Pornografia não consensual e a carência de tutelas jurídicas e emancipatórias de gênero

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09/04/2018 às 18:56
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4. CASOS EMBLEMÁTICOS NO BRASIL

Rose Leonel, Franciele dos Santos, Thamiris Sato, Julia Rebeca dos Santos e Giana Laura Fabi são os nomes escolhidos para representar milhares de casos em que as mulheres foram violadas em sua intimidade, todas vítimas de um fenômeno que obedece à condição imposta de inferioridade feminina. São casos que demonstram como uma exposição não consentida pode interferir de maneira desastrosa na vida pessoal, pois lida com um processo de estigmatização, independente se a exposição deriva de um ato de vingança de um ex-parceiro, ou não.

4.1. Rose Leonel:

A primeira história é de Rose Leonel. Ela era uma jornalista na cidade de Maringá (PR) quando tudo aconteceu. Rose terminou um relacionamento de quatro anos, em outubro de 2005, com Eduardo Gonçalves Dias, e em janeiro de 2006, ele enviou através de email, a mais de 15 mil pessoas, dentre eles colegas de trabalho de Rose, familiares e conhecidos da cidade, fotos da ex-parceira nua, juntamente com dados pessoais dela e dos filhos, adolescentes na época. As legendas das fotos tinham o objetivo de se fazer entender que o material pertencia a uma garota de programa. Posteriormente, essas fotos foram divulgadas em vários sites de pornografia (BUZZI, 2015, p. 44).

Ao falar sobre o crime, Rose diz que sofreu um assassinato moral e psicológico, que a levou a perder tudo. Seus filhos, inclusive, foram afetados. A cada dez dias o ex-companheiro disparava uma leva de fotos para quinze mil emails da região, além de ter impresso centenas de panfletos e feito cópias de CDs para distribuir no comércio, com o objetivo de consumar uma campanha contra ela (BUZZI, 2015, p. 45).

O ex-namorado agiu de forma premeditada, e foram três anos de violência virtual contra Rose, em que cada episódio de ataque os arquivos eram nomeados como “Capítulo 2, 3,4...” . Rose passou a receber dezenas de ligações de desconhecidos, por busca de programas sexuais. Uma das vezes ao acessar sua conta de email, havia um recado do chefe que dizia: “Não importa o que você faça entre quatro paredes, não traga isso para o trabalho”. Depois disso, Rose perdeu o emprego, desenvolveu um quadro de depressão e seus filhos foram atingidos de forma direta na escola e no convívio social (BUZZI, 2015, p. 45).

Rose ajuizou ação judicial contra Eduardo e ganhou o processo, sendo indenizada pelo ex-companheiro no valor de três mil reais. Contudo, as agressões não cessaram e se transformaram em perseguições e ameaças. Ao todo foram quatro processos. Em um deles, o ex chegou a ser condenado a cumprir pena de um ano, 11 meses e 20 dias de detenção, e a pagar R$ 1,3 mil mensais à Rose. E outro processo, o ex-companheiro foi condenado a pagar trinta mil reais de indenização por danos morais. Rose recorreu, pois ao todo ela já tinha gasto vinte e oito mil reais com despesas relacionadas aos processos (BUZZI, 2015, p.45).

Depois disso, Rose começou a ministrar palestras sobre o tema e criou a ONG sem fins lucrativos “Marias da Internet”, que age com a finalidade de disponibilizar profissionais especializados em crimes virtuais, como advogados, peritos digitais e psicólogos, para orientar as vítimas de pornografia não consentida. Rose tornou-se um símbolo de combate à pornografia não consensual. Ela foi uma das primeiras brasileiras a obter algum êxito judicial contra um ex-parceiro, nesse tipo de litígio. Para ela, trata-se de uma violência baseada no gênero, pois quando são vazados materiais íntimos de homens na internet, o efeito não é o mesmo, pois eles passam a ser mais valorizados em seus ciclos de convivência pela “virilidade” exposta (BUZZI, 2015, p. 46).

4.2. Francyelle dos Santos Pires

Francyelle dos Santos Pires, ou Fran, como ficou conhecida no país depois da exposição em 2013, foi o caso que mais repercutiu no Brasil. Ela teve vídeos íntimos compartilhados pelo ex-namorado, depois do término da relação. O material viralizou através do aplicativo Whatsapp, e rapidamente a identidade de de Franciyelle foi descoberta, o que fez com que sua vida pessoal virasse de cabeça para baixo. Até mesmo a sua filha foi exposta, uma vez que havia fotos da criança nas redes sociais (BUZZI, 2015, p. 47).

Francyelle registrou um boletim de ocorrência contra o ex-parceiro na Delegacia Especializada Atendimento à Mulher, em Goiânia (GO), e mesmo assim, a repercussão não parava de aumentar. Francyelle virou piada na internet através de um gesto que fizera no vídeo, sendo reproduzido inclusive por celebridades, em forma de diversão – ignorando-se a seriedade do acontecimento. Depois do episódio, Francyelle não conseguia mais emprego e também teve que parar de estudar (BUZZI, 2015, p. 47).

Sua rotina foi completamente alterada, sendo preciso inclusive, mudar sua aparência para não ser facilmente reconhecida. Francyelle era constantemente invadida no celular, nas redes sociais, e outros meios de comunicação, por estranhos em busca de programa. Apesar da repercussão negativa, Fran obteve apoio dos familiares e diversas páginas foram criadas como forma de solidarização a ela. Uma dessas páginas foi a “Apoio Fran”, em que há mensagens de amparo, atualizações sobre o caso e relatos de histórias semelhantes, com um número de 38 mil pessoas na época (BUZZI, 2015, p. 48 - 49).

Francyelle moveu ação criminal contra o ex-parceiro, buscando por condenação por injúria e difamação. Em outubro de 2014, aceitou acordo proposto pelo Ministério Público de prestação de serviços à comunidade por cinco meses. Ela afirma sentir grande sensação de impunidade com o acordo, pois o ex-parceiro saiu da situação, com a vida normal. Além disso, Francyelle buscou reparação cível por danos morais e defende a criação de uma lei para proteger outras mulheres em situação semelhante (BUZZI, 2015, p. 49 - 50).

4.3. Thamiris Mayumi Sato

Em vias de terminar o namoro em 2013, Thamiris Mayumi Sato começou a receber ameaças do namorado. Caso ela terminasse, ele divulgaria fotos íntimas dela. Terminada a relação, o ex-namorado passou a ameaçar Thamiris de morte e ela registrou boletim de ocorrência na Delegacia da Mulher em São Paulo. Depois desse fato, as ameaças continuaram e ele então espalhou fotos íntimas da ex-namorada em sites pornográficos, juntamente com seu perfil do Facebook (BUZZI, 2015, p. 50).

Ela descobriu que as fotos estavam circulando na rede, quando recebeu em pouco tempo, mais de 40 solicitações de amizade de desconhecidos no Facebook. E embora tenha se afastado dessa rede social, suas fotos agora estavam em vários sites pornográficos disponíveis para download e circulavam também no whatsapp. Ao procurar os pais do ex-namorado, não houve nenhum tipo de apoio, foi tida como ingrata, e recebeu o pedido para que retirasse a queixa contra o filho (BUZZI, 2015, p. 52).

Thamiris então usou a mesma rede social para publicar um desabafo como vítima. Em menos de vinte e quatro horas, sua história havia sido compartilhada mais de mil e seiscentas vezes. Thamiris posteriormente conseguiu ordem de restrição contra o ex-namorado, com fundamento na Lei Maria da Penha. Ao desabafar mais uma vez sobre o ocorrido, Thamiris afirma que a lei é necessária, mas não é suficiente. Para ela, a lei possibilita que o caso seja encaminhado à Justiça e, a partir disso, surja algum debate. Contudo, há uma deficiência na formação da sociedade e das instituições, que são estruturadas por machismo, racismo, homofobia e outras opressões (BUZZI, 2015, p. 53).

4.4. Júlia Rebeca dos Santos

Júlia Rebeca dos Santos, de 17 anos, representa um daqueles casos em que o desfecho se dá de forma trágica: a perda da própria vida. Em novembro de 2013, a adolescente de Parnaíba (PI) foi encontrada morta em seu quarto, com o fio da prancha alisadora de cabelo enrolado em seu pescoço. Horas antes de cometer o ato, Júlia deu indícios de que cometeria suicídio, nas redes sociais, pois suas publicações continham incontestável teor de melancolia, culpa e descrença (BUZZI, 2015, p. 53 - 54).

O que motivou Júlia a acabar com a própria vida, foi a repercussão da divulgação não autorizada de gravações em que aparecia fazendo sexo com seu namorado e uma amiga do casal. Inicialmente o vídeo teria sido filmado e pela própria adolescente e posteriormente compartilhado pela mesma com algumas pessoas que confiava. A polícia investigou ainda a participação de uma quarta pessoa envolvida (BUZZI, 2015, p. 54).

Depois do ocorrido, Júlia se tornou retraída e reprimida, inclusive demonstrando isso nas redes sociais. A outra menina que aparecia no vídeo tentou suicídio cinco dias após a morte de Júlia através de envenenamento. No entanto, mesmo com todos esses acontecimentos, a repercussão do caso não parava e Júlia era culpabilizada nas redes sociais (BUZZI, 2015, p. 54).

Uma semana após o suicídio de Júlia, um site intitulado “SP News” anuncia a venda online do vídeo íntimo que deu causa à culpabilização da adolescente, e consequentemente sua morte. O site cobrava R$ 4,90 pela disponibilização do material e previa ainda que a compra era segura, ao afirmar que o link da gravação era enviado diretamente para o email do comprador, sem o nome da fatura do cartão. Em contato com esse acontecimento, a família de Júlia ingressou com pedido de responsabilização criminal e civil do administrador (BUZZI, 2015, p. 55).

A polícia ainda investiga as circunstâncias da morte da adolescente, pois a distribuição de material pornográfico nessas circunstâncias é penalizada pelo art. 241 do Estatuto da Criança e do Adolescente. De acordo com esse dispositivo, está sujeito à pena de reclusão de quatro a oito anos e multa, os atos de “vender ou expor à venda fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente”. A polícia Federal também iniciou investigações de sites hospedados em provedores internacionais que permitiram a divulgação do vídeo. Apesar disso, não houve nenhuma responsabilização dos envolvidos (BUZZI, 2015, p. 56).

4.5. Giana Laura Fabi

Ocorreu, ainda, outro caso que reúne as mesmas características e as mesmas consequências da história de Júlia Rebeca Santos. Giana Laura Fabi, à época com dezesseis anos, foi encontrada morta, em sua casa em Veranópolis (RS), enforcada com um cordão de seda. Laura se suicidou porque também teve sua intimidade exposta nas redes sociais, depois de ser fotografada quando conversava com um amigo pelo skype e a pedidos dele, mostrou os seios para a webcam (BUZZI, 2015, p. 56).

A imagem de Giana ficou guardada por ele por muito tempo e a exposição aconteceu por motivo de vingança depois que Giana começou a namorar outro rapaz. A imagem viralizou rapidamente na internet e ela tomou conhecimento do fato através de sua prima, que relata a reação espantada de Giana, e a forma estranha como se despediu dela na última vez que conversaram. Giana tinha dito que ia fazer uma besteira, porque não queria causar vergonha à família. Depois disso, Giana publicou um desabafo no Facebook dizendo “que não ia mais um estorvo para ninguém, e iria dar um jeito naquilo” (BUZZI, 2015, p. 56).

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Quando a prima desconfiou, e buscou entrar em contato com Giana, já era tarde. Ela não havia comentado nada com a família, e o seu maior medo era que sentissem vergonha de sua atitude, pois Veranópolis é uma cidade pequena e, tipicamente por ser assim, tudo se espalha com muito facilidade, conforme relatou o irmão de Giana, Jonas Fabi. Após o suicídio, desconhecidos a condenaram no Facebook, com a afirmação de que “seu fim seria merecido”. A adolescente sofreu slut-shaming, muito comum nesses casos, principalmente quando a vítima ainda não é adulta, e as incertezas e ansiedades típicas da idade, se convergem em culpa (BUZZI, 2015, p. 57).

O suicídio é geralmente associado a características de fraqueza, covardia, e egoísmo pela sociedade. Ele também é visto como imoral, e individual. Todavia, é um fato condicionado, não raro, a fatores externos ao indivíduo, como a força exercida pela coletividade, através do estigma, que corrompe a autonomia. Pode se dizer, que o suicídio é uma espécie de coerção indireta exercida pelo outro. Os dois casos relatados de pornografia não consensual em que o desfecho foi tirar a própria vida, obedecem a fatores externos comuns instigados pela sociedade, como o medo, a culpa e a vergonha. Por isso o suicídio não deve ser tomado como uma ação puramente intrínseca ao indivíduo. As mortes de Giana e Júlia seriam nesse sentido, uma tentativa clemente de se auto-punir, em busca de uma remissão inexistente por parte da sociedade.

4.6. Casos análogos:

As histórias anteriormente apresentadas possuem todas dois pontos de convergência: além obedecer a uma condição imposta de inferioridade da mulher, a violação da intimidade é motivada pela vingança. São casos que representam milhares de vítimas, mas, do mesmo modo inúmeros casos com as mesmas repercussões derivam de outros motivos, como o simples prazer e a auto-afirmação pela necessidade de estar incluído em determinado grupo. Categorizar essa questão é afirmar que a excitação masculina e a humilhação feminina obedecem a uma regra de proporção, posto que, ser aceito em um grupo, e se auto-afirmar em virilidade, requer a obediência a um sistema predominante: a autoridade versus submissão.

O divertimento e a auto-afirmação são o fios condutores de dois outros casos: a criação de um grupo no whatsapp chamado “Ousadia e Putaria”, no Rio Grande do Sul, e a lista denominada “Top 10”, em São Paulo. São dois casos que se baseiam na pornografia não consensual como conduta, mas que não possuem como origem motivacional, a vingança, apesar de sempre haver espaço para ela.

O primeiro caso acontece em Encantado – cidade do interior do Rio Grande do Sul. Em 2015, foi criado um grupo de whatsapp com o nome “Ousadia e Putaria”, que contava com cerca de cem participantes, cujo objetivo era compartilhar vídeos de pornografia, fotos e conversas privadas de meninas e mulheres da pequena cidade e da região. Era previsto que as garotas consensualmente enviassem fotos para os membros, devendo essas serem acessadas somente pelos integrantes do grupo. No entanto, diversas gravações não autorizadas pelas protagonistas começaram a surgir, até que perdeu-se o controle dos conteúdos e os materiais passaram a ser divulgados em diversos outros meios (BUZZI, 2015, p. 59).

Muitas mulheres foram à policia registrar boletim de ocorrência, já que nem o conhecimento da existência do grupo elas tinham. Uma delas, inclusive, descobriu que teve suas fotos divulgadas após o encaminhamento do disco rígido do seu computador para manutenção especializada. À medida que as denúncias aumentavam, a culpabilização das vítimas também. Jornais locais, e até mesmo o Ministério Público, corroboraram para a institucionalização da violência (BUZZI, 2015, p.60).

Diante desses acontecimentos, diversas mulheres de Encantado se uniram para a criação de um coletivo feminista, a fim de repudiar a exposição e as declarações das autoridades locais, bem como prestar apoio às vítimas. O caso continuou a repercutir, e chegou ao Legislativo nacional, mobilizando diversos congressistas e chamando a atenção para o enfrentamento dessa forma de violência (BUZZI, 2015, p. 62).

No mesmo sentido, o segundo caso é mais um exemplo claro de violação da intimidade sexual em prol da manutenção de uma postura de submissão da figura feminina manifesta como prazer. As listas, ou rankings, conhecidos como “Top 10” foram uma iniciativa de alunos de escolas do estado de São Paulo em 2015, para a divulgação semanal, de nomes de garotas, classificadas como “as 10 mais vadias”. Junto às essas listas, eram divulgadas fotos íntimas que foram recebidas pelos respectivos namorados, e repassados aos amigos. Se a menina permanecia por mais de uma semana no ranking, ela subia de colocação (BUZZI, 2015, p.63).

As listas atravessaram os muros das escolas, e os bairros vizinhos passaram a tomar conhecimento da intimidade das adolescentes, bem como da imputação negativa a que estavam sendo submetidas. Muros com xingamentos às vítimas foram pixados e várias delas passaram a enfrentar um quadro de depressão, intenções suicidas e, consequentemente, evasão escolar (BUZZI, 2015, p.64).

Após esse episódio, o grupo do Coletivo Mulheres na Luta prestou solidaridade às vítimas e um “grafitaço” foi realizado com o apoio de alguns alunos e moradores da região a fim de amparar as vítimas e promover uma discussão no âmbito da educação, já que essas práticas, cada vez mais reiteradas, demonstravam a evidência do surgimento e da manutenção de um fenômeno social influenciado por diversas questões que precisam ser visibilizadas e debatidas, em um primeiro passo para o seu enfrentamento (BUZZI, 2015, p. 64).

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Sobre a autora
Janaína Fernanda de Lima

Bacharel em direito, concurseira.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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