Não é raro encontrar na praxe forense dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar o entendimento de que, proferida sentença penal condenatória, restaria automaticamente extinta a medida protetiva de urgência. Seria, assim, a consagração do velho brocardo latino “accessorium sequitur principale” (“o acessório segue o principal”), isto é, extinta a ação penal (principal), a medida protetiva (acessório) perderia seu objeto, ante a sua natureza supostamente acautelatória ou instrumental.
Noutras palavras, no plano concreto, proferida sentença penal condenatória contra o agressor doméstico, este seria premiado com uma pena de detenção de três meses no regime aberto e, ainda, veria extinta a medida protetiva de urgência que tanto obstaculizava ou dificultava sua nova investida criminosa contra a pobre vítima.
Acontece que, com grande acerto, o Superior Tribunal de Justiça já assentou inúmeras vezes que a medida protetiva de urgência não possui natureza meramente instrumental ou cautelar, mas, sim, de tutela inibitória, inclusive podendo ser deferida na ausência de ação penal em curso.
Vejamos:
“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. PENAL E PROCESSUAL PENAL. LEI MARIA DA PENHA. MEDIDA PROTETIVA. NATUREZA JURÍDICA INIBITÓRIA. INDEPENDÊNCIA EM RELAÇÃO AOS AUTOS PRINCIPAIS. IMPORTÂNCIA PRIMORDIAL DA NORMA É A SATISFAÇÃO CONCRETA DE PROTEÇÃO À VÍTIMA. AGRAVO DESPROVIDO.
1. A natureza jurídica da medida protetiva prevista no art. 22 da Lei Maria da Penha, possui nítida feição inibitória, constituindo-se em importante aliado para a cessação da violência doméstica e, consequentemente, garantindo o caráter satisfativo de proteção às vítimas buscada pela norma.
2. Inalteradas as circunstâncias que ensejaram a fixação da medida protetiva imposta em favor da vítima, subentende-se que o contexto motivador ainda persiste, devendo ser dada continuidade à medida anteriormente prevista, não se exigindo vinculação a outro processo.
3. Agravo regimental desprovido.
(AgRg no REsp 1566547/MG, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 27/06/2017, DJe 01/08/2017)”
“DIREITO PROCESSUAL CIVIL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER. MEDIDAS PROTETIVAS DA LEI N. 11.340/2006 (LEI MARIA DA PENHA). INCIDÊNCIA NO ÂMBITO CÍVEL. NATUREZA JURÍDICA. DESNECESSIDADE DE INQUÉRITO POLICIAL, PROCESSO PENAL OU CIVIL EM CURSO.
1. As medidas protetivas previstas na Lei n. 11.340/2006, observados os requisitos específicos para a concessão de cada uma, podem ser pleiteadas de forma autônoma para fins de cessação ou de acautelamento de violência doméstica contra a mulher, independentemente da existência, presente ou potencial, de processo-crime ou ação principal contra o suposto agressor.
2. Nessa hipótese, as medidas de urgência pleiteadas terão natureza de cautelar cível satisfativa, não se exigindo instrumentalidade a outro processo cível ou criminal, haja vista que não se busca necessariamente garantir a eficácia prática da tutela principal. "O fim das medidas protetivas é proteger direitos fundamentais, evitando a continuidade da violência e das situações que a favorecem. Não são, necessariamente, preparatórias de qualquer ação judicial. Não visam processos, mas pessoas" (DIAS. Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012).
3. Recurso especial não provido.
(REsp 1419421/GO, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 11/02/2014, DJe 07/04/2014)”.
Destarte, proferida sentença penal, se o caso concreto demonstrar que a mulher vítima de violência doméstica ainda necessita do amparo das medidas protetivas de urgência, o caso será de sua plena e integral manutenção, pois trata-se de verdadeiro caso de salvífica tutela inibitória e não cautelar.
A medida protetiva de urgência presta-se, em última análise, à manutenção da vida e da integridade física e psicológica da mulher, já a ação penal é serviente à apuração e responsabilização pela prática do delito. Há evidentemente uma identidade de personagens processuais entre essas ações, mas com objetivos distintos na sua essência.
Outra coisa seria se a pena dos delitos de violência doméstica cominassem a pena de reclusão no regime fechado ao agressor. Aí, poderia se argumentar que a privação da liberdade do agressor faria cessar automaticamente o interesse de agir da vítima no plano inibitório. Pois, mesmo gozando de autonomia e independência com relação à ação penal, sua vigência restaria supervenientemente comprometida pela impossibilidade prática da reiteração criminosa pelo agressor privado da liberdade.
A verdade é que, apesar da jurisprudência dominante do STJ a favor da manutenção e vigência das medidas protetivas de urgência independentemente do ajuizamento e sorte da ação penal, a Lei Maria da Penha ainda guarda grandes lacunas que dificultam sua operacionalidade prática na sua seara inibitória. Lacunas essas que perpetuam o “holocausto” diário das mulheres em nosso País.
Deve o Congresso Nacional, às pressas, regulamentar, com mais profundidade, o tema das medidas protetivas de urgência, como tutela inibitória autônoma, prevendo expressamente sua vigência em todos os casos de sincero risco à vida e integridade da mulher vítima de violência doméstica, independentemente do ajuizamento e sorte da ação penal, com todos os seus consectários, notadamente com a decretação da prisão do agressor no caso de seu inadimplemento.