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O crédito tributário na recuperação judicial

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19/06/2015 às 11:22
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Somente será dada total eficácia à Lei n. 11.101/2005, especialmente no que se refere ao seu propósito de preservação da empresa, quando for editada lei específica para tratar do parcelamento do crédito tributário na recuperação judicial.

INTRODUÇÃO

A Lei n. 11.101/2005 trouxe significativas alterações na disciplina de falência, além de ter introduzido o instituto da recuperação judicial no nosso ordenamento jurídico.

A referida lei foi elaborada tendo como finalidade precípua tornar possível a superação da situação de crise econômico-financeira pelas empresas em dificuldades, com o objetivo de manter a fonte produtora, o emprego dos trabalhadores e os interesses dos credores, de maneira a promover a preservação da empresa, a sua função social e o estímulo à atividade econômica, tal como se infere da redação do art. 47.

Nesse contexto, cabe destacar que um dos principais credores de empresas em situações de crise é o Fisco, situação essa que autoriza concluir que o soerguimento de tais unidades produtivas é também de interesse da Fazenda Pública.

Não obstante, as disposições contidas na Lei n. 11.101/2005 conferem, aos créditos tributários, tratamento que não se coaduna com a finalidade de promover o reerguimento da empresa em dificuldade.

Este trabalho, portanto, tem o objetivo de explicitar as disposições relativas ao crédito tributário no processo de recuperação judicial, nos termos deduzidos nas linhas a seguir.


1.    FUNDAMENTOS DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL: PRINCÍPIOS DA PRESERVAÇÃO E DA FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA

Antes de adentrar ao estudo do fundamento do instituto da recuperação judicial, é de bom tom lembrar quem são os sujeitos que podem se beneficiar desse instituto.

Nesse ponto, a Lei n. 11.101/2005, em seu art. 1º, é expressa em estabelecer que as disposições contidas naquele texto legal são destinadas ao empresário e à sociedade empresária, ou seja, àqueles que exercem atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou serviços, nos termos dos arts. 966 e 982 do Código Civil.

Em outras palavras, portanto, a Lei n. 11.101/2005 vem disciplinar a insolvência empresarial, porém, com o objetivo primordial de tornar possível a manutenção das atividades da empresa em crise e viabilizar o seu reerguimento.

Mas o que justifica essa preocupação do Estado com a recuperação de uma empresa em dificuldade econômico-financeira?

É claro que essa preocupação não se dirige, como primeiro plano, aos efeitos de uma quebra para o empresário, mas, sim, à sua empresa como unidade produtiva, que, nessa condição, promove a circulação de riquezas, gera empregos e fornece produtos ou serviços para o mercado.

Nesse contexto, conclui-se que a base do instituto da recuperação judicial é buscar a preservação da empresa, a fim de que esta possa desempenhar a sua função social.

Esse fundamento pode ser encontrado, implicitamente, no art. 170 da Constituição Federal, o qual prevê que a ordem econômica tem por fim assegurar existência digna a todos, embasando-se, para tanto, entre outros princípios, na valorização do trabalho, busca do pleno emprego, livre iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade.

A Lei n. 11.101/2005, por sua vez, cuidou de prever expressamente o referido postulado em seu art. 47 da seguinte forma:

Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

O mencionado dispositivo legal estabelece, portanto, o principal objetivo da recuperação judicial da empresa, consubstanciado na manutenção da unidade produtora. Nesse ponto, evidencia-se o estímulo ao exercício das funções empresariais, com o objetivo de promover a sua função social, de modo que o princípio da preservação da empresa assume um aspecto de relevante interesse social.

É de se notar que o princípio da preservação da empresa, promovido pelo art. 47 da Lei n. 11.101/05, faz uma clara dissociação do interesse do sócio e do interesse da sociedade, conforme se infere das palavras de Fábio Ulhoa Coelho (2008, p. 13) sobre o tema:

(…) no princípio da preservação da empresa, construído pelo moderno Direito Comercial, o valor básico prestigiado é o da conservação da atividade (e não do empresário, do estabelecimento ou de uma sociedade), em virtude da imensa gama de interesses que transcendem os dos donos do negócio e gravitam em torno da continuidade deste; (...)

Assim, a empresa, unidade econômica básica da livre iniciativa e, por conseguinte, um dos pilares da economia, no seu contexto institucional, em que se prestigia a sua função social, representa uma fonte geradora de empregos e riquezas, além de ocupar importante posição perante o Fisco no que diz respeito ao recolhimento de tributos.

Por isso mesmo é que é possível se afirmar que o interesse pela conservação da atividade empresarial não é apenas do empresário ou do investidor, mas, também, é de todos aqueles que se beneficiam da sua capacidade econômica, ou seja, os credores, empregados, consumidores e até mesmo o Fisco, em virtude da arrecadação de tributos. Nas palavras de Sérgio Campinho (2012, p. 126):

O instituto da recuperação vem desenhado justamente com o objetivo de promover a viabilização da superação desse estado de crise, motivado por um interesse na preservação da empresa desenvolvida pelo devedor. Enfatize-se a figura da empresa sob a ótica de uma unidade econômica que interessa manter, como um centro de equilíbrio econômico social. É, reconhecidamente, fonte produtora de bens, serviços, empregos e tributos que garantem o desenvolvimento econômico e social de um país. A sua manutenção consiste em conservar o “ativo social” por ela gerado. A empresa não interessa apenas a seu titular – o empresário –, mas a diversos outros atores do palco econômico, como os trabalhadores, investidores, fornecedores, instituições de crédito, ao Estado, e, em suma, aos agentes econômicos em geral. Por isso é que a solução para a crise da empresa passa por um estágio de equilíbrio dos interesses públicos, coletivos e privados que nela convivem.

Diante das considerações acima lançadas, fica, pois, evidenciado que o Fisco, assim como os demais credores, também tem inquestionável interesse no soerguimento de uma empresa em crise, sobretudo porque, somente assim, esta poderá honrar seus débitos tributários em aberto.

Nessa linha, portanto, é que se fará, a seguir, um estudo sobre o tratamento conferido ao crédito tributário especificamente nos processos de recuperação judicial de empresas, a fim de compreender qual é o comportamento do Fisco perante tais situações.


2.    O CRÉDITO TRIBUTÁRIO NA RECUPERAÇÃO JUDICIAL

Para tratar do crédito tributário na recuperação judicial, é importante, inicialmente, apontar os momentos em que a Lei n. 11.101/2005 faz menção às obrigações fiscais da empresa devedora.

No processo de recuperação judicial, a primeira ocasião em que se fala em crédito tributário é logo no deferimento do seu processamento pelo juízo competente, nos termos do art. 52, II.

Outro momento em que há referência às obrigações fiscais está previsto no art. 6ª, § 7º, quando se trata da suspensão do curso das ações e execuções em face da devedora, excetuando-se, por outro lado, as ações de execução fiscal.

Também se fala em crédito tributário no processo de recuperação judicial nos arts. 57 e 68 da lei em referência. O primeiro dispositivo estabelece a necessidade de se apresentar certidões negativas de débitos fiscais após a aprovação do plano de recuperação judicial, enquanto o segundo fala sobre a possibilidade de parcelamento do crédito tributário.

Por fim, há referência aos débitos de natureza tributária do devedor no art. 60, parágrafo único, da Lei n. 11.101/2005, o qual prevê que, no caso de alienação de filiais ou unidades produtivas isoladas da devedora, as obrigações fiscais não serão transmitidas ao adquirente.

Tanto o art. 52, II, quanto o art. 60 traduzem situações condizentes com os objetivos da recuperação judicial, especialmente no sentido de proporcionar a preservação da empresa em dificuldade. Por outro lado, os arts. 6ª, § 7º, e 57 c/c 68 trazem disposições prejudiciais ao soerguimento da empresa em crise, contrariando, assim, o fundamento do instituto da recuperação judicial.

A seguir, cada um desses dispositivos legais será comentado.

2.1.    O deferimento do processo de recuperação judicial

No momento em que o magistrado defere o processamento da recuperação judicial, deve adotar as providências previstas no art. 52 da Lei n. 11.101/2005, dentre as quais, está aquela contida no inciso II do citado dispositivo legal, segundo o qual deverá ser determinada a dispensa da apresentação de certidões negativas para que o devedor exerça suas atividades, exceto para contratação com o Poder Público ou para recebimento de benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios.

Essa disposição legal é um ponto positivo, uma vez que permite à empresa devedora a continuidade de suas atividades, principalmente, na fase inicial do processo de recuperação judicial, o que se coaduna perfeitamente com o fundamento desse instituto, no sentido de promover a preservação da empresa.

2.2.    As ações de execução fiscal na recuperação judicial

O art. 6º da Lei n. 11.101/2005 estabelece que o deferimento do processamento da recuperação judicial acarretará a suspensão do curso de todas as ações e execuções em face da devedora, suspensão essa que deve perdurar pelo prazo de 180 dias[1], nos termos do § 4º do citado preceptivo legal.

Esse é o chamado “período de blindagem”, no qual a empresa em recuperação judicial tem um fôlego para reorganizar as suas atividades e preparar-se para dar início ao cumprimento do plano de recuperação judicial.

Por outro lado, o § 7º do art. 6º traz uma exceção à regra prevista no caput, que diz respeito exatamente às execuções fiscais. Nos termos desse dispositivo legal, as execuções fiscais não são suspensas pelo deferimento da recuperação judicial, ressalvada a concessão de parcelamento de acordo com o Código Tributário Nacional (CTN) e a legislação específica[2].

Ao comentar o referido preceptivo de lei, Carlos Alberto da Purificação (2011, p. 52) traça as seguintes considerações:

Em se tratando de execuções fiscais, essas não serão abrangidas pela prerrogativa prevista no caput deste artigo, tratando-se do processamento da recuperação judicial. Entretanto, nada obsta que o devedor possa renegociar seus débitos junto ao Fisco, através dos variados programas de refinanciamento atualmente existentes, como é o caso do Refis, do Simples e do Super Simples, de modo a encerrar os eventuais processos de execução fiscal, existentes.

No entanto, a previsão do art. 6º, § 7º, mostra-se incompatível com o propósito da recuperação judicial da empresa em dificuldades.

Isso porque, como é cediço, a tramitação da ação de execução fiscal, nos termos da Lei n. 6.830/80, poderá chegar a momento processual em que haja a constrição ou leilão dos bens da executada, de maneira que prejudique a empresa em vias de recuperação judicial.

Observa-se, no texto da Lei n. 11.101/2005, um tratamento privilegiado ao crédito tributário na recuperação judicial, o que coloca o Fisco em situação privilegiada perante os demais credores.

Tanto isso é verdade que até mesmo os credores titulares da posição de proprietários fiduciários de bens da devedora – que não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial, nos termos do art. 49, § 3º – devem respeitar ao período de blindagem previsto no art. 6º, § 4º, e se abster de vender ou retirar os bens da devedora que sejam essenciais às suas atividades empresariais, enquanto o Fisco está autorizado a prosseguir com as execuções fiscais e, por conseguinte, chegar ao momento de constrição de bens da executada.

Nessa mesma linha de entendimento, ao vislumbrar o privilégio da Fazenda Pública com relação aos demais credores, Julio Kahan Mandel (2005, p. 134), advogado especialista em direito falimentar, traçou considerações importantes, como se vê abaixo:

Fica criada uma proteção injustificável para a Fazenda Pública, proteção essa nociva aos interesses da lei, que é a manutenção da unidade produtiva, pois na prática exclui os créditos fiscais da recuperação judicial (o que não acontece com nenhum outro credor), quando se sabe que uma das maiores causas da ruína das empresas é justamente a alta carga tributária.

(…)

O prosseguimento da execução fiscal com a penhora de bens da empresa devedora, durante o prazo de negociação do plano de recuperação com os demais credores poderá inviabilizar a recuperação. (…)

Cabe anotar que mesmo a ressalva referente ao parcelamento do débito tributário não configura qualquer benefício ou inovação, uma vez que a suspensão da execução fiscal em decorrência do parcelamento do crédito tributário já está prevista no art. 151, VI, do Código Tributário Nacional. Em outras palavras, essa previsão de ressalva é inócua e não traduz qualquer preocupação com a continuidade das atividades da empresa em crise.

Dessa forma, fica evidenciada a incompatibilidade da previsão contida no art. 6º, § 7º, da Lei n. 11.101/2005, com o fundamento primordial da recuperação judicial, sobretudo porque dificulta o reerguimento da empresa em dificuldades.

Nesse contexto, a jurisprudência pátria – ainda que não haja, até o momento, um entendimento pacífico e consolidado sobre o tema[3] – tem cuidado de limitar os efeitos da previsão contida no § 7º do art. 6º, dando-lhe interpretação de acordo com os fins da recuperação judicial previstos no art. 47, de forma a vedar a prática de atos judiciais que comprometam o patrimônio da empresa em recuperação[4].

Dessa maneira, não obstante a previsão contida no art. 6º, § 7º, da Lei n. 11.101/2005 configure prejuízo ao processo de recuperação judicial, a jurisprudência tem limitado a sua aplicação, com a finalidade de possibilitar o reerguimento da empresa em dificuldades.

2.3.    A apresentação de certidão negativa de débitos fiscais

Conforme acima mencionado, o art. 57 da Lei n. 11.101/2005 estabelece que, após a juntada do plano de recuperação judicial aprovado pela assembleia de credores, a devedora deverá apresentar certidões negativas de débitos, em conformidade com o que preveem os arts. 151, 205 e 206 do Código Tributário Nacional.

Em complemento ao referido dispositivo legal, o art. 68 prevê que as Fazendas Públicas e o INSS poderão deferir o parcelamento de seus créditos “nos termos da legislação específica” e de acordo com os parâmetros estabelecidos no CTN.

A respeito das previsões contidas nos referidos dispositivos legais, há dois pontos que causam grande discussão entre os estudiosos do tema falimentar: o primeiro é a incompatibilidade da exigência do art. 57 com o fundamento da recuperação judicial insculpido no art. 47 e o segundo se refere à inexistência, até o momento, de legislação específica sobre o parcelamento de créditos tributários. Esses dois pontos serão tratados nas linhas a seguir.

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2.3.1.  A aparente contrariedade ao art. 47 da lei n. 11.101/2005

Em uma análise perfunctória do art. 57, pode-se chegar à conclusão de que a exigência de apresentação de certidões negativas de débitos fiscais seria uma imposição contrária ao objetivo de preservação da empresa, uma vez que, geralmente, quando passando por dificuldades econômico-financeiras, as primeiras obrigações que as empresas deixam de honrar são as tributárias.

Nessa linha de raciocínio, considerando-se a exigência de comprovação da regularidade dos créditos tributários para o deferimento do processo de recuperação judicial, seria forçoso reconhecer que o Estado estaria tolhendo o direito de a empresa devedora se reerguer. Em outras palavras: estaria dando com uma mão e tirando com outra.

Isso porque, consoante já mencionado acima, a primeira obrigação que o devedor deixa de honrar é com o fisco, uma vez que a pressão tributária provocada pelos altos impostos incidentes sobre as operações empresariais é bastante considerável.

Diante disso, estudiosos do tema entendem que não seria razoável a exigência de quitação das obrigações tributárias para que a empresa possa ter deferida a sua recuperação judicial, fazendo-se necessária a adequação das determinações contidas na legislação com a realidade em que as empresas em dificuldades financeiras estão inseridas.

Nas palavras do já citado especialista em direito falimentar, Julio Kahan Mandel (2005, p. 134-5), “A empresa fica obrigada a buscar o parcelamento, mesmo se não tiver caixa para tanto. Há também a inexplicável previsão do artigo 57, que obriga a empresa em recuperação a apresentar certidões negativas fiscais [destacou-se].” E ele ainda continua, acrescentando que:

O fisco deveria dar a sua contribuição para a recuperação da empresa, abrindo mão de seus privilégios, pois em tese a Fazenda/Governo são os maiores interessados na manutenção de uma unidade produtiva e deveriam oferecer uma maior dose de sacrifício para apoiar sua recuperação, e não o contrário.

Nessa mesma senda são os comentários do jurista André Luiz Santa Cruz Ramos (2013, on line) a respeito da exigência contida no art. 57 da Lei n. 11.101/2005:

Uma das regras mais polêmicas da Lei nº 11.101/2005 sempre foi a prevista no seu art. 57, que assim dispõe: “após a juntada aos autos do plano aprovado pela assembleia-geral de credores ou decorrido o prazo previsto no art. 55 desta Lei sem objeção de credores, o devedor apresentará certidões negativas de débitos tributários nos termos dos arts. 151, 205, 206 da Lei n.º 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional”.

Viram? Pela letra da lei, a aprovação do plano de recuperação judicial pelos credores não seria suficiente para garantir ao devedor a concessão da recuperação, porque o juiz deveria exigir, antes da decisão concessiva, a apresentação de certidões negativas de débitos tributários, nos termos previstos pela legislação tributária.

Essa exigência da lei falimentar sempre mereceu críticas da doutrina especializada, sobretudo porque o passivo tributário do devedor que pede recuperação judicial é muitas vezes uma das razões de sua crise. Desde a primeira edição do meu livro, de 2007, eu também critico essa regra.

O estudo de Ricardo Negrão, citado por Paulo Penalva Santos (2012, p. 152), igualmente, é no sentido de entender incabível a exigência contida no art. 57 da Lei 11.101/2005, por ser incompatível com os princípios que fundamentam o instituto da recuperação judicial, in verbis:

Merece também destaque o estudo do Professor Ricardo Negrão, analisando a doutrina, nacional e estrangeira, e a jurisprudência, no sentido de concluir pelo descabimento da exigência prevista no art. 57 da Lei 11.101/2005. Segundo o Desembargador Ricardo Negrão, o privilégio da Fazenda Pública de prosseguir na execução é inconciliável com a finalidade da recuperação judicial prevista no art. 47 da lei falimentar.

Partindo-se desses ângulos, a ideia de que a exigência para que se apresente certidão negativa de débitos fiscais realmente aparenta contrariedade ao propósito da recuperação da empresa em crise.

Por outro lado, há um ponto que precisa ser sopesado nessa análise: não seria, tal exigência, uma forma de garantir que a recuperanda inclua em seu “plano”[5] o pagamento dos créditos tributários?

2.3.2.  O crédito tributário e o plano de recuperação judicial 

Infere-se das disposições contidas na Lei n. 11.101/2005, que o crédito tributário não participa do concurso de credores na recuperação judicial – aliás, tal previsão está disposta no art. 187 do Código Tributário Nacional[6] –, isso significando dizer que a sua quitação não poderá ser objeto do plano apresentado pela devedora.

Não poderia ser diferente, uma vez que, em função do princípio da indisponibilidade do interesse público, a lei tributária não admite qualquer tipo de negociação do crédito fiscal.

É exatamente por essa razão que se mostra inconciliável com esse princípio de direito público, a previsão, no plano de recuperação judicial, de parcelamento ou abatimento do valor devido à Fazenda Pública, mormente porque, nos termos do art. 172 do CTN, somente a lei pode estabelecer qualquer remissão do crédito tributário (COELHO, 2013, p. 232).

Nesse contexto, torna-se forçoso reconhecer que a exigência da apresentação da certidão negativa de débitos fiscais no momento previsto no art. 57 da Lei n. 11.101/2005 seria, portanto, uma forma de se assegurar que a sociedade em crise já buscou (ou está buscando?) os meios adequados para o parcelamento do seu crédito tributário. Tal situação se resume no seguinte quadro:

Parcelamento do crédito tributário nos termos da lei (?)

Plano de recuperação judicial

Para o Fisco

Para os demais credores cujos créditos se submentem à R.J.

Mas é nesse ponto – o parcelamento do crédito tributário – que reside outra celeuma no meio jurídico.

2.3.3.  O parcelamento do crédito tributário na recuperação judicial

Conforme consta dos arts. 57 da Lei n. 11.101/2005 e 191-A do CTN, para a concessão da recuperação judicial, deverão ser apresentadas certidões negativas de débitos tributários nos termos dos arts. 151, 205 e 206 do CTN.

Segundo esses dispositivos do Código Tributário Nacional, o parcelamento do crédito tributário suspende a exigibilidade deste e, assim, as certidões em que conste a existência de crédito fiscal parcelado terão força de negativa.

Sobre o parcelamento do crédito tributário, seguindo o princípio da indisponibilidade do interesse público citado no tópico anterior, o art. 68 estabelece que as Fazendas Públicas e o INSS poderão deferir o parcelamento de seus créditos, “nos termos da legislação específica” e de acordo com os parâmetros estabelecidos no Código Tributário Nacional.

Cumpre assinalar que, conquanto o art. 68 preveja apenas a possibilidade de parcelamento pela Fazenda Pública e INSS, o art. 155-A, § 3º, do CTN não deixa dúvidas quanto ao direito ao parcelamento do débito tributário conferido à empresa em recuperação judicial, conforme se depreende da sua redação a seguir transcrita:

Art. 155-A. O parcelamento será concedido na forma e condição estabelecidas em lei específica. (Incluído pela Lcp nº 104, de 10.1.2001)

§ 3o Lei específica disporá sobre as condições de parcelamento dos créditos tributários do devedor em recuperação judicial. (Incluído pela Lcp nº 118, de 2005) [destacou-se].

De acordo com a doutrina de Eduardo Sabbag (2007), a intenção do legislador ao inserir, no CTN, o § 3º do art. 155-A por meio da Lei Complementar n. 118/2005 era a de facilitar a recuperação de empresas em dificuldades, o que estaria, pois, em perfeita sintonia com o art. 47 da Lei n. 11.101/2005.

No entanto, não obstante a Lei n. 11.101/2005 já tenha sido promulgada há quase dez anos, até o momento, não foi editada legislação específica a respeito do parcelamento do crédito tributário na recuperação judicial.

Para essa situação, porém, existe a previsão disposta no § 4º do art. 155-A do CTN, segundo o qual, diante da inexistência de lei específica, devem se aplicar as leis gerais de parcelamento. Ou seja: as empresas em dificuldades devem se sujeitar às mesmas regras de parcelamento que os demais devedores. Mas será que as regras gerais de parcelamento estariam de acordo com os fins da recuperação judicial?

2.3.3.1.    O parcelamento do crédito tributário na lei geral

O parcelamento do crédito tributário está previsto na Lei n. 10.522/2002, isso significando dizer que, nos termos do § 4º do art. 155-A do CTN, o parcelamento na recuperação judicial deverá obedecer aos ditames dessa lei[7].

Nesse contexto, passa-se à análise das condições para o parcelamento previstas na Lei n. 10.522/2002.

Nos termos da referida lei, os débitos de natureza fiscal poderão ser parcelados em até 60 parcelas mensais – a critério da autoridade fazendária – e tal parcelamento terá sua formalização condicionada ao pagamento da primeira prestação, ressaltando-se que, enquanto não for deferido o seu pedido, o devedor fica obrigado ao recolhimento, a cada mês, do valor correspondente a uma parcela, sob pena de indeferimento do pleito.

No caso de débitos já inscritos em Dívida Ativa, a concessão do parcelamento fica condicionada à apresentação, pelo devedor, de garantia real ou fidejussória suficiente para o pagamento do débito, tal como prevê o § 1º do art. 11.

Além disso, o valor de cada prestação mensal, por ocasião do pagamento, será acrescido de juros equivalentes à taxa SELIC para títulos federais, acumulada mensalmente, calculados a partir do mês seguinte ao da consolidação[8] até o mês anterior ao pagamento, bem como de 1% relativamente ao mês em que o pagamento estiver sendo efetuado.

Em resumo, as regras gerais para o parcelamento – às quais, nos termos do art. 155-A, § 4º, do CTN c/c arts. 57 e 68 da Lei n. 11.101/2005, as recuperandas deveriam se submeter –, são: prazo máximo de 60 meses; apresentação de garantia, quando o débito já estiver inscrito em Dívida Ativa; e juros equivalentes à taxa SELIC, mais 1% ao mês.

No entanto, como se vê, as condições para parcelamento do crédito tributário não se mostram adequadas aos fins da recuperação judicial, notadamente porque não levam em consideração a situação de dificuldade financeira do devedor, tampouco se preocupam em colaborar para o seu soerguimento.

Mais a frente, será abordado de que maneira a jurisprudência pátria tem lidado com essa situação. Antes disso, cabe observar a existência de projeto de lei em tramitação no Senado com a finalidade de disciplinar o parcelamento do crédito tributário na recuperação judicial.

2.3.3.2.    O projeto de lei do senado n. 245 de 2004

Com o objetivo de regulamentar o parcelamento do crédito tributário na recuperação judicial, nos termos do art. 155-A, § 3º, do CTN e do art. 68 da Lei n. 11.101/2005, tramita no Senado (desde 2004) o Projeto de Lei n. 245, de autoria do ex-senador Fernando Bezerra.

Dentre as alterações no quadro atual trazidas por esse projeto de lei, cabem comentários especiais a respeito dos artigos a seguir.

O art. 2º estabelece que, para requerer o parcelamento do crédito tributário nos termos dessa lei, será necessária a comprovação do deferimento do processamento da recuperação judicial (nos termos do art. 52 da Lei n. 11.101/2005).

Nesse ponto, cabe uma reflexão no seguinte sentido: seria o prazo entre o art. 52 e o art. 57[9] da Lei n. 11.101/2005 suficiente para que a empresa tenha o seu parcelamento deferido? Talvez fosse o caso de permitir o pedido de parcelamento apenas com a comprovação do protocolo da petição inicial, já que, nos termos do parágrafo único do art. 2º, caso não concedida a recuperação judicial, o parcelamento será rescindido.

Para melhorar a situação descrita no parágrafo anterior, o art. 14 do referido projeto de lei traz alterações, também, para o texto do art. 57 da Lei n. 11.101/2005, no sentido de dar o prazo de 30 dias para a comprovação do parcelamento do crédito tributário. Por outro lado, acrescenta o inciso V ao art. 73, estabelecendo que, no caso de descumprimento do art. 57, a recuperação judicial será convolada em falência, tal como se infere da redação abaixo transcrita:

Art. 14. Os artigos 57 e 73 da Lei n. 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, passam a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 57. Após a juntada aos autos do plano aprovado pela assembleia-geral de credores ou decorrido o prazo previsto no art. 55 sem objeção de credores, o devedor apresentará, em 30 (trinta) dias, comprovação do pagamento ou suspensão da exigibilidade dos débitos tributários, nos termos dos arts. 151, 155-A, 205 e 206 da Lei n. 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional.”

“Art. 73. ..................................................................................................

V – se não forem apresentadas, tempestivamente, as certidões de que trata o art. 57.”

Outro tema que merece destaque é a previsão contida no art. 9º, que mantém a obrigação da devedora quanto às custas, emolumentos e encargos legais com relação ao parcelamento de débito inscrito em Dívida Ativa, mas não faz qualquer menção à necessidade de se prestar ou não garantia quanto a tais débitos. Ao mesmo tempo em que é silente nesse particular, no art. 12 prevê que se aplicarão subsidiariamente as disposições ordinárias sobre parcelamento. Nesse contexto, questiona-se: será ou não exigida a garantia para débitos inscritos em Divida Ativa? Em caso positivo, tal exigência estaria em dissonância com o fundamento descrito no art. 47 da Lei n. 11.101/2005. O PLS n. 245/2004 não é claro quanto a essa situação.

Continuando a análise do PLS n. 245/2004, um ponto que merece destaque positivo é a previsão contida nos §§ 1º e 4º do art. 3º, que não deixa dúvidas ao estabelecer que todos os débitos existentes em nome do devedor, na condição de contribuinte ou responsável, constituídos ou não, serão abrangido pelo parcelamento, não se aplicando, no caso, as vedações previstas no art. 14 da Lei n. 10.522/2002[10].

Com relação ao prazo de parcelamento, o art. 6º prevê que poderá ser feito em até 84 meses para as microempresas e empresas de pequeno porte e em até 72 meses para as demais devedoras. Observa-se, nesse particular, uma extensão do prazo previsto na Lei n. 10.522/2002 em 60 meses. Ponto positivo.

Por outra vertente, o parágrafo único do art. 7º mantém os juros de mora equivalentes à taxa SELIC e os juros de 1% ao mês. Essa disposição não se mostra compatível com a finalidade da recuperação judicial, uma vez que mantém a taxa de juros já prevista na Lei n. 10.522/2002, sem, portanto, melhorar as condições de pagamento do débito tributário nesse sentido.

É de se notar que a previsão de juros, sem, em contrapartida, haver previsão de desconto de qualquer natureza na lei, está na contramão do comportamento adotado pelos demais credores da empresa em dificuldades financeiras. Isso porque, diante das dificuldades da empresa em recuperação judicial, os outros credores (a maioria deles) concede descontos para facilitar a quitação do seu crédito e colaborar para o reerguimento da recuperanda, atitude essa que se coaduna perfeitamente com o fundamento da Lei n. 11.101/2005.

Nesse ponto, cabe retomar a reflexão do advogado Julio Kahan Mandel (2005) já citada acima, no sentido de criticar o comportamento da Fazenda/Governo, uma vez que estes deveriam dar a sua contribuição para a recuperação da empresa em crise, abrindo mão de certos privilégios, já que também têm interesse na manutenção de uma unidade produtiva.

Diante desse contexto, observa-se que as alterações mais significantes e que realmente estão de acordo com os fins da recuperação judicial correspondem à abrangência do parcelamento com relação a todos os débitos fiscais da devedora e à ampliação do prazo para o pagamento.

Feitas essas considerações e levando-se em conta que, até o momento, o referido projeto de lei não foi aprovado, é de bom tom comentar de que maneira a jurisprudência vem enfrentando a inexistência de lei vigente sobre o parcelamento do crédito tributário na recuperação judicial.

2.3.4.  A jurisprudência a respeito da exigência contida no art. 57 da lei n. 11.101/2005

Conforme acima já estudado, o art. 57 da Lei n. 11.101/2005, em conjunto com o art. 191-A do CTN, exige que, para a concessão da recuperação judicial, seja apresentada prova da quitação dos débitos tributários ou do seu parcelamento, tal como preveem os arts. 151, 205 e 206 do CTN. Ainda, sobre o parcelamento do crédito tributário na recuperação judicial, os arts. 68 da Lei n. 11.101/2005 e 155-A, § 3º, do CTN estabelecem que lei específica disciplinará essa matéria. Todavia, consoante já exposto, até o momento, não foi editada lei federal específica para disciplinar a matéria.

Nessa situação, mesmo diante da previsão contida no art. 155-A, § 4º, do CTN – segundo o qual, não havendo lei específica disciplinando o parcelamento na recuperação judicial, deverá ser observada a lei geral sobre o tema –, a jurisprudência, a unanimidade, tem dispensado a exigência prevista no art. 57 da Lei n. 11.101/2005.

Esse entendimento dos tribunais pátrios – no sentido de não exigir das recuperandas a comprovação de quitação dos débitos fiscais ou do seu parcelamento para a concessão da recuperação judicial –, vem sendo avalizado pela doutrina especializada, consoante se depreende dos comentários de Fábio Ulhôa Coelho, Julio Kahan Mandel e Hugo de Brito Machado, citados por Paulo Penalva Santos (2012) abaixo:

Fábio Ulhôa Coelho destaca, com razão, a necessidade de interpretar o art. 57 da Lei 11.101/2005 de acordo com o novo tratamento dado ao crédito tributário na recuperação judicial, que prevê (art. 68) a necessidade de lei específica regulamentando o parcelamento de dívidas fiscais e previdenciárias das sociedades em recuperação judicial. Segundo o Professor Fábio Ulhôa Coelho, a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem dispensado a apresentação das denominadas certidões fiscais até que seja editada lei específica sobre esse parcelamento especial. No mesmo sentido posiciona-se o estudo do Dr. Julio Kahan Mandel, concluindo pela inexigibilidade imediata da regra do art. 57.

Da mesma forma, o Professor Hugo de Brito Machado, em acurado estudo sobre a dívida tributária na recuperação judicial, alerta para a necessidade de superar o literalismo para não atribuir, ao art. 57 da Lei 11.101/2005 e ao art. 191-A do Código Tributário Nacional, interpretação incompatível com a Constituição da República.

Nesse contexto, cabe uma reflexão: a dispensa da exigência contida no art. 57 da Lei n. 11.101/2005 seria favorável à devedora?

Não necessariamente, uma vez que, ao deixar de fazer o parcelamento de seu débito fiscal, a recuperanda não terá a suspensão de sua exigibilidade, nos termos do art. 151 do CTN, isso significando dizer que poderá sofrer consequências gravosas decorrentes da execução dessas dívidas pelo Fisco.

A esse respeito, no item 3.2 acima, já foi mencionado que, apesar da previsão contida no art. 6º, § 7º, da Lei n. 11.101/2005, o Superior Tribunal de Justiça tem decidido no sentido de que, embora a execução fiscal não se suspenda em razão do deferimento da recuperação judicial, é vedada a prática de atos que comprometam o patrimônio do devedor. Dessa forma, entendeu-se que a prática de atos de constrição na execução fiscal mostrar-se-ia como limitação ao direito de parcelamento conferido à empresa em crise. Isto é: o parcelamento seria um direito e não uma faculdade.

O entendimento do Superior Tribunal de Justiça nesse sentido tem se mostrado pacífico. No entanto, os tribunais estaduais ainda têm permitido a constrição de bens de empresas em recuperação judicial[11], embora já possa ser encontrado julgado no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro com posicionamento semelhante àquele perfilhado pelo STJ[12].

Para evitar discussões dessa natureza, alguns advogados especialistas na área têm procurado realizar o parcelamento do débito tributário nos termos da legislação vigente, tal como prevê a Lei n. 10.522/2002, situação essa que, por um lado, é positiva, visto que evita que a empresa sofra os efeitos de uma eventual ação de execução fiscal, mas, por outro, não permite que a recuperanda seja beneficiada com melhores condições de parcelamento.

2.4.    A responsabilidade pelas obrigações tributárias no caso de alienação de bens da recuperanda

Outro momento em que há uma abordagem positiva das obrigações tributárias da devedora está previsto no art. 60, parágrafo único, da Lei n. 11,101/2005, o qual dispõe que caso haja a alienação judicial de filiais ou de unidades produtivas isoladas da devedora, o objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações da devedora, inclusive nas de natureza tributária, salvo nas hipóteses do art. 141, § 1º, da Lei n. 11.101/2005[13].

Em um primeiro momento, tal disposição pode parecer desfavorável à devedora, em razão de manter sob sua responsabilidade as obrigações tributárias, enquanto transfere a propriedade do bem, contudo, é de se notar que essa previsão está em perfeita sintonia com o propósito da recuperação judicial, notadamente porque incentiva os interessados a adquirir os bens da devedora, ao excluir a responsabilidade do adquirente sobre as obrigações tributárias (e de qualquer natureza) do devedor com relação ao bem arrematado. Dessa forma, possibilita à devedora a realização de ativos, injetando dinheiro em suas contas de maneira a viabilizar o desenvolvimento de suas atividades e cumprimento do plano de recuperação judicial.

Ao tratar dessa temática, Fábio Ulhoa Coelho (2012, p. 239) traça interessante comentário nos seguintes termos:

Aparentemente, trata-se de medida contrária aos interesses dos credores, mas, de verdade, não é. Se a lei não ressalvasse de modo expresso a sucessão do adquirente, o mais provável é que simplesmente ninguém se interessasse por adquirir a filial ou unidade posta à venda. E, nesse caso, a recuperação não seria alcançada e perderiam todos os credores...

Nesse mesmo sentido são os comentários de Adalberto Simão Filho (2005, p. 537), ao tratar sobre disposição semelhante no caso de falência:

Muito embora num primeiro momento pareça ilógica a posição do legislador, a julgar pelo fato de que a sucessão trabalhista e tributária é uma constante no direito brasileiro, a realidade é que se despir a unidade produtiva ou os bens objetos de alienação dos pesados encargos que o mesmo poderia estar a garantir e, ainda, se se der ao alienante a certeza e segurança jurídica de que ele não sucederá nas dívidas ou encargos de qualquer natureza, os negócios que envolvem a massa falida passam a ser atrativos e com isso se possibilitaria a melhor colocação dos bens, o aumento da demanda e, principalmente, a revitalização de unidades produtivas com o implemento de dinheiro novo na economia e de postos de trabalho, com o retorno tributário desejado.

Cumpre ressaltar que, seguindo essa mesma linha intelectiva, o Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.934-2(DF), em acórdão relatado pelo Ministro Ricardo Lewandowski, já teve a oportunidade de decidir pela constitucionalidade do art. 60 da Lei n. 11.101/2005 no que diz respeito à inexistência de sucessão das obrigações do devedor na hipótese de alienação do estabelecimento empresarial (COELHO, 2012).

Cabe anotar que, conquanto os argumentos vertidos no referido decisum se refiram, especialmente, aos débitos de natureza trabalhista, o mesmo raciocínio se aplica quanto aos débitos tributários, uma vez que, ao optar pela inexistência de sucessão das obrigações do devedor, o legislador buscou dar efetividade aos princípios constitucionais da função social da propriedade e a livre-iniciativa.

Nesse contexto, fica evidenciado que a disposição trazida pelo art. 60, parágrafo único, da Lei n. 11.101/2005, realmente, está em sintonia com o propósito da recuperação judicial.

Não obstante, há dois pontos que merecem atenção quanto a esse tema, os quais serão tratados a seguir.

2.4.1.   A previsão contida no art. 60, parágrafo único, e o plano de recuperação judicial

Observa-se que a exclusão da sucessão das obrigações da empresa devedora está prevista não apenas no art. 60, parágrafo único, da Lei n. 11.101/2005, como também no art. 133, §1º, do Código Tributário Nacional, que assim dispõe:

Art. 133. A pessoa natural ou jurídica de direito privado que adquirir de outra, por qualquer título, fundo de comércio ou estabelecimento comercial, industrial ou profissional, e continuar a respectiva exploração, sob a mesma ou outra razão social ou sob firma ou nome individual, responde pelos tributos, relativos ao fundo ou estabelecimento adquirido, devidos até à data do ato:

(…)

§ 1o O disposto no caput deste artigo não se aplica na hipótese de alienação judicial: 

I – em processo de falência

;

II – de filial ou unidade produtiva isolada, em processo de recuperação judicial.

(…)

Da análise do dispositivo legal acima transcrito em conjunto com o art. 60, parágrafo único, da Lei n. 11.101/2005, constata-se que a principal diferença entre tais preceptivos legais reside no fato de que o art. 133 do CTN exclui a sucessão tributária em processo de recuperação judicial, enquanto o referido art. 60 limita tal exclusão às alienações previstas no plano de recuperação.

Embora aparentemente essa diferença seja sutil, cumpre ressaltar que, segundo Paulo Penalva Santos (2012), várias vezes, surge a dúvida: deve ser excluída a sucessão tributária no caso de alienação de bem não prevista no plano de recuperação judicial?

De acordo com o citado jurista, a solução seria simples, pois, por se tratar de norma geral de Direito Tributário, nos termos do art. 146, III, da Constituição, as disposições contidas no Código Tributário Nacional devem prevalecer, a fim de que o inciso II do § 1º do art. 133 do Código Tributário Nacional seja aplicado a todas as alienações de filial ou unidade produtiva isolada, nos termos previstos no art. 142 da Lei n. 11.101/2005, mesmo que não tenham constado no plano de recuperação.

Por outra vertente, é preciso lembrar que, nos termos do art. 50, XI, da Lei n. 11.101/2005, a previsão de venda parcial dos bens deve estar contida no plano de recuperação judicial a ser submetido à aprovação na assembleia de credores.

Isso significa dizer que, de acordo com o texto da Lei n. 11.101/2005, não deveria haver a hipótese de alienação de filial ou unidade produtiva isolada sem a respectiva previsão no plano de recuperação judicial, o que tornaria desnecessária essa discussão.

Em suma: em se cumprindo as disposições da Lei n. 11.101/2005, não deveria haver a alienação de bem da recuperanda sem a respectiva previsão no plano de recuperação judicial, contudo, caso excepcionalmente ocorra tal hipótese, as obrigações tributárias devem permanecer com a devedora, nos termos do art. 133, § 1º, II, do CTN..

2.4.2.   A previsão contida no art. 60, parágrafo único, e a transformação, fusão, incorporação e cisão da empresa

Antes de abordar o tratamento conferido ao crédito tributário nos processos de transformação, fusão, incorporação e cisão, cabe lembrar os conceitos de tais institutos trazidos pela Lei de Sociedade por Ações, que em seus arts. 220, 228, 227 e 229, prevê:

Art. 220. A transformação é a operação pela qual a sociedade passa, independentemente de dissolução e liquidação, de um tipo para outro.

Art. 227. A incorporação é a operação pela qual uma ou mais sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em todos os direitos e obrigações.

 Art. 228. A fusão é a operação pela qual se unem duas ou mais sociedades para formar sociedade nova, que lhes sucederá em todos os direitos e obrigações.

Art. 229. A cisão é a operação pela qual a companhia transfere parcelas do seu patrimônio para uma ou mais sociedades, constituídas para esse fim ou já existentes, extinguindo-se a companhia cindida, se houver versão de todo o seu patrimônio, ou dividindo-se o seu capital, se parcial a versão.

O Código Tributário Nacional, em seu art. 132, tem previsão expressa a respeito do tratamento do crédito tributário nos casos de fusão, transformação e incorporação, no sentido de que a pessoa jurídica que resultar de tais processos será responsável pelos tributos devidos pelas sociedades precedentes.

Dessa forma, diante da previsão contida no referido art. 132, torna-se forçoso reconhecer que, mesmo no curso de uma recuperação judicial, ocorrerá a sucessão tributária nos casos de transformação, fusão ou incorporação.

Isso significa dizer, portanto, que, conquanto o art. 50, II, da Lei n. 11.101/2005 preveja como meio de recuperação judicial a incorporação, fusão ou transformação, estas não se mostram como alternativas proveitosas ou atraentes, uma vez que, assim o fazendo, os interessados deixariam de se beneficiar com a exclusão da sucessão tributária prevista nos arts. 133 do CTN e 60 da Lei n. 11.101/2005.

Com relação à cisão, esse quadro é diferente.

De acordo com os arts. 229, § 1º e 233[14] da Lei de Sociedade por Ações, a sociedade que absorve parte do patrimônio sucede a cindida nos seus direitos e obrigações nos limites da parcela transferida.

Por outro lado, o Código Tributário Nacional não trouxe qualquer disposição expressa a respeito da sucessão tributária nos casos de cisão, notadamente porque, até o momento de sua elaboração, em 1966, a cisão não havia sido regulada pela legislação vigente à época. O instituto da cisão veio a ser regulado pela primeira vez no texto da Lei n. 6.404 de 1976, nos termos dos artigos retromencionados.

Dessa forma, diante da omissão do CTN a respeito da cisão, existe na doutrina certa discussão a respeito da aplicabilidade ou não do art 132 em casos que tais. De um lado, alguns entendem que o regime tributário conferido às fusões, incorporações e transformações se estende à cisão. De outro, entende-se que a cisão não foi disciplinada pelo Código Tributário Nacional, de maneira que falta uma disciplina geral sobre o tema, não se podendo eleger responsável tributário sem lei expressa (art. 121, parágrafo único, II, do CTN) (SANTOS, 2012).

Ainda diante da polêmica com relação à incidência do art. 132 do CTN nos casos de cisão, essa temática merece tratamento diferenciado no âmbito da recuperação judicial.

Isso porque, analisando a questão pela ótica dos fundamentos da Lei n. 11.101/2005, conclui-se que a segurança jurídica almejada pelo legislador nos negócios celebrados no âmbito da recuperação judicial deve se estender à Lei Complementar n. 118/2005 (que alterou o CTN para adequá-lo à Lei n. 11.101/2005).

Em outras palavras: há que se admitir que, ao menos nos casos de cisão parcial, devem ser aplicadas as disposições contidas no art. 133 do Código Tributário Nacional, a fim de que não ocorra a sucessão tributária no caso de reorganização da sociedade por cisão parcial (ou alienação judicial de filial ou unidade produtiva isolada).

Dessa maneira, em face da omissão do CTN acerca da responsabilidade tributária nos casos de cisão, prevalece, portanto, o princípio da legalidade, que impede a exclusão da aplicação do art. 133, § 1º, do CTN no caso de cisão parcial, sem que haja lei expressa nesse sentido.

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Sobre o autor
Anna Luiza Prado Feuser

Graduada em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso. Pós-graduada em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas - Rio de Janeiro e, atualmente, cursando MBA em Gestão Financeira, Controladoria e Auditoria pela FGV Management.<br>Atuação nas áreas de Direito Empresarial, especialmente em recuperação judicial e falência, Direito Tributário e Contratos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FEUSER, Anna Luiza Prado. O crédito tributário na recuperação judicial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4370, 19 jun. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/33297. Acesso em: 21 nov. 2024.

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