4. MEDIDA DE SEGURANÇA E OS DIREITOS HUMANOS
De acordo com o nosso ordenamento jurídico as medidas de segurança não possuiriam um limite máximo, ou seja, poderiam perdurar até mesmo por toda a vida da pessoa a ela submetida, caso não advenha uma perícia que indique o fim da periculosidade do submetido. Ora, a Constituição Federal dispõe expressamente, em seu art. 5ª, XLVII, b, que não há penas perpétuas. Não há qualquer motivo que justifique a submissão de uma pessoa portadora de transtorno mental a um controle penal perpétuo, enquanto outra pessoa, não portadora de transtorno, jamais seja submetida ao mesmo controle. Não é aceitável constitucionalmente que, em um tratamento, haja a possibilidade de uma privação de liberdade perpétua como forma de coerção penal. Se a lei não estabeleceu um limite máximo, cabe ao intérprete fazê-lo.
Em virtude disso, o STF se posicionou sobre o tema, determinando o limite máximo de 30 anos para o cumprimento de medida de segurança:
“A interpretação sistemática e teleológica dos arts. 75, 97 e 183, os dois primeiros do Código Penal e o último da Lei de Execução Penal, deve fazer-se considerada a garantia constitucional abolidora das prisões perpétuas. A medida de segurança fica jungida ao período máximo de trinta anos.” (HC 84.219-4-SP, 1ª Turma, julgado: 16/08/2005, rel. Min. Marco Aurélio – DJU 23/09/2005).
O STJ, em posicionamento ainda mais garantista, à luz dos princípios da isonomia e da proporcionalidade, sumulou a matéria no seguinte sentido: “O tempo de duração da medida de segurança não deve ultrapassar o limite máximo da pena abstratamente cominada ao delito praticado” (Súmula 527).
Portanto, as medidas de segurança podem ter tanto uma duração curtíssima, menor até do que o estabelecido na sentença, ou se prolongarem indefinidamente, caso persista a periculosidade. Entretanto, isso não é aplicável somente aos inimputáveis por incapacidade psíquica, mas estende-se aos agentes dotados de culpabilidade diminuída e condenados por delitos, para os quais há uma diminuição de um a dois terços da pena.
Para a fixação do prazo mínimo, o magistrado deverá se ater aos critérios com condizentes à gravidade da anomalia mental, pois a internação não se traduz em uma punição para o internado, mas sim em um tratamento especial. Desse modo, em nenhuma hipótese a medida de segurança poderá limitar ou restringir os direitos do doente mental.
Os direitos humanos protegem o indivíduo da ação do Estado. Assim, não há qualquer justificativa, seja jurídica ou humanitária, que explique o fato de enfermo mental, acometido de um grau de periculosidade, fique ao arbítrio de um controle penal perpétuo, pois é inconstitucional a privação de liberdade perpétua, ainda que seja em forma de tratamento, conforme explicita o art. 5º, XLVII, “b”, da Constituição Federal.
A medida de segurança não deveria ultrapassar a pena máxima cominada ao delito, ou a que foi substituída em razão da culpabilidade diminuída. Desse modo, não ficaria a medida inconstitucional por se igualar à prisão perpétua. Haveria, portanto, o limite da intervenção estatal, tanto na pena quanto na medida desta. Seria a junção do princípio da legalidade, pois o enfermo saberia, antecipadamente, o limite máximo da privação de sua liberdade, do princípio da igualdade, uma vez que não pode o inimputável ser alguém em pior condições que os demais.
Ademais, a lei penal diz que o inimputável deve ser internado, ressalvada a hipótese em que o crime é punível com pena de detenção, pois, nesse caso, é de faculdade do magistrado submeter o doente mental a tratamento ambulatorial. Contudo, os hospitais de custódia e tratamento em muito se assemelha às condições físicas e internas dos manicômios judiciários, pois há uma suposta falta de recursos do Estado para a construção desses novos estabelecimentos.
No tratamento ambulatorial, a pena de detenção não é suficiente para a sua conversão, sendo necessário um exame minucioso e fundamentado das condições do enfermo para a constatação de condições absolutamente favoráveis com a medida em questão. O tratamento ambulatorial não é inalterável, pois, em qualquer fase, o magistrado poderá determinar a internação se esta for para fins exclusivamente curativos. Essa internação deve ficar nas mãos dos especialistas psiquiátricos e não de acordo com a discricionariedade judicial.
A lei penal não deixa claro o que venha a ser um estabelecimento adequado. Então, somente por possuírem características hospitalares, são tidos como apropriados. Um exemplo bastante conhecido da inadequação dos lugares utilizados para tratamentos é o “caso Damião Ximenes”. Em 04 de outubro de 1999, Damião Ximenes Lopes, portador de transtorno mental, morreu na instituição psiquiátrica Casa de Repouso Guararapes, em Sobral – CE. Ele sofreu contenção física, amarrado com as mãos para trás e a necrópsia revelou que seu corpo sofreu diversos golpes, apresentando escoriações localizadas na região nasal, ombro direito, parte anterior dos joelhos e do pé esquerdo, equimoses localizadas na região do olho esquerdo, ombro homolateral e punho. No dia do falecimento de Damião, o médico da casa receitou a ele alguns remédios, sem realizar qualquer exame físico, e saiu do hospital, que ficou sem médico algum. Duas horas após a retirada do médico, Damião morreu.
Passaram-se diversos anos após o fatídico caso, sem que houvesse uma sentença sequer nos autos do processo penal movido pelo Ministério Público cearense contra os responsáveis, e nem nos autos da ação de indenização cível interposta pela família. A irmã de Damião, inconformada, redigiu uma carta-denúncia para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, denúncia que foi acolhida por este órgão do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Foi aberto, então, procedimento contra o Brasil na comissão, e seu informe conclusivo não foi cumprido pelo Estado. Por esse motivo, a comissão processou o Estado brasileiro perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Esta não acolheu a alegação do Estado brasileiro de extinção do processo sem julgamento de mérito, por não terem sido esgotados os recursos internos disponíveis, pois, muitos anos após o caso, ainda não haviam sido prolatadas nem a sentença criminal de primeiro grau nem a cível.
O Brasil reconheceu parcialmente sua responsabilidade internacional por violação dos direitos à vida e integridade física de Damião. Contudo, não reconheceu a violação do direito à integridade psíquica dos familiares da vítima e muito menos o direito à reparação dos danos materiais e morais.
Contudo, em 4 de julho de 2006, a corte prolatou uma decisão histórica, por sete votos a zero, e com voto concorrente do juiz brasileiro Antônio Augusto Cançado Trindade, declarando a violação de vários direitos da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José) e condenando o Estado a reparar os danos causados.
O “caso Damião Ximenes” expõe a situação do doente mental em nosso ordenamento jurídico. Uma pessoa com as mãos amarradas é morta em situação de vulnerabilidade extrema e somente sete anos após seu falecimento é que ocorre uma sentença, internacional, para, digamos, restaurar, em parte, a justiça, concedendo indenizações e exigindo punições, enquanto o Judiciário local se manteve inerte à situação.
Foi visando um modelo humanizador que surgiu a Lei nº 10.216/2001. Esse modelo foi defendido historicamente por movimentos antimanicomiais. Ele volta-se para a saúde mental e a alteração do modelo de assistência aos que são portadores de transtornos mentais, formulando-se meios alternativos de tratamento, diversos da internação hospitalar.
Muitos doentes mentais se mantêm na prisão, mesmo absolvidos, esperando indefinidamente vagas em um estabelecimento adequado, fato que ofende a dignidade da pessoa humana. Frente a esses casos, alguns magistrados, aplicam analogicamente o art. 178, da Lei nº 7.210/84, dando a solução de determinar que o enfermo mental aguarde em liberdade vigiada, haja vista a impossibilidade de internamento por carência de vagas.
Assim, o doente mental não deve ficar recolhido em prisão comum, sem, pelo menos, o mínimo necessário de assistência médica especial, pois o Estado somente pode exigir o cumprimento da medida de segurança de internação se possuir a aparelhagem para tanto. A falta de vagas não justifica o desrespeito aos direitos humanos, visto que a finalidade do tratamento é aquele conveniente com as expectativas mínimas de todo ser humano, visando medidas pedagógicas, médicas e terapêuticas com a finalidade de reabilitar o enfermo mental à vida social.
A Lei da Reforma Psiquiátrica inovou na política de saúde mental, visualizando ao portador de transtorno mental infrator um tratamento além da simples segregação em um manicômio judicial. Desse modo, faz-se necessária uma nova análise sobre a matéria das medidas de segurança no Código Penal e na Lei de Execução Penal.
Apesar das medidas de segurança permanecerem as mesmas, a maior mudança visível é o modelo de tratamento. Conforme a lei antimanicomial, seu art. 6º, a internação somente ocorrerá “quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes”, e deve ser devidamente motivada por um “laudo médico circunstanciado”. Para o Código Penal, a internação é a regra para quando o infrator é punido com reclusão, sendo o tratamento ambulatorial a exceção, uma alternativa para o juiz submeter o inimputável que pratique crimes ao tratamento médico sem internação.
Torna-se necessário rever os conceitos de inimputabilidade, medida de segurança e periculosidade, pois a periculosidade não é algo permanente e imutável em uma pessoa.
Com a implantação da Lei nº 13.146/2015, que dispõe sobre a inclusão da pessoa com deficiência, destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais, visando a sua inclusão social e cidadania, percebe-se que ainda há um longo caminho a se trilhar, no sentido de propiciar inclusão social às pessoas portadoras de transtornos mentais. De acordo com essa lei, considera-se pessoa com deficiência quem possui impendimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, impedimento este que pode impossibilitar sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
Mesmo com o advento desta lei, que assegura, em seu art. 5º, que a pessoa com deficiência será protegida de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, tortura, crueldade, opressão e tratamento desumano ou degradante, não se percebe essa realidade nos hospitais e centros de tratamento psiquiátrico.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Observa-se que o Código Penal trata as medidas de segurança de uma forma que ainda reflete a teoria biodeterminista, segundo a qual não há a possibilidade de cura de um “doente mental criminoso”, dando a essa sanção um caráter substancialmente preventivo, segregando as pessoas com transtorno mental que estão em tratamento.
Devido a essa percepção de inalterabilidade, durante muito tempo manteve-se a ideia de que a internação era o tratamento ideal para o “louco infrator”. Porém, o que de fato ocorreu foi uma série de maus-tratos, abandono, segregação, preconceito, e até mortes. Por geralmente não possuir prazo determinado para findar, a medida de segurança pode ser considerada uma sentença de prisão perpétua, o que constitui um grande desrespeito à dignidade da pessoa humana.
A função preventiva da medida de segurança não é eficaz para o tratamento dos enfermos mentais que praticam delitos, pois não levam em conta a pessoa do infrator, apenas buscam uma solução imediata de “proteção” da sociedade contra os “loucos criminosos”. O isolamento do internado evidencia a sua objetificação, tornando-o alguém sem identidade e vontade. Constata-se a ineficiência dos tratamentos a que são submetidos os enfermos mentais que cumprem medida de segurança, uma vez que há complexidade para a obtenção de um diagnóstico preciso e o tratamento adequado. Nas unidades prisionais comuns podem ser encontradas pessoas com transtornos mentais, seja como preso provisório, seja como apenado, pois a perícia não conseguiu determinar se ele possuía ou não alguma enfermidade mental.
Os doentes mentais que cometem crime são submetidos a internação em Hospital de Custódia para tratamento psiquiátrico. Essas estruturas surgiram para substituir o manicômio judiciário, mas, na realidade, o ambiente continua sendo totalmente desfavorável para a recuperação do paciente e sua reinserção na sociedade. Essas instituições mantêm a mesma estrutura do século passado, isolando e humilhando o portador de transtorno mental, o que, muitas vezes, acarreta a piora do seu quadro clínico. Surge, portanto, a necessidade de uma reforma na aplicação da medida de segurança, com revisão dos seus objetivos e suas características.
Mesmo com a evolução do conceito de direitos humanos na sociedade contemporânea, esses direitos não têm sido efetivados para as pessoas com transtorno mental. O favorecimento da dignidade da pessoa humana, necessária a todos, deve ser o objetivo primordial, não podendo ser abandonada ainda que o transtorno mental seja autor (ou partícipe) de crime.
Assim, recomenda-se um novo modelo de tratamento psiquiátrico, proposto pela Lei nº 10.216/2001 (Lei da Reforma Psiquiátrica). Contudo, esse modelo não foi regulamentado e implementado pelo governo. Então, sugere-se que as pessoas portadoras de transtorno mental sejam retiradas da internação nos hospitais psiquiátricos e encaminhadas para as residências terapêuticas, para que tenham um convívio social saudável e contato com os seus familiares.
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