5. As manifestações do neoconstitucionalismo no ordenamento jurídico brasileiro.
5.1. A constitucionalização do Direito.
A constitucionalização do Direito, que é um dos marcos consequenciais do neoconstitucionalismo, deve ser examinada sob a ótica do texto constitucional em si mesmo considerado (plano objetivo) e também sob o prisma do intérprete (plano subjetivo).
No plano objetivo, o processo quer significar a constitucionalização de temas até então relegados à legislação infraconstitucional e a incorporação expressa de valores e princípios ao texto constitucional, todos dotados de normatividade efetiva.
Esse processo de adensamento axiológico da Constituição, que se espraia pelos mais variados rincões do sistema jurídico, indo do direito civil, passando pelo direito administrativo e processual e chegando ao direito penal, alargou sobremaneira o campo da jurisdição constitucional.
No caso brasileiro, essa experiência foi potencializada em último grau, já que o constituinte de 1988 elaborou um texto longo, extremamente analítico, tornando constitucionais temas acessórios e secundários, que poderiam, muito bem, compor o arsenal das leis infraconstitucionais.
Esse processo – de transferência temática das leis às Constituições – ficou conhecido como a “descodificação do direito civil”[25].
No plano subjetivo, a constitucionalização do Direito significa uma mudança de padrão hermenêutico, uma nova postura do intérprete frente ao sistema jurídico. As velhas categorias hermenêuticas, as regras clássicas de interpretação, já não são suficientes para solucionar os conflitos havidos da própria Constituição (fruto do seu incrível adensamento axiológico).
Essa mudança de postura que as Constituições contemporâneas passaram a exigir do intérprete recebeu o nome de filtragem constitucional, pelo qual toda a ordem jurídica precisa ser lida e apreendida sob as lentes da Constituição[26].
Portanto, a constitucionalização do Direito significa não apenas a transferência de temas infraconstitucionais para a Constituição, mas também a nova postura que se exige do intérprete em face desse adensamento axiológico, vale dizer, a releitura de institutos infraconstitucionais (até então) sob uma nova, e necessária, ótica constitucional.
Essa nova postura do intérprete em face da Constituição envolve diferentes técnicas, assim resumidas por BARROSO[27]:
(a) a não recepção (Barroso fala em revogação[28]) das normas constitucionais anteriores à Constituição (ou à emenda constitucional), quando com ela incompatíveis;
(b) a declaração de inconstitucionalidade de normas infraconstitucionais posteriores à Constituição, quando com ela incompatíveis;
(c) a declaração de inconstitucionalidade por omissão, com a consequente convocação à atuação do legislador;
(d) a interpretação conforme a Constituição, com ou sem redução de texto, que pode significar: (i) a leitura da norma constitucional da forma que melhor realize o sentido e o alcance dos valores constitucionais a ela subjacentes; (ii) a declaração de inconstitucionalidade parcial, que consiste na exclusão de uma determinada interpretação possível e a afirmação de uma interpretação alternativa, compatível com a Constituição.
5.2. A judicialização de políticas públicas.
Em um primeiro contato com a matéria, impõe-se uma distinção necessária entre judicialização de políticas públicas e ativismo judicial: são expressões que veiculam significação aproximada, mas não coincidente. Como diz BARROSO, são conceitos “primos”, pois vêm da mesma família, frequentam os mesmos lugares, mas não têm as mesmas origens[29].
A judicialização – pelo menos no contexto brasileiro – é um fato que deriva do próprio modelo constitucional desenhado pela Carta republicana de 1988, e não um exercício deliberado de vontade política. Já o ativismo judicial é uma atitude, uma opção, uma escolha de um modo específico e proativo de interpretar as normas constitucionais, com a expansão de seu sentido e alcance[30].
A judicialização encontra, na experiência brasileira, três causas igualmente relevantes: (a) a redemocratização, que fortaleceu a cidadania, atribuindo a diversos segmentos sociais antes marginalizados um maior nível de informação e, portanto, consciência sobre seus direitos, que passaram a ser perseguidos, em maior escala, no Poder Judiciário; (b) o processo de constitucionalização do Direito, que incorporou ao texto constitucional inúmeras matérias que até então pertenciam ao campo da legislação ordinária (Legislativo) e das políticas públicas (Executivo); e por fim, (c) o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, que combina aspectos dos sistemas europeu (por ação direta) e americano (incidental), aliado à ampliação do direito de propositura, que antes era restrito ao Procurador-Geral da República.
A proteção e promoção dos direitos fundamentais exigem ações e omissões estatais. Relativamente aos direitos de primeira geração (as liberdades públicas), basta uma omissão estatal para assegurar a proteção ao bem da vida tutelado. Assim, por exemplo, a liberdade de expressão estará protegida desde que o Estado não lhe imponha restrições e censura abusivas. Já os direitos de segunda geração (direitos sociais) demandam uma atuação proativa do Estado, que deverá pensar e executar políticas públicas para atender as necessidades sociais básicas nas áreas de saúde, educação, transporte público, etc. Estas ações estatais envolvem decisões acerca do uso de recursos públicos.
As escolhas que o Estado faz em matéria de gastos públicos, todavia, não se restringem ao campo da política majoritária. Embora caiba ao Legislativo aprovar a lei orçamentária e ao Executivo elaborar e executar políticas públicas concretas para as mais variadas necessidades sociais, coube ao Judiciário, por força da constitucionalização abrangente impressa pela Carta republicana de 1988, a missão de fazer cumprir as finalidades e os propósitos constitucionais, sobretudo, quanto ao tema dos direitos fundamentais.
Não há dúvida que a Constituição, ao estabelecer direitos fundamentais com força normativa, fixou deveres ao Estado, cabendo ao Judiciário fazer valer esta vontade constitucional. Para tanto, em determinadas situações, deverá o Estado-Juiz interferir, com caráter imperativo, sobre a definição dos gastos públicos.
Nas palavras da professora Ana Paula de Barcellos:
“Se a Constituição contém normas nas quais estabeleceu fins públicos prioritários e, e se tais disposições são normas jurídicas, dotadas de superioridade hierárquica e de centralidade no sistema, não haveria sentido em concluir que a atividade de definição de políticas públicas – que irá, ou não, realizar esses fins – deve estar totalmente infensa ao controle jurídico. Em suma: não se trata da absorção do político pelo jurídico, mas apenas da limitação do primeiro pelo segundo”[31].
Portanto, não há dúvida de que a definição das políticas públicas, embora reservado em grande parte ao campo da política majoritária, sofre limitação jurídica geral decorrente do próprio Estado republicano e das opções políticas incorporadas expressamente ao texto constitucional por meio de valores, princípios e direitos fundamentais. Assim, o controle judicial das políticas públicas faz partes das regras próprias do Estado de Direito.
O limite que separa o dever constitucional imposto ao Judiciário e o abuso de poder é, todavia, muito tênue. Em outras palavras, delimitar com precisão até onde pode atuar o Judiciário sem violação à regra de separação dos Poderes é tarefa das mais difíceis.
Para superar estas dificuldades, a doutrina e a jurisprudência dos tribunais superiores, sobretudo do Supremo[32], têm um papel relevantíssimo na construção de uma dogmática jurídica aplicável à atuação judicial nessa área tão instável.
É preciso estabelecer parâmetros minimamente objetivos capazes de delimitar o território dentro do qual estará o Judiciário agindo no estrito cumprimento de sua missão institucional.
5.2.1 Os parâmetros de controle.
Há, basicamente, três categoriais de controle que legitimam e autorizam a interferência do Judiciário na realização das políticas públicas:
(a) parâmetro puramente objetivo (controle quantitativo), quando a própria Constituição fixa a quantidade de recursos mínimos a serem aplicados em uma determinada modalidade de política pública.
O art. 212 da CF/88[33], por exemplo, impõe a União aplicar, anualmente, não menos que 18% da receita resultante de impostos na manutenção e desenvolvimento do ensino. Este mesmo artigo impõe a Estados e Municípios participação ainda maior, da ordem de 25%, incluindo as receitas de transferência.
Descumprida a previsão constitucional, ou seja, investido recursos aquém do mínimo indicado, caberá ao Judiciário, se provocado, impor sanções as mais diversas, a começar pela intervenção federal ou estadual, conforme o caso. Trata-se de interferência judicial legítima, para fazer cumprir a vontade constitucional.
(b) parâmetro finalístico (controle de fins), que se ocupa do resultado último da atuação estatal e trabalha com a ideia de prioridade, de preferência, ou seja, gastos públicos secundários não podem ser efetivados antes do atendimento integral das políticas públicas prioritárias.
No caso da educação, por exemplo, o ensino fundamental prefere ao ensino médio (o artigo 208 da CF/88[34] fala em progressiva universalização do ensino médio gratuito). Assim, não poderá o Estado investir no ensino médio antes de atingir a meta no fundamental, do contrário estará invertendo, ou alterando, a finalidade buscada pela Constituição, o que ensejará intervenção judicial legítima, não ofensiva à separação de Poderes.
(c) parâmetro da própria definição da política pública (controle de meios), que cuida de examinar se os meios eleitos pelo gestor público são eficientes para atingir a finalidade constitucional.
Haverá violação de meios se o Estado-Administrador, por exemplo, realizar despesas para a compra de carteiras escolares antes de realizar os gastos para a construção da própria escola.
Ainda que o ordenador de despesas tenha observado o parâmetro quantitativo (atingiu o mínimo de recursos) e o finalístico (cumpriu a meta constitucional em relação ao ensino fundamental), se realizar despesas desnecessárias ou ineficientes poderá responder perante o Judiciário, a quem caberá anular o ato e determinar o cumprimento da vontade constitucional.
Como adverte a professora BARCELLOS, “não se trata (...) de julgar entre eficiências maiores ou menores, nem de substituir a avaliação política da autoridade democraticamente eleita pela do juiz, mas apenas de eliminar as hipóteses de ineficiência comprovada”[35].
No estágio atual do constitucionalismo contemporâneo, é perfeitamente legítimo, e viável, o controle judicial da execução de políticas públicas como maneira de conformá-las à realização da vontade constitucional, vale dizer, como meio de “recolocar nos trilhos” a atividade administrativa que por ventura dela se tenha desgarrado, desde que respeitados certos limites, certos parâmetros, embrionariamente descritos em linhas passadas.
Também é possível afirmar a possibilidade de controle judicial na formulação de políticas públicas, este mitigado, restrito a casos excepcionais em que presente violação inequívoca do mínimo existencial.
Ao controlar a execução de políticas públicas, quase sempre, atua o Judiciário anulando um ato administrativo que tenha desrespeitado uma vontade constitucional. Já no controle da formulação de políticas públicas, o Estado-Juiz atua de maneira criativa, impondo ao Estado-Administrador a realização de uma despesa necessária à afirmação do mínimo existencial, respeitado, sempre, o princípio da reserva do possível[36].
5.3. O ativismo judicial.
A ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes.
Segundo BARROSO[37], a postura ativista manifesta-se por meio de diferentes condutas que incluem:
(a) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente previstas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário. Como exemplo, o professor cita o julgamento sobre fidelidade partidária: o STF, em nome do princípio democrático, decidiu que a vaga no Congresso pertence ao partido político, criando, assim, uma nova hipótese de perda de mandato parlamentar, além das que se encontram expressas no texto constitucional.
(b) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição. Cita-se o exemplo da decisão que julgou a verticalização das eleições: o STF decidiu pela inconstitucionalidade das novas regras sobre coligações eleitorais à eleição que se realizaria em menos de um ano. Para tanto declarou a inconstitucionalidade de uma emenda constitucional ao atribuir à regra da anterioridade da lei eleitoral o status de cláusula pétrea que ela não possui.
(c) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas. Aqui, vale citar o caso da distribuição de medicamentos não constantes das listas e rotinas do SUS por meio de decisão judicial.
Embora o ativismo revele um aspecto positivo relevantíssimo – o de impor a realização da vontade constitucional, a efetivação dos direitos fundamentais e a afirmação do mínimo existencial –, há uma face negativa também inquestionável. Ele escancara a crise de representatividade da política majoritária, revelando uma grave “patologia” democrática. O deslocamento da agenda decisória do Legislativo ao Judiciário tem muito a ver com o descrédito que, ano após ano, vem corroendo as bases de sustentação da política majoritária em nosso país.
Essa crise de representatividade, aliada à ineficiência do Legislativo (que não realiza as reformas necessárias, que trava pautas importantes para a nação por simples barganha política, etc.) acaba por criar uma atmosfera amplamente favorável – e até mesmo necessária ao cumprimento da Constituição – para o avanço da jurisdição constitucional em um ritmo nunca visto na história republicana do país.
O juiz tornou-se o principal garantidor dos direitos e também o responsável pela recuperação da identidade democrática, o último guardião de promessas tanto para o sujeito como para a comunidade política[38].
Essa crise institucional acaba por “justificar“, ainda que em bases embrionárias, o ativismo judicial em nosso país. Mas se esse fenômeno é uma patologia do sistema democrático, faz-se urgente a busca por um “remédio” capaz de curá-lo.
5.4. A teoria da coisa julgada inconstitucional.
Outro importante marco consequencial do neoconstitucionalismo na experiência brasileira revela-se na teoria da coisa julgada inconstitucional.
As características próprias do neoconstitucionalismo – sobretudo a centralidade que a Constituição ocupa no sistema jurídico, aliada a sua força normativa – imprimiram uma nova feição ao Direito Constitucional, promovendo um novo olhar do intérprete sobre velhos institutos, agora sob as lentes da Constituição, de seus valores e princípios fundamentais.
Essa nova hermenêutica jurídica, esse novo olhar sobre o papel e a função das normas constitucionais, explica, até certo ponto, a ascensão da teoria da coisa julgada inconstitucional no seio do constitucionalismo contemporâneo.
A teoria baseia-se no critério da ponderação de valores, entendendo que a coisa julgada, que revela um postulado de segurança jurídica, não prevalece, sempre e sob qualquer circunstância, sobre outros valores de mesma estatura constitucional.
Quando a decisão judicial transitada em julgado revelar-se violadora, por exemplo, da dignidade da pessoa humana ou do mínimo existencial – que assumem posição de destaque e centralidade no ordenamento jurídico, por enfeixarem em si o núcleo básico dos direitos fundamentais, fim e fundamento imediato da Constituição – a segurança jurídica que dela emana deve ceder, num juízo de ponderação, em homenagem a esses valores, constitucionalmente mais relevantes.
Da mesma forma que o ato administrativo e a lei, a decisão judicial, ainda que sob o amparo da coisa julgada, poderá ser declarada nula se ofensiva a algum valor jurídico fundamental, mesmo que ultrapassado o prazo da ação rescisória.
A teoria tem acertos e desacertos. Tomando carona na mesma crítica dirigida ao ativismo e à judicialização de políticas públicas, é preciso amadurecer o debate e fixar parâmetros seguros de atuação judicial. Em outras palavras, é necessário desenvolver a dogmática jurídica que lhe dará fundamento de validade e dotará o interprete de um mínimo de segurança na sua aplicação, sem o que se estará diante de aplicação casuísta, incompatível com a ciência jurídica.