7. O Neoprocessualismo e o novo CPC
O Novo Código de Processo Civil tem inspiração neoprocessual. Ele consagra, de modo expresso, alguns princípios constitucionais de natureza processual, como a inafastabilidade da tutela jurisdicional (art. 3º), a razoável duração do processo (art. 4º e 8º), o contraditório e seus reflexos, como os princípios da cooperação e da participação (art. 5º, 8º, 9º e 10º), e a publicidade (art. 11).
Já no art. 1º do Novo Código revela sua inspiração neoprocessual ao ditar que o processo civil seja ordenado, disciplinado e interpretado com obediência aos valores e princípios fundamentais fixados na Constituição, verbis:
“Art. 1º. O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e os princípios fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código”.
A inspiração também se revela no art. 6º do projeto, que impõe ao magistrado o dever de observar, na aplicação da lei processual, os fins sociais a que ela se dirige e as exigências do bem comum, com respeito pleno aos princípios da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade, da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência.
Outra inspiração vem da opção por cláusulas gerais, de conteúdo aberto, que tornam a atuação jurisdicional muito mais criativa e fazem do juiz um coparticipe da vida política do país, tornando a sentença algo mais justo, mais efetivo, mais próximo da realidade desejada pela Constituição. Assim, é possível encontrar, no texto do Projeto, expressões como “prazo razoável” (art. 4º), “fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum” (art. 6º), “lealdade e boa-fé” (art. 66, II), medidas que considerar “adequadas” (art. 278), “lesão grave” e “risco de lesão grave e de difícil reparação” (artigos 278 e 283).
Também há nítida inspiração neoprocessual quando o Código positiva princípios constitucionais expressos e implícitos, buscando a concretização dos direitos fundamentais no plano processual. No art. 7º, por exemplo, afirma-se a isonomia material das partes no tratamento que devem receber em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz velar pelo efetivo contraditório em casos de hipossuficiência técnica.
Diante das peculiaridades do caso concreto, poderá o magistrado – por meio de decisão fundamentada e observado o contraditório – distribuir de modo diverso o ônus da prova, impondo-o à parte que estiver em melhores condições de produzi-la (art. 262). A adoção da teoria dinâmica de distribuição do ônus da prova (em contraponto a teoria estática consagrada no art. 333 do Código atual) representa tentativa de trazer, ao plano processual, a isonomia material tão pretendida pela Constituição e seu ideal democrático.
O art. 107, inciso V, permite ao juiz adequar as fases e os atos processuais às especificações do conflito, criando um modelo processual mais aberto, que acaba por conferir maior efetividade à tutela jurisdicional pretendida. Percebe-se, às claras, a opção que o Projeto fez por ampliar os poderes do juiz, criando um espírito de cooperação até então jamais imaginado.
Estes são apenas alguns exemplos de como o neoconstitucionalismo, em geral, e o neoprocessualismo, em particular, influenciaram a comissão de juristas responsável pelo Anteprojeto do Novo CPC.
8. Conclusões
Foi na segunda metade do século XX, sobretudo no pós-guerra, como uma reação natural aos regimes totalitários, que as constituições passaram a exercer um poder normativo efetivo, iniciando-se uma nova fase do constitucionalismo, chamado de constitucionalismo contemporâneo ou neoconstitucionalismo. O marco histórico desse processo foi a Lei Fundamental de Bonn, Constituição alemã de 1949, seguida pela instalação do Tribunal Constitucional Federal Alemão, em 1951, que produziu riquíssima jurisprudência e fomentou diversos trabalhos doutrinários que realocaram a Constituição no centro do sistema jurídico, atribuindo a seu texto um conteúdo normativo e axiológico até então jamais imaginado. No Brasil, o marco zero foi a Constituição de 1988, símbolo do processo de redemocratização iniciado com o fim da ditadura militar. Seu texto refletiu os anseios de liberdade, o ideal democrático, consolidou os direitos fundamentais como base do novo regime constitucional e estabeleceu uma série de ações programáticas (mas impositivas) a serem executadas pelo Estado na busca do bem-estar social.
O pós-Positivismo apresenta-se como o marco filosófico do constitucionalismo contemporâneo, iniciado na Europa no pós-guerra. Trata-se de corrente jurídica que superou o legalismo estrito do Positivismo normativista, notabilizando-se (a) pela ascensão dos valores; (b) pelo reconhecimento da normatividade dos princípios; (c) pela essencialidade dos direitos fundamentais edificados sobre o conceito de dignidade da pessoa humana; e (d) pela reaproximação entre o Direito e a Ética.
O marco teórico do neoconstitucionalismo compreende uma série de transformações que (a) alçaram a Constituição ao epicentro do sistema jurídica, dotando-a de efetiva normatividade e superioridade sobre as demais normas jurídicas; (b) incorporaram às Constituições, de modo expresso, valores e opções políticas, expandindo a jurisdição constitucional; e (c) impuseram um novo paradigma de interpretação e aplicação das normas constitucionais.
O constitucionalismo contemporâneo notabilizou-se pela incorporação expressa, ao texto constitucional, de valores, até então adormecidos ou negligenciados pelo Estado, traduzidos em direitos fundamentais e sintetizados no postulado geral de dignidade do homem.
A dignidade do homem é a “síntese“ dos direitos fundamentais, tendo sido alçada ao centro do sistema jurídico na condição de postulado axiológico fundamental, como um processo natural de reação à política genocida do nazismo e do fascismo. Como síntese dos direitos fundamentais, o respeito à dignidade da pessoa humana centraliza, na sua essência, o mínimo existencial, que se compõe dos bens e valores mínimos indispensáveis à subsistência material e moral do indivíduo.
A expansão da jurisdição constitucional – impulsionada, sobretudo, pela incorporação expressa de valores e opções políticas aos textos constitucionais – promoveu um adensamento axiológico e, como efeito, potencializou os conflitos entre princípios de mesma hierarquia constitucional. Essa nova realidade exigiu dos operadores jurídicos, sobretudo das cortes constitucionais, o trabalho de revisitar as regras clássicas de interpretação, bem como de sistematizar novos padrões hermenêuticos, necessários e suficientes para solucionar essa nova categoria de conflitos.
A interpretação jurídica tradicional não foi abandonada. Mas, suas categorias foram revisitadas, em decorrência da centralidade que a Constituição passou a ocupar no novo sistema jurídico e de sua força normativa. Além dessa releitura, outras categorias hermenêuticas tiveram que ser construídas para dar resposta satisfatória aos conflitos axiológicos que se tornaram cada vez mais frequentes.
No modelo hermenêutico clássico, derivado do Positivismo jurídico, a resposta para os problemas está contida no próprio sistema jurídico e o intérprete desempenha uma função meramente subsuntiva, simples aplicação das normas ao fato social. Para esse modelo, a interpretação é uma operação neutra, desprovida de valoração subjetiva e liberta da influência de qualquer outro subsistema. Prevalecem as interpretações lógica, gramatical e histórica.
No modelo hermenêutico pós-positivista o intérprete torna-se coparticipe do processo de criação do Direito, ao atribuir carga valorativa para as cláusulas abertas e ao realizar escolhas dentre soluções normativas possíveis
Ao intérprete, segundo o novo modelo, já não cabe apenas aplicar o direito numa operação de simples subsunção; compete-lhe uma tarefa muito mais profunda, de integrar o trabalho do legislador, imprimindo, na solução encontrada, muito de seus valores e da sua experiência. O intérprete passa a trabalhar com outros modelos hermenêuticos, como a ponderação e a argumentação.
O Neoconstitucionalismo apresenta diversas consequências visíveis, das quais se destacam: (a) a constitucionalização do Direito; (b) a judicialização de políticas públicas; (c) o ativismo judicial; (d) a teoria da coisa julgada inconstitucional; e (e) o Neoprocessualismo (o formalismo valorativo).
No plano objetivo, o a constitucionalização do direito quer significar a constitucionalização de temas até então relegados à legislação infraconstitucional e a incorporação expressa de valores e princípios ao texto constitucional, todos dotados de normatividade efetiva.
No plano subjetivo, a constitucionalização do Direito significa uma mudança de padrão hermenêutico, uma nova postura do intérprete frente ao sistema jurídico. Essa mudança de postura que as Constituições contemporâneas passaram a exigir do intérprete recebeu o nome de filtragem constitucional, pelo qual toda a ordem jurídica precisa ser lida e apreendida sob as lentes da Constituição.
A judicialização de políticas públicas – pelo menos no contexto brasileiro – é um fato que deriva do próprio modelo constitucional desenhado pela Carta republicana de 1988, e não um exercício deliberado de vontade política. Já o ativismo judicial é uma atitude, uma opção, uma escolha de um modo específico e proativo de interpretar as normas constitucionais, com a expansão de seu sentido e alcance.
As escolhas que o Estado faz em matéria de gastos públicos não se restringem ao campo da política majoritária. Embora caiba ao Legislativo aprovar a lei orçamentária e ao Executivo elaborar e executar políticas públicas concretas para as mais variadas necessidades sociais, coube ao Judiciário, por força da constitucionalização abrangente impressa pela Carta republicana de 1988, a missão de fazer cumprir as finalidades e os propósitos constitucionais, sobretudo, quanto ao tema dos direitos fundamentais.
Não há dúvida que a Constituição, ao estabelecer direitos fundamentais com força normativa, fixou deveres ao Estado, cabendo ao Judiciário fazer valer esta vontade constitucional. Para tanto, em determinadas situações, deverá o Estado-Juiz interferir, com caráter imperativo, sobre a definição dos gastos públicos.
O limite que separa o dever constitucional imposto ao Judiciário e o abuso de poder é, todavia, muito tênue, sendo difícil delimitar com precisão até onde pode atuar o Judiciário sem violação à regra de separação dos Poderes.
É preciso, portanto, estabelecer parâmetros minimamente objetivos de controle judicial de políticas públicas capazes de delimitar o território dentro do qual estará o Judiciário agindo no estrito cumprimento de sua missão institucional.
Há, basicamente, três categoriais de controle que legitimam e autorizam a interferência do Judiciário na realização das políticas públicas: (a) parâmetro puramente objetivo (controle quantitativo), quando a própria Constituição fixa a quantidade de recursos mínimos a serem aplicados em uma determinada modalidade de política pública. Descumprida a previsão constitucional, ou seja, investido recursos aquém do mínimo indicado, caberá ao Judiciário, se provocado, impor sanções as mais diversas, a começar pela intervenção federal ou estadual, conforme o caso; (b) parâmetro finalístico (controle de fins), que se ocupa do resultado último da atuação estatal e trabalha com a ideia de prioridade, de preferência, ou seja, gastos públicos secundários não podem ser efetivados antes do atendimento integral das políticas públicas prioritárias; e (c) parâmetro da própria definição da política pública (controle de meios), que cuida de examinar se os meios eleitos pelo gestor público são eficientes para atingir a finalidade constitucional.
A nova hermenêutica jurídica, esse novo olhar sobre o papel e a função das normas constitucionais, explica também, até certo ponto, a ascensão da teoria da coisa julgada inconstitucional, que se baseia no critério da ponderação de valores, entendendo que a coisa julgada, que revela um postulado de segurança jurídica, não prevalece, sempre e sob qualquer circunstância, sobre outros valores de mesma estatura constitucional.
Já o Neoprocessualismo emerge da influência que o constitucionalismo contemporâneo exerceu e exerce sobre o processo civil. Trata-se de verdadeira constitucionalização da ciência processual, cuja instrumentalidade passa a ser interpretada à luz da axiologia constitucional.
O ideário neoconstitucional inspirou, ainda que com certo atraso, os processualistas, que passaram a defender a releitura da ciência processual (em sua trilogia jurisdição/ação/processo) sob a ótica da Constituição, a fim de implementar um “modelo constitucional de processo”.
Nesta fase, confere-se especial relevo aos direitos fundamentais, como valores supremos protegidos no e pelo processo. E para não distanciar o processo da concretização dos direitos fundamentais exige-se do juiz uma postura mais ativa, e mesmo cooperativa, na condução do processo, sobretudo na investigação dos fatos.
O Neoprocessualismo tem por características básicas, dentre outras: (a) a forte influência do direito constitucional sobre o processo; (b) a efetividade dos princípios constitucionais processuais independentemente de previsão legal expressa; (c) a democratização do processo; (d) a visão publicista da relação processual; (e) a visão do processo como meio de efetivação dos direitos fundamentais; (f) a ascensão dos princípios da colaboração e da cooperação das partes e do juízo; e (g) o incremento dos poderes instrutórios do juiz na busca pela verdade real (que afirma os direitos fundamentais).
O formalismo-valorativo é uma corrente derivativa do Neoprocessualismo que busca combater o excesso de formalismo na ciência processual. Ela propõe uma releitura da instrumentalidade do processo, que serve, ou deveria servir, a uma finalidade externa, não podendo ser concebido com um fim em si mesmo. O formalismo excessivo deve ser combatido sempre que se desvirtuar da sua finalidade essencial, de servir como instrumento para a realização da justiça, desde que respeitados os direitos fundamentais das partes e na ausência de prejuízo.
O projeto do Novo Código de Processo Civil tem inspiração neoprocessual. Ele consagra, de modo expresso, alguns princípios constitucionais de natureza processual, como a inafastabilidade da tutela jurisdicional (art. 3º), a razoável duração do processo (art. 4º e 8º), o contraditório e seus reflexos, como os princípios da cooperação e da participação (art. 5º, 8º, 9º e 10º), e a publicidade (art. 11).
Já no art. 1º, o projeto do Novo Código revela sua inspiração neoprocessual ao ditar que o processo civil seja ordenado, disciplinado e interpretado com obediência aos valores e princípios fundamentais fixados na Constituição.
A inspiração também se revela no art. 6º do projeto, que impõe ao magistrado o dever de observar, na aplicação da lei processual, os fins sociais a que ela se dirige e as exigências do bem comum, com respeito pleno aos princípios da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade, da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência.
Outra inspiração vem da opção por cláusulas gerais, de conteúdo aberto, que tornam a atuação jurisdicional muito mais criativa e fazem do juiz um coparticipe da vida política do país, tornando a sentença algo mais justo, mais efetivo, mais próximo da realidade desejada pela Constituição.
Estas são apenas algumas das inspirações da filosofia neoprocessual sobre o projeto do novo CPC. Se estas alterações vão representar ganhos reais de eficiência e vão permitir um maior respeito aos direitos fundamentais no plano processual, só o tempo e a experiência jurídica poderão dizer.