As recentes decisões dos regionais eleitorais, muitas endossadas pelo Tribunal Superior Eleitoral, torna necessária a discussão para compreender em que medida as cotas eleitorais de gênero podem ser entendidas como uma política pública voltada para o incremento da participação feminina na política, ou se as cotas são apenas mais um instrumento derivado do sistema político que apenas conserva as diretrizes delimitadas pela elite política, não havendo qualquer referência que indique um aumento na participação feminina em razão da política pública de cotas de gênero.
É indubitável que a presença cada vez maior de mulheres na política é fundamental para o fortalecimento da democracia. No entanto, a adoção de mecanismos equivocados tendentes a garantir uma maior participação das mulheres na vida política do país pode mascarar a realidade e impedir a adoção de medidas concretas.
Cabe aqui destacar que a política de cotas de gênero no Brasil foi adotada inicialmente nas eleições de 1996 por força da Lei nº 9.100/1995, que regulamentou aquele pleito, sendo que o tema passou a receber tratamento diferenciado quando da edição da Lei nº 9.504/1997, em cujo texto constava que cada partido deveria reservar o mínimo de 30% e o máximo de 70% nas candidaturas para cada sexo. Ocorre que só recentemente foi adotada, pela Lei nº 12.034/2009, uma imposição legislativa mais incisiva, com o intuito de mudar o quadro político.
Assim, a participação das mulheres no processo eleitoral ganhou novo capítulo no momento atual do Brasil, merecendo destaque a Lei das Eleições, Lei nº 9.504/1997, cujo art. 10, com a redação que lhe foi dada pela Lei nº 12.034/2009, também chamada de “minirreforma eleitoral”, estabeleceu os novos termos do que passou a ser denominado de ´´cota de gênero”, com a seguinte redação:
´´Art. 10. Cada partido poderá registrar candidatos para a Câmara dos Deputados, Câmara Legislativa, Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais, até 150% do número de lugares a preencher [...].
[...]
§ 3º Do número de vagas resultantes das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo.´´
Assim, a cota de gênero nas candidaturas proporcionais passou a constituir condição de registrabilidade do DRAP (Demonstrativo de Regularidade dos Atos Partidários), razão pela qual calhou ser obrigatório o atendimento dos limites mínimos e máximos para cada sexo no momento de apresentação do DRAP à Justiça Eleitoral.
Nesse ponto, forçoso concluir que é necessário muito mais do que um formalismo direcionado para a imposição do atendimento às cotas de gênero para que as mulheres tenham seu espaço garantido nos partidos políticos de forma ativa e não simplesmente em números insignificantes e até mesmo artificiais.
A cota de gênero restou estabelecida pelo legislador como se os partidos políticos estabelecessem barreiras impeditivas para a participação das mulheres na vida política do país, quando na verdade há necessidade de uma análise mais aprofundada de todo o contexto que pode levar à conclusão de que as mulheres, quando filiadas, não são ativas, ou evitam fatalmente se envolverem em atividades políticas por puro desinteresse.
Sob esse prisma, a imposição de cota gênero não atende e jamais atenderá a real intenção do legislador, uma vez que para que seja garantida a participação das mulheres em atividades políticas há a necessidade de se levar em consideração que as posições sociais objetivas interferente profundamente nas preferências subjetivas das mulheres, ou seja, o fato da mulher ocupar uma posição social de exclusão, a sobrecarga em atividades domésticas com jornadas duplas ou triplas, o baixo prestígio no ambiente de trabalho e a predominância dos homens na política pode relegar às mulheres uma percepção de auto exclusão, o que acaba atraindo o sentimento de que elas não são aptas a exercer cargos políticos.
Assim, a imposição de reserva de um percentual mínimo de candidaturas destinada a tornar efetiva a participação das mulheres na política perde o sentido na medida em que não existem mecanismos para que as cotas sejam devidamente preenchidas, o que acaba por exigir profunda alteração nos filtros sociais que cercam a política como forma de incrementar de forma efetiva a democracia com a participação das mulheres.
Outro ponto que merece destaque, diante das premissas expostas acima, é que não há dados relevantes hábeis a demonstrar que os partidos políticos impedem ou impõe obstáculos para a participação das mulheres no processo eleitoral, fato este suficiente para corroborar a conclusão de que o problema ultrapassa a seara do funcionamento do sistema político, haja vista a nítida ausência de mecanismos alheios ao processo eleitoral que possibilite uma alteração da percepção subjetiva das próprias mulheres acerca da importância da participação feminina na vida política.
Assim, do que adianta impor cotas de gênero se não há mecanismos prévios para possibilitar a modificação da percepção das mulheres acerca da necessidade de participar ativamente do processo eleitoral?
A determinação imposta pela legislação acerca da cota gênero acaba causando incongruências no sistema eleitoral, haja vista que exige a participação de no mínimo 30% de um determinado gênero nas candidaturas sob pena de se impor a redução na participação do gênero oposto, o que acaba gerando uma causa de inelegibilidade reversa não prevista pelo constituinte.
Assim, muito além de se impor a reserva de cotas para as mulheres, o legislador deveria se voltar para a imposição de implementação de programas partidários voltados para incentivar a participação das mulheres na vida política, com reserva de fundos específicos para essa finalidade e com a necessária vinculação de todo o processo eleitoral ao percentual indicado para a cota de gênero.
Não há razão de existir para a cota de gênero sem a implementação de mecanismos que promovam transformações na percepção subjetiva das mulheres de modo a possibilitar uma maior participação feminina nas atividades partidárias, políticas e eleitorais do país.
Definidas as premissas inerentes à imposição de reserva de percentual de candidaturas para atender à cota de gênero, o problema está em definir a delimitação de penalidades no caso de inobservância da cota ou até mesmo no caso de constatação de algum tipo de subterfúgio praticado pela agremiação partidária no intuito de atender a imposição legal.
Ao se considerar que a cota de gênero é uma condição de registrabilidade do DRAP, caso esta condição não seja atendida, deve ser objeto de determinação de emenda para que o número de candidatos seja ajustado. Caso o ajuste não ocorra dentro prazo concedido, o DRAP poderá ser integralmente indeferido.
Não obstante a possibilidade de indeferimento integral do DRAP no momento de seu processamento no juízo eleitoral competente, o problema surge quando há apontamento de inconsistências ou até mesmo de fraudes relacionadas à cota de gênero após o processamento do DRAP.
Com a guinada da orientação jurisprudencial do Tribunal Superior Eleitoral a partir do julgamento do RESPE 14-9/PI, processo em que a questão de fundo foi justamente a delicada problemática situação das ´´candidaturas femininas laranjas´´ o TSE passou a estabelecer como parâmetro a aceitabilidade de Ações de Impugnação de Mandado Eletivo e Ações de Investigação Judicial Eleitoral no caso de fraudes relacionadas ao DRAP, sendo que no caso de fraude na composição da cota de gênero a AIME passou a ser indicada como instrumento processual ideal para a veiculação da causa de pedir.
Assim, admitida a AIME ou AIJE e provada a fraude na composição da cota de gênero, muitos tribunais passaram a declarar a nulidade do DRAP e, por consequência, a anulação dos registros dos candidatos com a cassação dos diplomas dos suplentes e dos mandatos eletivos dos eleitos.
Dessa feita, patente o problema no tocante à lei de cotas quando o seu descumprimento ocorre por fato superveniente ao processo ou decisão inerente ao registro, ou seja, quando no momento do registro ou da decisão é declarada a regularidade do DRAP, mas há a constatação de que no curso do processo eleitoral houve a prática de fraude para o atendimento da cota de gênero.
Entretanto, a solução apontada no sentido de anular por inteiro a participação do partido infrator (ou coinfrator), decretando-se a nulidade de todos os votos que a legenda recebeu, seja pela coligação, sigla partidária, seja pelos candidatos, se mostra uma medida drástica e que atenta contra o princípio do aproveitamento do voto e, ainda, se mostra violador do princípio da proporcionalidade e razoabilidade, na medida que deixa de ter como parâmetro o princípio da responsabilidade solidária entre candidatos e partidos, que no caso em tela não estabelece nenhum tipo de solidariedade para o caso de fraude praticada pelo partido hábil a alcançar o diploma e/ou mandato eletivo.
Assim, o princípio do aproveitamento do voto deve pautar a atuação da Justiça Eleitoral, de forma a preservar a soberania popular, a apuração dos votos e a diplomação dos eleitos, evitando a nulidade de votos quando se verificar a possibilidade, pela adoção do princípio da razoabilidade e proporcionalidade, de separação dos votos nulos dos válidos (não contaminados pela fraude).
Assim, não há razoabilidade no ato de anular todos os registros dos candidatos com a consequente cassação dos diplomas dos suplentes e dos mandatos eletivos dos eleitos em razão de fraude imputada à coligação ou partido político, uma vez não haver espaço na seara do processo eleitoral para o instituto da responsabilidade objetiva. Ademais, havendo fracionamento do ato apontado como fraudulento, se mostra viável a possibilidade de decote do ato eivado de vício de nulidade para fins de se evitar que o todo seja contaminado, permitindo, assim, a preservação da soberania popular, da apuração dos votos e da diplomação dos eleitos.
Considerar a hipótese de anulação de todos os registros de candidaturas em razão de fraude relacionada à cota de gênero pode levar ao absurdo de se cancelar os registros de candidaturas legítimos de candidatas mulheres ou até mesmo a decisão teratológica de se cassar os diplomas ou mandatos de mulheres legitimamente eleitas, tudo sob o argumento de se resguardar a cota de gênero.
Ora, se mostra razoável e proporcional anular os registros de todas as candidaturas legítimas com a consequente cassação dos diplomas e mandatos legítimos, inclusive de mulheres, sob o argumento de comprovação de fraude violadora da cota de gênero praticada por coligação ou partido político?
Oportuno afirmar que a norma jurídica não é um fim em si mesma, não podendo ser interpretada de modo estanque, dissociada do sistema jurídico e das ciências sociais que compõem o conglomerado que se denomina de Direito. A interpretação da norma deve derivar dos anseios de determinada coletividade, do desiderato de pacificação social, da vontade de se atingir a verdadeira justiça social, da prevalência dos valores maiores que deu origem à norma.
Portanto, no caso de constatação de fraude non DRAP relacionada à cota de gênero, não há razão que justifique a anulação de todas as candidaturas registradas legitimamente e, muito menos, para a cassação dos diplomas ou mandatos daqueles que legitimamente lograram êxito através da soberania popular.
Assim, a interpretação da norma que estabelece a cota gênero exige que a responsabilização decorrente da prática de fraude voltada a violar a cota de gênero não recaia indistintamente sobre todos que se lançam no processo eleitoral, devendo haver individualização hábil a permitir a responsabilização pela prática de fraude.
Diante de toda a celeuma que envolve a questão da cota de gênero, uma medida que se alinha aos princípios da soberania do voto, do aproveitamento do voto, da razoabilidade e proporcionalidade, é aquela que decota o ato fraudulento oriundo de fato superveniente ao processo ou decisão inerente ao registro, possibilitando o aproveitamento do resultado das urnas entre os candidatos que, ao fim, disputaram de fato e de direitos cargos eletivos, mas respeitada a proporção de cotas referentes aos candidatos que efetivamente estavam autorizados a concorrer, tudo de forma a limitar a nulidade apenas aos nomes excedentes, não amparados pela ausência de candidatas mulheres ou, no caso daquelas cuja fraude nos registros de candidaturas restaram comprovadas.
Assim, se apenas três candidatos homens estariam legitimados a participar do certame, os três mais votados têm seus respectivos votos validados, anulando-se apenas os demais, sem prejuízo da manutenção dos votos destinados à única mulher remanescente, com o recálculo do quociente partidário e respectivo reflexo no quociente eleitoral, garantindo, dessa forma, o prestígio à lei eleitoral e o repúdio à prática de atos de burla e infração à lei de cotas e, ainda, a valorização da vontade do eleitor que fez sua opção de voto, sempre prezando pelo que é considerado lícito e legítimo dentro do processo eleitoral.