroso procedimento previsto na citada Resolução, dificilmente uma pessoa passaria pelos inúmeros laudos médicos e teria atestada sua condição de transexual uma vez que não fosse. Ademais, seria difícil de imaginar uma pessoa alterar a sua genitália e se moldar ao sexo oposto para se escusar do cumprimento de avenças ou se responsabilizar pelos seus atos na esfera criminal. Em outras palavras, farsas e fraudes seriam quase que nulas.

Ainda que o indivíduo fizesse operações clandestinas, sem passar pelo crivo e análise de médicos especialistas, no momento de comprovar em juízo os motivos que levaram a alterar seu sexo para conseguir o deferimento da alteração de seu prenome e gênero, estaria ausente o conteúdo probatório que o atesta como sendo pessoa transexual.

Portanto, tratando-se de pessoa não sofredora de disforia de gênero, acreditamos que a situação é de difícil concretização, não merecendo, neste trabalho, a nossa atenção.

Já em relação aos verdadeiros transexuais, atestados assim por laudos médicos, poderíamos nos indagar se a retificação de seu prenome e gênero dificultaria a sua identificação, inviabilizando a execução de obrigações outrora firmadas – isto é, antes do processo transexualizador -, bem como a identificação de um criminoso.

A situação posta parece ser de fácil solução. Para evitar qualquer discussão no sentido de que o processo de redesignação sexual possa vir a beneficiar o transexual, dificultando sua identificação por crime anterior cometido ou no caso de inviabilizar sua localização no registro de antecedentes criminais, bastaria que o juiz, antes de autorizar a alteração do prenome e sexo, deferisse a expedição de ofícios aos órgãos das cidades em que o transexual já residiu. Desse modo, mesmo após a nova identidade, haveria a atualização de seus antecedentes criminais.

Nesse sentido, em 2008, decidiu a 10ª Turma do Tribunal de Justiça de São Paulo, tendo como relator o Des. Maurício Vidigal, autorizar a adequação de prenome e sexo de pessoa que possuía pregresso envolvimento criminal. Vejamos a ementa:

“Registro civil. Nome. Mudança de prenome e sexo. Transexual que se submeteu à ablação do órgão externo masculino. Retificação do registro deferida. Apelação do Ministério Público. Desnecessidade de conversão do julgamento em diligência, em face da existência de anterior envolvimento criminal. Impossibilidade de aceitação de que alguém pudesse se submeter à cirurgia castradora apenas para poder mudar de nome e escapar ao registro de antecedentes criminais. Possibilidade de expedição de ofício aos órgãos de registro das cidades ou estados onde residiu o requerente para atualização dos registros criminais. Proibição de mudança do prenome que não é absoluta. Neuro discordância de gênero que pode induzir situações de constrangimento no dia a dia e que podem ser resolvidas com a retificação do registro civil. Recurso desprovido (TJSP, AC 427.435-4/3, 10ª Câm. Dir. Priv. Rel. Maurício Vidigal, j. 11.11.2008)”.           

 Verifica-se que o julgador, na ementa acima, entendeu por bem deferir a alteração na forma de retificação, mas atualizando esse novo registro com os antecedentes criminais.

Com relação às dívidas contraídas com terceiros, nos parece que a alteração feita na espécie de retificação não seria o melhor caminho.

O indivíduo, antes de passar pelo processo transexualizador, incluindo-se aí a alteração do prenome e gênero, foi sujeito de direito e obrigações. Por certo, vários negócios jurídicos com terceiros foram entabulados e, alguns deles, porventura, ainda não foram totalmente adimplidos.

Nesse sentido, em eventuais ações de cobrança, quando deferida a expedição de ofícios para órgãos com grande acervo cadastral no sentido de localizar o devedor, haveria, obviamente, o retorno negativo, não havendo como localizar o inadimplente.

Por outro lado, havendo a averbação à margem do registro, haveria possibilidade de localizar o indivíduo que passou pela redesignação sexual e teve seu prenome e sexo alterados.

Essa situação é tema objeto da ação direta de inconstitucionalidade nº. 4275-1, da relatoria do Ministro Marco Aurélio Mello, atualmente em trâmite no Supremo Tribunal Federal. Nesse feito, houve a Advocacia Geral da União por expressar, em sua manifestação, a necessidade de preservação dos dados anteriores que são objeto da alteração requerida pelo transexual. Vejamos:

“A possibilidade de retificação do registro público sem qualquer referência ao antigo estado implicaria no desaparecimento do sujeito de direito anterior, o que inviabilizaria (ou, ao menos, causaria sérios embaraços), por exemplo, a efetivação da cobrança de débitos civis e tributários, bem como a investigação, persecução e execução penais que eventualmente recaíssem sobre o transexual em razão de atos por ele praticados anteriormente à tal retificação.”

Adiante, conclui:

“A manutenção do prenome e do sexo civil anteriores reveste-se, portanto, de interesse público, além de concorrer para a efetivação do princípio da segurança jurídica (artigo 5ª, caput, da Constituição), por resguardar a verdade que o registro deve ostentar”.            

A averbação, sem sombra de dúvida, sempre será a melhor forma em aliar os interesses de terceiros com o desejo de alteração do prenome e sexo do transexual.

A retificação, por outro lado, além de dificultar a identificação do indivíduo, sendo necessárias determinações no sentido de acautelar problemas futuros, fecha os olhos para os direitos de terceiros de boa-fé, inviabilizando o cumprimento de obrigações avençadas com os transexuais.

5.2.3. A publicidade do registro nos casos de casamento do transexual.

Talvez seja esta a situação que mais traz polêmica quando o assunto é retificação ou averbação do prenome e gênero do transexual.

Antes de adentrarmos no mérito do tópico, deixamos claro que nosso entendimento é no sentido de permitir o casamento do transexual, filiando-se ao entendimento do já inúmeras vezes citado Luiz Alberto David Araújo.

Tal entendimento encontra respaldo na recente decisão do Supremo Tribunal Federal que, em sessão plenária realizada em 05 de maio de 2011, por unanimidade, julgou Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132, reconhecendo a união homoafetiva. Desse modo, tendo em vista que o transexual vê seu relacionamento na ótica heterossexual, mesmo que não se reconheça seu sexo psicológico, há possibilidade do reconhecimento da união afetiva por analogia à histórica decisão do Pretório Excelso.

É fato notório que, por vezes, é quase impossível se identificar um transexual, posto que moldam suas feições e vozes por meio de cirurgias e hormônios, transfigurando-se totalmente ao seu sexo oposto.

Desse modo, não é raro e incomum que uma pessoa venha a se apaixonar e manter um relacionamento com um transexual sem, contudo, saber a sua real biologia, pois esta nunca irá mudar.

Pois bem, tal como qualquer outro relacionamento, pode haver o amadurecimento dos sentimentos e a relação se tornar tão agradável que tanto o terceiro e o transexual consintam em unir-se em matrimônio.

Pode acontecer, ainda, que o transexual não venha a expor seu verdadeiro passado, informando ao futuro cônjuge que nasceu homem ou mulher, conforme o caso, razão pela qual o terceiro estaria totalmente induzido a erro.

Vale dizer que mesmo desconfiando de algo, havendo a retificação do assentamento civil do transexual, o terceiro não terá como saber o verdadeiro gênero de seu parceiro.

Por estas razões, nos parece que a averbação é a melhor maneira de evitar com que o terceiro de boa-fé seja levado a erro com relação ao seu parceiro transexual, devendo, portanto, constar em sua certidão de nascimento que o prenome e gênero foram alterados por decisão judicial.

Ilustrando bem essa problemática, em 2009, a 12ª Turma do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, tendo como relator o Desembargador Nanci Mahfuz, proferiu a seguinte decisão:

“Transexualismo. Mudança do sexo. Mudança de prenome. Possibilidade. Averbação no registro civil. Decisão judicial. Apelações cíveis. Mudança sexo. Declaratória de sexo feminino e alteração do prenome e patronímico. Transexual, portador de Síndrome de Klinefelter que fez cirurgias de amputação de pênis e construção de neovagina. Sentença de improcedência, com fundamento na estabilidade das relações jurídicas, na ausência de transformação do autor em mulher, e na preservação de terceiros de boa-fé. A alteração da legislação é mais lenta que as mudanças sociais e técnicas, pelo que o julgador deve aplicar a lei de forma a adequá-la a essas mudanças. A medicina atual faz distinção entre transexual, travesti e homossexual. Res. CFM. 1.652/2002 que estabelece as condições para a cirurgia de neocolpovulvoplastia, no caso de transexualismo, por reconhecer distúrbio psicossocial, por transtorno de identidade de gêneros. Reconhecimento pelo Ministério da Saúde de tratar-se de tratamento, pela Portaria 1.707 de 18.08.2008, que institui no âmbito do SUS o processo transexualizador dentro da integralidade da atenção à saúde. Hipótese a que se aplicam normas constitucionais do direito à saúde e à dignidade da pessoa humana, bem como a permissão excepcional do art. 13 do Código Civil de 2002, e não a proibição. Aplicação do art. 5º da LICC. Instrução do feito suficiente para o julgamento. Necessidade de modificação do nome e do sexo no registro civil, em razão da aparência física de mulher. Jurisprudência não pacificada com relação ao que deve constar, sendo necessária a ponderação entre os interesses em jogo. Preservação da boa-fé de terceiros e das normas registrais, devendo ser averbada a decisão no registro civil, constando nas certidões que as alterações de nome e gênero decorrem de ato judicial. Precedente do STJ no Resp 678.933. Inexistência de discriminação ilegítima. Reforma da sentença para julgar procedente o pedido, alterando-se o nome e o gênero. Provimento do segundo recurso, prejudicado o recurso ministerial (TJRJ, ApCiv. 0180968-76.2007.8.19.0001 (2009.001.11138), 12ª Câm. Civ., j. 08.09.2009, rel. Des. Naci Mahfuz).” Grifei

Não se verifica aqui qualquer ideia de preconceito. O que se proclama, ao contrário, pela própria natureza pública dos assentos relativos ao estado da pessoa, é a segurança jurídica de terceiros, ao qual o exclusivo e particular interesse não podem prevalecer. Até porque, como se tem dito incansavelmente, os documentos geralmente utilizados pelo interessado indicarão a sua atual condição de prenome e sexo, sem qualquer ressalva.

Flávio Tartuce, apresenta colocação destoante da apresentada:

“Entendemos que o argumento pelo qual terceiros de boa-fé podem ser induzidos a erro pelo transexual operado não pode prosperar. Isso porque é comum que o próprio transexual revele ao pretenso parceiro a sua situação. Primeiro, porque a patologia lhe traz choques psíquicos graves. Segundo, temendo represálias ou manifestações agressivas futuras.”[94]

“Data máxima vênia”, não seguimos os ensinamentos do ilustre doutrinador. Não se pode ter como garantia a confissão do transexual, sendo esta totalmente subjetiva, dependendo de cada caso.

O transexual pode omitir sua condição sexual passada exatamente por medo e receio de sofrer algum tipo de violência ou novas situações de constrangimento.

Seria aconselhável que o transexual revelasse seu passado antes mesmo de engatilhar qualquer relacionamento, mas isso, por certo, evitaria, na maioria das vezes, qualquer aproximação com outra pessoa.

Compreendemos a dificuldade da reintegração social do transexual, no entanto, não se pode descurar que devem ser preservados os direitos à dignidade e felicidade de todos os demais indivíduos da sociedade, que podem vir a namorar e se casar com um transexual por ignorar tal situação, atingindo sua personalidade, seja por questões éticas, filosóficas ou religiosas, não importa. Tal preservação, aliada ao interesse de alteração do prenome e gênero do transexual, só pode ser feita na forma de averbação.

Poderíamos ser surpreendidos com o seguinte questionamento: Se o transexual se molda tão perfeitamente ao seu sexo psicológico, com caracteres primários e secundários bem definidos, bem como pode ter êxito em pedido judicial que defira a retificação de seu prenome e gênero, como poderá ser identificado? A resposta para a questão nos parece fácil.

Como sabemos, internamente, a constituição física do indivíduo operado continua a mesma, ou seja, mantém seu sexo de origem. Apesar de perder várias características físicas do seu sexo de origem, continuará, conforme o caso, homem com seus cromossomos XY, ou mulher com seus cromossomos XX.

Um transexual masculino que fez a cirurgia de redesignação de sexo, por exemplo, jamais poderá gerar um filho (pelo menos diante da tecnologia médica e cientifica atuais), eis que houve apenas a mudança de sua genitália.

Dessa forma, mais cedo ou mais tarde, o parceiro do transexual o indagará ou irá levá-lo para exames, no sentido de saber por qual motivo seu cônjuge não pode gerar. Esta pressão culminaria, cedo ou tarde, na descoberta da real biologia do transexual. Isso, sem dúvida, causaria vários transtornos, tanto ao transexual como para o seu parceiro.

Uma mulher pode vir a não conseguir gerar um filho; porém, isto é uma hipótese. Já no caso do transexual masculino, a impossibilidade de gerar uma criança é uma certeza.

Nesse panorama, o Superior Tribunal de Justiça, através da 3ª Turma, decidiu por unanimidade, negar o segredo de justiça ao pedido de transexual para mudar o seu nome e sexo no registro civil. O saudoso relator Ministro Carlos Alberto Direito de Menezes, com a inteligência que lhe era peculiar, ressaltou em seu relatório que:

“Não creio que os argumentos postos no acórdão do TJRS tenham substância capaz de justificar a conclusão que acolheu, particularmente com a infeliz comparação com a mulher que por qualquer patologia não pode gerar. Aquela que não pode gerar tem a mesma benção da sua natureza daquela que pode. Ao dom da criação, que homem e mulher repartem, com a fecundação, fruto do amor e entrega, de doação e unidade, não se nega a origem nascida nem se esconde fato resultante de ato judicial. Não se trata de ato submetido ao registro civil. Não se trata de modificação da sua natureza.”[95]

É bem verdade que a esterilidade não é motivo para anulação do casamento. O fato de o cônjuge não poder gerar filhos não encontra respaldo no direito pátrio para a dissolução do matrimônio.

Nesse sentido, Washington de Barros Monteiro nos ensina:

“A instituição (casamento) não tem exclusivamente por fim a procriação; visa também ao estabelecimento de união afetiva e espiritual entre os cônjuges. Uma vez que essa união ao pode ser alcançada, inexistirá motivo para anular o casamento, só porque dele não adveio prole, em razão da esterilidade de um dos cônjuges. A jurisprudência é pacífica a respeito, tanto para a mulher como para o homem”.[96]           

Na mesma esteira, Luiz Alberto David Araújo apregoa: “(...) o casamento não tem como finalidade a procriação, mas o convício entre duas pessoas. Tanto isso é verdade que a impossibilidade de gerar filhos não é motivo para anulação do casamento”.[97]

Ocorre que na situação do transexual, o fato de não poder gerar irá levar seu parceiro a querer descobrir por qual motivo, o que levará, inevitavelmente, a descoberta do passado do mesmo, de modo que a anulação do casamento terá fundamento nos artigos 139[98], 1.556[99] e 1.557[100], todos do Código Civil. Trata-se de erro essencial sobre a pessoa.

Nessa hipótese, o cônjuge enganado tem direito a indenização por conta da omissão do transexual em relação a sua identidade. Tal direito teria por base a regra esculpida no art. 5, inciso V, da Constituição Federal[101].

No entanto, seria razoável permitir que o terceiro de boa-fé passasse por tal situação, sendo que poderia ter acesso ao assento civil de seu futuro cônjuge e verificar que constam averbações? Não seria melhor que o direito como um todo agisse de forma preventiva do que repressiva? Será que a indenização por conta de erro essencial amenizaria a dor de um indivíduo que viveu em matrimônio ou união estável com uma pessoa cuja verdade lhe foi omitida com a ajuda do poder judiciário?

Não se pode esconder no registro, sob pena de validarmos agressão à verdade que ele deve preservar, que a mudança decorreu de ato judicial. Trata-se de registro imperativo e com essa qualidade é que se não pode impedir que a modificação da natureza sexual fique assentada.  

A análise da questão aqui debatida, ante a colisão do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e do princípio da felicidade, deve ser harmonizada e ponderada em ponto certo que atenda aos anseios do transexual em ter um prenome e gênero compatíveis com a sua nova aparência, permitindo estas alterações no seu registro civil e atendendo-se aos anseios de todos os demais cidadãos, também titulares do direito à dignidade da pessoa humana.

Para isso, verifica-se a necessidade de que seja determinada a averbação do novo prenome e sexo no assento de nascimento, evitando-se, assim, um casamento indesejado com um transexual, ou dando-se a chance de se evitar uma união estável.  

Deferir a averbação, ao invés da retificação, conjuga a dignidade do requerente, evitando constrangimentos públicos e, de outro lado, preserva o interesse de terceiros.

Por fim, a certidão de nascimento, único documento em que constaria a averbação do prenome e gênero do transexual, é via de regra, documento exigido em limitadíssimas ocasiões, de modo que o constrangimento no dia a dia da vida se mostra quase que totalmente afastado com a utilização dos documentos de identidade e habilitação, por exemplo. Logo, a averbação é a espécie mais adequada de alteração para aliar o interesse do particular e o da coletividade.

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Sobre o autor
Felipe Sousa Vieira

Advogado especializado em Direito Imobiliário.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIEIRA, Felipe Sousa. Prenome e gênero do transexual:: averbação ou retificação?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4279, 20 mar. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31965. Acesso em: 20 abr. 2024.

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