Conclusão
Identificadas e apontadas as principais teses jurídicas abordados a respeito do Caso Riocentro, cumpre registrar, também, com as devidas vênias, nossa opinião.
Tendo em vista o disposto no art. 9º do CPM, consoante a redação prevista à época dos fatos, entendemos, em sintonia com o que restou decidido pela Primeira Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, que a Justiça Federal detém competência para julgar as infrações penais relativas ao episódio, uma vez que, conforme sobejamente demonstrado, os militares envolvidos agiram não na específica qualidade de militares ou servidores públicos, mas como simples cidadãos e em arrepio à política estatal à época, inaugurada pelo então presidente Geisel, o que, pelo que foi possível depreender da leitura do inteiro teor do julgado pesquisado (habeas corpus nº 2014.02.01.0056847), afasta a incidência de uma das hipótese previstas no art. 9º, I, II ou III, do CPM, repelindo, assim, a competência da Justiça Militar.
Não obstante a competência da Justiça Comum Federal, o jus puniendi estatal, no presente caso, esbarra em óbices jurídicos incontornáveis, sintetizados a seguir.
A impossibilidade de punição dos possíveis autores dos crimes perpetrados na ocasião decorre de marcos limitadores do poder punitivo estatal, dentre os quais podemos citar, de plano, o fenômeno da prescrição, cuja essência, segundo uníssona doutrina penal, deve ser interpretada de modo a se evitar a ampliação das hipóteses que conduzem a casos de imprescritibilidade, justamente por ser aquela uma causa que extingue, elimina e afasta a sanção penal do estado (art. 107, IV, 1ª figura, do CP). Significa dizer que as situações jurídicas que geram imprescritibilidade devem ser consideradas excepcionais, não podendo ser alargadas através da simples e subjetiva vontade do julgador, sob pena de nítida ofensa ao princípio constitucional da separação das funções (art. 2º da Constituição Federal).
Seguindo nessa linha de raciocínio, não há como negar que, nos termos do prazo (20 anos) mencionado no art. 109, I, do CP, as infrações penais cometidas na ocasião estão prescritas, não sendo possível, nem mesmo à luz do que preceitua a Carta da República (art. 5º, XLIV), considerá-las imprescritíveis. Aliás, interessante notar que até mesmo o constituinte, quando da elaboração do novo documento de identidade do estado brasileiro, certo ou não, entendeu por bem não taxar de imprescritíveis as infrações penais (militares ou comuns) cometidas por ambos os lados radicais (extrema esquerda e extrema direita) durante o regime militar. O fato de não haver, no ordenamento constitucional vigente, qualquer elemento norteador do que vem a ser crime contra humanidade é a mais absoluta evidencia de que o estado brasileiro nunca quis catalogar, com tal título, o episódio de 1981, dentre outros que tenham sido perpetrados por ambos os lados durante o mencionado período, até para se viabilizar a vitória do estado liberal e do regime democrático, como bem imaginados pelos ideais de Castello Branco.
Ressalte-se, ainda, que o tema prescrição, justamente por interferir diretamente no jus puniendi do Estado, indiscutivelmente para limitá-lo, não pode ser contornado sob o argumento de que o direito internacional considera a tortura e o homicídio, quando cometidos por agentes do estado, ainda que como forma de perseguição política, crimes contra a humanidade. Ora, querer invocar o conceito de crime contra a humanidade trazido à baila pelo histórico Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, instalado na cidade alemã de mesmo nome para julgar os crimes cometidos pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial é, no mínimo, desconhecer a história e as específicas razões que levaram os Aliados à criação do dito Tribunal.
Invocar-se, como se tem dito, o conceito de crime contra a humanidade previsto no art. 6º, c, do Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg demonstra, sobretudo, descompromisso com o mais notável princípio reitor do direito penal, qual seja, o da legalidade penal, sem dúvida o mais célebre de todos. Não é por acaso que o Código Penal trata dele logo no art. 1º, figurando, ainda, como garantia diante do poder punitivo do estado (art. 5º, XXXIX, da Carta da República).
Por conseguinte, tendo em mira o princípio da legalidade penal, somente através um distorcido esforço hermenêutico seria possível comparar situações tão díspares e juridicamente distintas: os crimes cometidos pelos nazistas durante a vigência do Terceiro Reich e aqueles praticados por pessoas (civis ou militares) ideologicamente comprometidas com pensamentos totalitários, quer de esquerda, quer de direita, quando do regime vigente entre 1964 e 1985.
Ademais, dizer que os reprováveis crimes de tortura e homicídio praticados por eventuais agentes do estado brasileiro (que, embora formalmente servidores públicos, não agiram sob esta condição, pelo menos com o permissivo estatal) durante o período compreendido entre os anos de 1964 a 1981 podem ser rotulados, sem o amparo de qualquer norte referencial consagrado no direito interno, como delitos contra a humanidade chega às raias do absurdo, revelando completo desconhecimento quanto a mens que inspirou a criação dos diversos tribunais internacionais. À guisa de exemplo argumentativo, se assim fosse, todos os inúmeros crimes praticados, na atualidade, por agentes (civis ou militares) do estado brasileiro contra pessoas integrantes das camadas mais carentes da sociedade também poderiam ser catalogados dentro do gênero imprescritível, o que certamente não foi a mens da Assembleia Nacional Constituinte ao construir o art. 5º, XLIV, da Constituição Federal, cuja instalação deu-se no momento seguinte ao denominado regime militar.
Cumpre destacar, ainda, que nem mesmo a Convenção sobre Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade, aprovada em 1968 pela Assembleia Geral da ONU, pode ser invocada como argumento para conferir tal etiqueta (de imprescritibilidade) aos crimes então praticados, tendo em vista que, em matéria penal, vigora, de forma absoluta, o princípio da legalidade penal. Ainda que o costume internacional seja mesmo considerado fonte do direito internacional, a questão posta há de ser resolvida sob o enfoque da dogmática penal, cuja premissa básica (e incontornável) impede, a nosso juízo, que um conceito consagrado na órbita internacional possa ser invocado a fim de preencher alguma lacuna eventualmente existente em lei penal, notadamente quando possibilitar a ampliação do poder punitivo do estado, justamente o que acontece na hipótese em voga.
De nossa parte, por mais nobre que seja a intenção daqueles que defendem a tese oposta à consagrada na presente conclusão, entendemos extremamente perigoso alargar, sem lastro jurídico e por meio de simples falácias, a incidência da norma penal sobre hipóteses não albergadas por ela. Nesse sentido, ficamos com Claus Roxin (2006, p. 138), para quem um estado de direito deve proteger o indivíduo não apenas através do direito penal, mas também do próprio direito penal.
Diante do panorama jurídico acima exposto, o princípio da legalidade penal assume importante função: o direito de punir do estado brasileiro somente poderá ser exercido de acordo com o que estiver legalmente estabelecido no ordenamento jurídico pátrio, seja no que tange à conduta incriminada, seja no que se refere a termos relacionados às definições de prescritibilidade (e imprescritibilidade).
Por consectário lógico, a adoção de conceitos estranhos ao ordenamento nacional, quando previstos apenas em sede de costumes jurídicos, atinge mortalmente diversas garantias insculpidas pela obra do constituinte, que se preocupou em exteriorizar, logo no preâmbulo constitucional, a importância vital da segurança jurídica, valor tão atacado nos últimos tempos.
Referências
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ROXIN, Claus. Strafrecht: Allgemeiner Teil. München: Verlag C. H. Beck, 2006.
Notas
[1] Em grande medida resultado de uma confrontação entre forças liberais (lideradas, inicialmente, por Castello Branco, que defendia uma intervenção cirúrgica para restabelecer o pleno funcionamento dos Poderes Judiciário e Legislativo, este ameaçado de fechamento por forças radicais que apoiavam o governo Goulart) e conservadoras (comandadas por Costa e Silva, que preconizava um projeto de reestruturação nacional, inserido no contexto da bipolaridade confrontativa direta).
[2] É importante frisar que o general Ernesto Geisel foi chefe da Casa Militar do governo Castello Branco, portanto homem de sua absoluta confiança, sendo incumbido, em abril de 1964, de fiscalizar e impedir eventuais excessos do regime de força que se buscava, à época, implementar pontualmente, garantindo as eleições livres (em 1965) e o pleno funcionamento do Judiciário e do Congresso nacional, que se encontravam ameaçados em março de 1964 pelo governo João Goulart e, em especial, pelas forças radicais de extrema esquerda, lideradas, em particular, pelo governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola.
Abstract: The present article aims to present a perspective about the renowned Caso Riocentro, which happened on April 30th 1981, in the neighborhood of Jacarepaguá, Rio de Janeiro, where two bombs exploded, especially regarding what was discussed and decided in the habeas corpus 2014.02.01.0056847, judged on July 2nd 2014 by the First Specialized Group of the Federal Regional Court of the 2nd Region. Considering that, in the end, it will be the Judiciary Power the one which will decide if the facts committed on the occasion will end with the criminal accountability (or of other nature) of the military indicted by the Federal Prosecution, we must bring to light some historical aspects that surround this subject, as well as a synthesis of the debates regarding the main juridical thesis mentioned by the various subjects involved in the discussion occurred when the aforementioned habeas corpus was trialed, hoping to contribute, therefore, for the diffusion ofthe judicial decisions emanate from the Judiciary Power of the 2nd Region.
Keywords: Military Regime. Riocentro. Crime against the humanity. Injunction. Amnesty.