Eduardo Cunha, Deus e a espada da Lei

19/04/2016 às 12:32
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O presidente da Câmara dos Deputados operou uma verdadeira inversão de valores e paradigmas. Sob seu comando, uma maioria parlamentar desafiou abertamente a autoridade da CF/88.

A aprovação, pela Câmara dos Deputados, do Impedimento de Dilma Rousseff sem que ela tenha cometido qualquer crime de responsabilidade no atual mandato  - as pedaladas fiscais ocorreram no mandato anterior e configuram prática usual empregada por dezenas de governadores e centenas de prefeitos que não foram e não serão punidos -  provocou um fenômeno interessante. Como advogado, sou obrigado a reportar o mesmo.

O fenômeno em questão, contudo, não é recente. Desde tempos imemoriais há uma luta mortal entre aqueles que abusam do poder e aqueles que foram encarregados de aplicar a Lei de maneira igual a todos os casos. A própria divulgação do conteúdo dos textos legais em estelas de pedra, placas de bronze e madeira surgiu como uma necessidade da preservação da legalidade.

Nós temos uma Constituição escrita que foi publicada pela imprensa oficial é amplamente divulgada na internet pelos websites governamentais. Mas o conteúdo da CF/88 não tem qualquer valor para a maioria dos deputados. Portanto, ou os deputados não se deram ao trabalho de ler o texto constitucional ou simplesmente resolveram rasgar o mesmo para impor à nação um governante que não foi eleito pelo povo.

Esta distância entre o texto divulgado da constituição, o conhecimento de seu conteúdo pelos parlamentares e a ausência de atuação concreta do mesmo, no caso do Impedimento, não passou despercebido pelo presidente do STF. Esta foi a razão pela qual o Ministro Ricardo Lewandowski admitiu publicamente que o STF pode conhecer o mérito da decisão proferida pela Câmara dos Deputados. Se isto ocorrer não haverá invasão da competência do Parlamento, apenas e tão somente a restauração da legalidade que foi ignorada pela maioria dos parlamentares.

O Poder Legislativo é independente, mas não está acima da Constituição Federal nem pode deixar de aplicar a mesma com o devido rigor. Isto é uma consequência da publicação e ampla divulgação do texto constitucional. Ao STF a própria CF/88 atribuiu o poder/dever de interpretar, em última instância, o conteúdo e a correta aplicação da constituição em vigor.

Causou estranhamento a invocação divina feita pelo presidente da Câmara dos Deputados ao pronunciar o resultado do Impedimento. Todavia, a conduta dele é perfeitamente compreensível para quem conhece a História do Direito:

“Mesmo aqueles que planejam as leis parecem antever problemas na imposição de sua autoridade. Muitas leis e tratados insculpidos em pedra são dedicados a uma divindade ou por ela explicitamente protegidos, e isso não está de modo algum restrito ao período arcaico. Para onde quer que se olhe, leis e tratados tem algum tipo de guardião divino. As inscrições de Paros, século II a.C., recentemente descobertas, fornecem um exemplo helenístico. Há pouco de democracia aqui; já sim tentativas de várias comunidades de fazer e aplicar a lei com a máxima autoridade possível. Estratagemas semelhantes são usados no Oriente Médio. Se notamos que o tipo de leis envolvidas é controverso e político, os problemas dos legisladores ficam aparentes. A escrita era, portanto, usada em parte para fixá-los de uma forma impressiva e monumental e para se obter, mediante sua consagração aos deuses, o tipo de regulamentação aos deuses, o tipo de proteção divina que era pretendida para a lei consuetudinária (não-escrita), mas era desesperadamente lacunar para o tipo de regulamentação política e processual das cidades-estados requeriam. A lei escrita, por si só, não garantia imparcialidade (muitos Estados gregos sabiam disso), nem mesmo o controle básico dos funcionários da cidade. Talvez seja por isso que os secretários eram vigiados cuidadosamente, assim como quaisquer outros funcionários, para evitar abusos de poder." (Letramento e Oralidade na Grécia Antiga, Rosalind Thomas, editora Odysseus, 2005, p. 204)

Ao invocar a proteção divina para a decisão inconstitucional que foi tomada pela Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha tenta revestir o resultado da votação de uma autoridade maior do que aquela que deriva da Constituição Federal. Ele também obrigará o STF a decidir entre a divindade e a constitucionalidade do Impedimento de Dilma Rousseff. Assim, ao invocar deus, o presidente da Câmara reviveu um hábito antigo, e para impedir o STF de revisar a decisão divina por ele pronunciada, como se a mesma estivesse acima da constituição e fosse impossível de revogação.

Nossa Constituição preserva a separação entre o religioso e o secular. Portanto, a invocação divina feita por Eduardo Cunha não tem qualquer valor. O STF pode e deve avaliar e julgar a constitucionalidade do Impedimento de Dilma Rousseff, restabelecendo a autoridade da CF/88, que foi pisoteada pela maioria dos parlamentares. Conflitos semelhantes, decorrentes do desconhecimento ou errônea aplicação da Lei, ocorrem desde os primórdios da democracia ateniense:

“As leis escritas podem, então, ser uma condição necessária para a equidade judicial, mas isso não quer dizer que sejam suficientes. O contexto social e político determinava a eficácia das leis escritas na Grécia antiga, assim como em outros lugares, e podia, igualmente, ser tanto uma força conservadora, ou aristocrática, quanto democrática. Suas associações com a democracia se desenvolveram gradualmente no clima político específico de Atenas.” (Letramento e Oralidade na Grécia Antiga, Rosalind Thomas, editora Odysseus, 2005, p. 204).

Já se disse, não sem razão, que o Brasil é a última Flor do Lácio. Nossa cultura foi profundamente influenciada pelo Direito Romano. E Roma também enfrentou problemas semelhantes aos que ocorriam na Grécia e que ocorrem agora no Brasil.

“É verdade admitida que as leis eram razoavelmente bem conhecidas e de algum modo disponíveis para senadores e membros da elite que precisavam consultá-las, e peritos legais podem ter feito suas próprias cópias com base em versões depositadas no Aerarium (Tesouro) ou de coleções privadas. Um conhecimento mais amplo das leis, em todo caso, viria de elas serem lidas em voz alta por ocasião de sua promulgação. Mas o conhecimento atestado das leis é um assunto um tanto diferente da questão do papel das inscrições públicas. Isso não significa necessariamente que as inscrições não tivessem também um significado simbólico e funcional.”(Letramento e Oralidade na Grécia Antiga, Rosalind Thomas, editora Odysseus, 2005, p. 231).

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Um pouco adiante a autora esclarece que:

“O acesso ao Aerarium, ou a qualquer outro depósito de registros, era difícil e não parece ter sido um ideal muito mencionado. Culham pode estar exorbitando ao afirmar que os registros eram deixados no Aerarium primariamente como um lugar sagrado de armazenamento, mas certamente as tábuas esbranquiçadas publicamente exibidas eram os registros rotineiramente consultados. Ademais, o senado era notoriamente reservado quanto a tornar públicos seus negócios, e, de fato, foi apenas em 59 a.C. que Júlio César propôs  a publicação de seus registros. Eles eram mantidos no Aerarium em tabuletas enceradas, muito fáceis de adulterar. Isso poderia ser interpretado como evidência de uma extrema fragmentação e difusão de registros públicos, em que havia apenas uma distinção pouco nítida entre registros públicos e provados e, consequentemente, o acesso e reutilização dos registros eram altamente dependentes de capricho individual e de contatos pessoais com as famílias dominantes.” (Letramento e Oralidade na Grécia Antiga, Rosalind Thomas, editora Odysseus, 2005, p. 233)

Nós superamos os problemas enfrentados pelos romanos. Todos os atos públicos devem ser divulgados. Isto é garantido pela Constituição Federal, cujo conteúdo foi oficialmente publicado e é amplamente divulgado pelos websites governamentais. A única coisa que explica a invocação divina feita por Eduardo Cunha, ao pronunciar a decisão da Câmara dos Deputados de pisotear o texto constitucional, para impor à nação um presidente que não foi eleito pelo povo brasileiro, só pode ter, portanto, uma explicação: indecorosa má-fé tanto do presidente da Câmara quanto da maioria dos deputados.

O decoro parlamentar é uma das exigências da atividade parlamentar. Na prática, porém, Eduardo Cunha comandou uma verdadeira inversão de valores e paradigma. A maioria indecorosa da Câmara resolveu abandonar publicamente o decoro e pronunciar que não mais está sob os auspícios do texto constitucional, cujo conteúdo e vigência foram rejeitados quando da aprovação do Impedimento. A invocação divina é, portanto, mais importante do que parece. Eduardo Cunha já se colocou acima da constituição e do STF, pois nenhuma Lei ou Tribunal pode ter mais poder que aquela que emana de deus e que é divulgada pelo seu representante na terra.

Dilma Rousseff se pronunciou sobre a decisão, mas não foi capaz de captar e expressar os aspectos mais profundos e tenebrosos da mesma. Na prática, já existem no Brasil dois governos:

1- O governo da CF/88 representado pela presidenta eleita pelo povo e pelo STF guardião da constitucionalidade dos atos governamentais e parlamentares;

2- A tirania da Câmara dos Deputados, representada pela maioria indecorosa que aprovou o Impedimento sob o comando de um deputado que rejeita abertamente o regime constitucional e reveste de natureza divina as decisões inconstitucionais dos parlamentares.

A restauração da legalidade não se dará com a revogação pelo STF do golpe de estado dado pela Câmara dos Deputados. Nem mesmo ocorrerá se o STF afastar Eduardo Cunha do cargo. O problema do Legislativo neste momento é o próprio funcionamento do Legislativo. Na medida em que a maioria dos deputados resolveu abertamente desafiar a autoridade da Constituição Federal da qual o Legislativo aufere sua condição de possibilidade de existir e funcionar, a Câmara dos Deputados perdeu totalmente sua legitimidade institucional.

Um destes governos deve, portanto, perecer em benefício do Estado de Direito. O momento da decisão chegou. Dilma Rousseff deve decretar estado de sítio e fechar a Câmara dos Deputados. Depois, deve convocar eleições gerais parlamentares, restaurando-se a normalidade com a posse de uma nova Câmara dos Deputados. Não há mais a menor possibilidade do Brasil conviver com a tirania parlamentar comandada por Eduardo Cunha. Por razões diversas, teremos que novamente superar a mesma deficiência referida por Marco Túlio Cícero em De legibus:

“Legum custodiam nullam habemus, itaque eae leges sunt quas apparitores nostri volunt: a librariis petimus, publicis litteris consignatam memoriam publicam nullam habemus.”.

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Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

advogado em Osasco (SP)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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