Pornografia não consensual e a carência de tutelas jurídicas e emancipatórias de gênero

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09/04/2018 às 18:56
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3. DA PORNOGRAFIA NÃO CONSENSUAL

No mundo contemporâneo é inimaginável que as relações se desenvolvam sem o amparo das tecnologias, pois elas estão presentes cada vez mais no cotidiano da população mundial, influenciando a maneira como as pessoas vivenciam suas experiências sociais. A utilização da internet dinamizou o dia a dia das pessoas em diversos sentidos, e a rede foi usada inclusive para causas políticas, especialmente nos países muçulmanos, como Egito e Síria, em que os protestos se fortaleceram através de redes sociais como o Facebook, Twitter e Youtube.

Assim, a partir desse cenário de utilização indispensável da rede, a ONU declarou, em 2011, o acesso a tal tecnologia como um direito humano básico, em razão da sua real necessidade. O exercício de alguns direitos fundamentais efetivamente já depende de tal acesso. A exemplo disso está o acesso ao exercício da liberdade de expressão, do acesso à educação, da expressão artística, e outros, que se tornam mais efetivos quando explorados através do acesso à internet (ZWICKER; ZANONA, 2017, p. 1). No Brasil existe inclusive, um projeto de Emenda Constitucional, que acrescenta a acessibilidade universal à internet, no artigo quinto da Constituição Federal, em que trata da inviolabilidade do direito à vida, à igualdade, à segurança e à propriedade (BRASIL, 2011).

As redes sociais representam essa dinamização de modo acentuado, uma vez que, cada vez mais, elas atraem para si usuários e serviços. Elas são plataformas derivadas da internet, que ganharam destaque em 2004, com a criação do Flickr, e posteriormente, Orkut e Facebook. Elas funcionam como instrumentos aptos a difundir a comunicação através de textos, sons, imagens e vídeos. Além disso, estabelecem um campo personalizado de informações individuais capazes de elaborar um agrupamento de “comunidades virtuais”, para a facilitação da troca de informações (DA SILVA, 2015, p. 2). Contudo, essas difusões de dados facilitados propiciam uma exposição mais ampla do indivíduo, que, se deparada com má-fé, repercutem negativamente na esfera da personalidade, gerando discussões e desafios no âmbito do direito.

Isso quer dizer que apesar de úteis e de facilitar a troca de informação e debate, as redes sociais e outras áreas da comunicação digital tem sido além disso, um espaço de violência contra a mulher. O fácil acesso, a possibilidade do anonimato, a velocidade da divulgação de informações, entre outras situações, propiciam a criação de um campo fértil de uma nova modalidade de violência: a “Pornografia sem Consentimento” ou popularmente “Reveng Porn”, que quer dizer “Pornografia de Vingança” (LELIS; CAVALCANTE, 2016, p. 5). O termo americano originalmente foi concebido em 2007 através da inclusão no dicionário online dos Estados Unidos, o Urban Dictionary. No Brasil, a expressão “manda nude” se tornou popular em 2015, e também caracteriza o ato de enviar fotos íntimas (nuas ou seminuas) por meio de aplicativos de mensagens.

A despeito de os termos “pornografia de vingança” e “pornografia não consensual” serem utilizados como sinônimos, a pornografia de vingança representa uma espécie do gênero “pornografa não consensual”. Entende – se que o fenômeno é melhor conceituado através da utilização dos termos: pornografia sem consentimento, exposição pornográfica não consentida, ou simplesmente pornografia não consensual; uma vez que facilita a identificação do fenômeno de forma mais abrangente, a fim de contemplar também situações em que não haja vingança como motivação (SYDOW; DE CASTRO, 2017, p. 37).

Ademais, a pressuposição de vingança lida com uma linha muito tênue de compreensão. Isso porque a utilização do termo pode comunicar a inclusão de julgamento de que aquilo é condenável sob o aspecto da moral. Utilizar o termo vingança também pode pressupor que a mulher fez algo de errado, e o sujeito está se vingando.

Não é incomum a utilização do termo Sexting. Essa nomenclatura surgiu através da contração entre as palavras sex (sexo) e texting (enviar mensagens de texto). Assim, o termo que resulta consiste na prática de enviar mensagens com conteúdo sexual (textos, fotografias e/ou vídeos), produzidos geralmente pelo próprio remetente, que são disseminados através do celular, ou outro meio eletrônico; com ou sem o consentimento desta. O sexting textual ou de sons é um assunto novo, que vem despertando a apreciação de estudiosos no assunto. A identificação da autoria muitas vezes se torna exposição mais danosa do que um nu parcial, por exemplo. Isso se justifica porque há o detalhamento de preferências sexuais, ou descrições pormenorizadas do ato sexual (SYDOW; DE CASTRO, 2017, p. 48-49).

A manifestação da nova prática de violação do consentimento e da intimidade de outrem, atinge principalmente o sexo feminino, apesar de qualquer gênero ser passível de vitimização por ausência de consentimento na divulgação de informações íntimas. Nesse sentido, além de exposição e constrangimento sofridos do ato da divulgação, os danos enfrentados pelas mulheres são muito mais devastadores do que os sofridos pelos homens, dada a estigmatização proveniente da cultura sexista, e causa três sofrimentos imediatos: o da traição da pessoa envolvida, a vergonha da exposição e a punição social. As práticas geralmente se reportam à divulgação e registro de conteúdos audiovisuais de pessoas em situações de sexo ou nudez, com a ausência de consentimento das mesmas (LELIS; CAVALCANTE, 2016, p. 10). Apesar de ser caracterizado como fenômeno recente com relação às tecnologias, mais precisamente associado com as redes sociais, a prática em si, pode se dar através de vários meios:

A exposição pornográfica não consentida, como disseminação não autorizada de imagem de nudez total, parcial ou em ato sexual, ou, ainda, gravação de sons produzidos em tais contextos, pode se dar por diversos meios, desde correspondências anônimas para familiares e empregadores, afixação de outdoors, impressão para livre distribuição em cartazes, folhetos ou simples reproduções fotográficas, inclusão em anúncios de prostituição, em classificados de jornal e na virtualidade. Pode incluir ou não dados completos que permitam a identificação da vítima e possibilidade de contato o que fortalece ainda mais o caráter ofensivo (SYDOW; DE CASTRO, 2017, p. 48).

Nos casos em que a motivação do ato de expor a intimidade sexual de alguém é a vingança, ela costuma ser elemento pressuposto e originário da conduta, mas nem sempre ela contextualiza a dimensão do ato, depois de “viralizar”. A viralização é um termo que caracteriza a grande repercussão de alguns conteúdos expostos na internet. Os usuários compartilham tais conteúdos de forma constante e simultânea, como se fosse uma epidemia. Assim, a viralização acaba se transformando em um elemento intensificador da dinâmica da exposição na internet, uma vez que a pessoa se torna exposta de forma contínua e reiterada. É importante frisar que a vingança exige para si o mínimo de vínculo, contudo, o ato toma grandes proporções através do compartilhamento daqueles que não possuem nenhuma relação com a pessoa exposta.

Para saber se a exposição pornográfica não consentida constitui um ato de vingança é necessário analisar a fonte de captura, a forma de circulação e a motivação. Conforme a fonte ela pode ser: oriunda da própria vítima, oriunda do parceiro ou da parceira sexual, oriunda de terceira pessoa, ou de origem ignorada. Conforme a obtenção do material: consentida ou não consentida. Conforme a permissão para a divulgação do material pode ser: de divulgação consentida, de divulgação parcialmente consentida, de divulgação não-consentida, ou de divulgação proibida. Conforme a forma da publicação pode se apresentar: por vingança, para humilhação da vítima, por vaidade ou fama do divulgador, como objetivo de chantagem/ vantagem, ou obtenção de lucro (SYDOW; DE CASTRO, 2017, p. 38-39). A importância da diferenciação entre os conceitos reside não somente na compreensão do termo, mas também no auxílio ao legislativo e ao judiciário.

É preciso observar que na formulação da tipologia, se não consideradas todas as variáveis apresentadas na classificação, há risco de ineficácia do resultado pretendido, seja pela tentativa de cobertura muito ampla de diversas categorias em um único tipo penal, o que invariavelmente acabaria por resultar em ferimento ao princípio da estrita legalidade, seja pela definição de condutas específicas demais, relegando ao esquecimento práticas criminosas mais comuns e de maior alcance social. A classificação também se destina a facilitar aos operadores do Direito a percepção da gravidade dos fatos, a qual deve ter consequência concreta tanto na fixação da pena na esfera penal, quanto na fixação do quantum indenizatório no âmbito penal, conforme previsão do artigo 387 do Código de Processo Penal, e no âmbito cível nas ações de reparação por danos materiais, morais e existenciais (SYDOW; DE CASTRO, 2017, p 46-47).

Independente da motivação, a violência que deriva de tal prática incide na violência psicológica, pois a vítima estará sujeita a enfrentamentos sociais, que afetam o próprio núcleo familiar, ciclo de amizades e até mesmo a vida profissional. Há casos em que as providências tomadas vão desde encerramento de perfis em redes sociais, a mudança de emprego, troca de escola, mudança de cidade e até alteração do nome através das vias judiciais.

Além da estigmatização social, há o risco eminente de que algozes virtuais, se transformem em agressores reais. Não é incomum que de forma paralela ao assédio e perseguição cibernéticos, as vítimas passam a sofrer perseguições ou ameaças, que são concretizadas por vezes na violação do corpo, ou até mesmo levadas às últimas consequências, como no feminicídio (SYDOW; DE CASTRO, 2017, p .80).

Pode ocorrer também a Sextortion, que é uma modalidade especial de extorsão cibernética, que não envolve valores patrimoniais como moeda de troca. O que ocorre é o uso do poder sobre o material íntimo, em troca de favores sexuais (SYDOW; DE CASTRO, 2017, p . 34-36). Em todos esses casos, a vítima costuma enfrentar isolamentos, distúrbios fóbicos e culpa - o que culmina na depressão, causando a necessidade de acompanhamento profissional psicológico, uma vez que não é incomum as consequências chegarem ao extremo do suicídio (MECABÔ; COLUTTI, 2015, p. 13-14).

As vítimas dessa prática de exposição não consentida da intimidade veem-se expostas na internet para o acesso livre a qualquer interessado, e passam a ser humilhadas, intimidadas, perseguidas e assediadas, pois encontram-se em um ciclo conhecido pela teoria feminista como slut shaming. Esse tratamento não possui tradução para o português, e pode ser definido como o ato de induzir uma mulher a se sentir culpada ou inferior com relação a prática de certos comportamentos sexuais que não cumprem com as expectativas tradicionais ligadas ao gênero a que é identificada pela sociedade. Podem ser incluídos nesses comportamentos, a depender da cultura, ter um grande número de parceiros sexuais, praticar sexo casual, ou possuir gostos e fantasias peculiares ou excessivamente sexuais.

Essa exposição é potencializada pelo espaço cibernético. Ele age como uma estrutura social que reúne um conjunto de relações interpessoais e vinculam indivíduos, grupos e instituições de forma fluida. A globalização e as comunicações em rede alteraram a noção de tempo e espaço do ser humano, e alargaram o sentimento de não pertencer. O anonimato, a agilidade e o fluxo de informações afastam o caráter pessoal e individualizante a que é atribuída a divulgação de material íntimo não consentida, e o termo “vingança” se torna, mais uma vez, difícil de ser utilizado de forma exclusiva, de forma que cada compartilhamento compactua com o crime (BARQUETTE, 2015, p. 4).

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Muitos materiais de conteúdo sexual obtidos ou compartilhados sem autorização, são repassados como material pornográfico, e a principal motivação é o prazer, a excitação dos usuários e o lucro dos canais de compartilhamentos específicos. Sites brasileiros de pornografia como“flagrasamadoras.net”,“novinhasdozap.com”,“pornocarioca.com”e“safadasamadoras.com”, possuem a categoria “Caiu na Net” para que possam ser divulgados conteúdos não consensuais. Um desses domínios, por exemplo, informa que seus vídeos foram obtidos através de celulares perdidos, vídeos de sexo enviados por ex-namorados, namorados traídos “cornos mansos” e “flagras” (DA SILVEIRA; BELELI, 2015, p. 2).

A pornografia aliás, é um espaço onde há manifesta violência contra a mulher. O documentário Hot Girls Wanted, da rede de streaming de materiais audiovisuais, Netflix, mostra de modo claro a objetificação da mulher ao narrar como as atrizes chegam à indústria da ponografia e se submetem a práticas sexuais violentas, como o chamado “Forced Facial”, ou “Facial Abuse”, que é uma categoria de sexo oral forçado, até que o vômito seja provocado.

Desse modo, a violência de gênero assume diversas manifestações, que são reproduzidas através de vários instrumentos, como as instituições e a mídia. A pornografia não consensual, como uma vertente da violência de gênero, não é fato recente, mas sua visibilidade como fenômeno social relacionado com as novas tecnologias de informações e comunicações (NTIC’s), e especificamente vista como espécie da violência psicológica, é algo novo.

3.1. Processo de visibilidade da Pornografia Não Consensual

O fenômeno de divulgar imagens privadas com caráter erótico ou sexual sem consentimento não tinha denominação específica e os primeiros casos que ganharam visibilidade na imprensa, em discussões sociais, em ambientes acadêmicos e na justiça datam de meados dos anos setenta. Foi nessa época que a revista Hustler passou a contar com a seção Beaver Hunt, em que Larry Flynt passou a publicar fotografias não profissionais de mulheres nuas, a partir do envio de leitores, que obtinham o pagamento de cinquenta dólares, no caso de fotografia selecionada (SYDOW; DE CASTRO, 2017, p. 51).

A seção se tornou o primeiro canal de difusão popular, com alta repercussão a favor da prática de pornografia involuntária com a finalidade de lucro, diversão ou vingança. A revista possuía um precário controle de consentimento, e o primeiro alvo foi LaJuan Wood e seu marido Billy Wood. O casal registrou fotos íntimas em um acampamento que fizeram, e após a revelação em estabelecimento profissional, armazenou as fotografias na gaveta do quarto de modo que o acesso fosse somente para o casal. No entanto, as fotografias foram subtraídas pelos vizinhos Steve Simpson e Kelley Rhoades, que enviaram uma das imagens à coluna Beaver Hunt. Houve o preenchimento de formulário de consentimento, inclusive, com informações verdadeiras sobre LaJuan, como identidade, somadas a informações falsas como idade, endereço e a fantasia sexual de ser amarrada e penetrada por dois motociclistas. Além disso, houve a falsificação da assinatura de LaJuan (SYDOW; DE CASTRO, 2017, p 51-52).

O casal tomou conhecimento da publicação através de amigos e após isso recebeu inúmeras ligações obscenas, culminando em um intenso sofrimento psicológico. LaJuan Wood processou a revista por difamação e invasão da privacidade, e a Corte em primeira instância reconheceu a culpa da revista diante do precário sistema para verificação do conteúdo. LaJuan foi indenizada no valor de cento e cinquenta mil dólares, e Bill, no valor de vinte e cinco mil dólares. Contudo, a decisão de Bill foi reformada pelo Quinto Circuito da Corte de Apelação dos Estados Unidos por entender que a sua privacidade não foi pessoalmente invadida. Depois disso, a revista foi alvo de inúmeras ações de indenização devido à seção Beaver Hunt (SYDOW; DE CASTRO, 2017, p 53).

No ano 2000, o músico, escritor e pesquisador italiano Sérgio Messina notou um crescimento entre usuários do Usenet, que representa uma das mais antigas redes de comunicação por computador, uma nova modalidade de pornografia, que chamava a atenção pela autenticidade e realismo, diferentemente dos tradicionais hardcore e softcore. É a chamada “realcore pornography”, que possui tradução livre para pornografia amadora. Essa nova modalidade de pornografia correspondia a fotos e vídeos de ex-namoradas dos usuários do site, que foram compartilhadas entre os membros do canal de comunicação (BUZZI, 2015, p. 30).

O realcore é a junção de dois termos em inglês: Softcore (sexo simulado) e Hardcore (sexo real gravado). Ele instigou usuários, e começaram então a surgir sites e blogs alimentando o estilo de comercialização da pornografia. Em 2008, um dos maiores sites de pornografia, o Xtube, informou em sua página que estava recebendo inúmeras reclamações semanais de mulheres expostas em vídeos compartilhados no site, em que a publicação não teria sido dada de forma consentida, pelo contrário, através de violação da confiança por seus ex-parceiros. Nota-se três tipos de perfis divulgadores: os que divulgam o conteúdo publicamente motivados por vingança, os que divulgam o conteúdo por fetiche, e os que divulgam por lucro (GOMES, 2015, p. 1).

Todavia, apesar da multiplicidade de casos esporádicos pelo mundo todo, a Pornografia Não Consensual atraiu a atenção da mídia internacional somente após a criação do site “IsAnyoneUp” que possui tradução livre para “Tem alguém afim?”. O site foi criado pelo australiano Hunter Moore, que se intitulava “especializado em pornografia de vingança”. Era permitido aos usuários o envio de fotos de pessoas nuas, na maioria dos casos mulheres, e para validar a disponibilização, o site somente exigia a comprovação de que a vítima era maior de idade. Além de disponibilizar imagens e vídeos sem o consentimento da vítima, o site incluía o nome completo, o emprego, endereço, e perfis de redes sociais (BUZZI, 2015, p. 30-31).

O site possuía uma média de 350 mil visualizações diárias, o que gerava um lucro mensal de trinta mil dólares. Moore ficou conhecido como o homem mais odiado da internet. Ao defender-se das acusações de que causava danos às pessoas, Moore afirmava que não as estava ferindo, já que eram elas que feriam umas às outras, e que ele agia legalmente protegido pelo parágrafo 230 do Communications Deceny Act (CDA), que isenta de responsabilidade os proprietários de websites por material publicado por terceiro. Moore continuou agindo através da impunidade, até que se deparou com a ativista Charlotte Laws – mãe de umas das vítimas. Laws recebeu o apoio do Facebook, do grupo Anonymous, do Federal Bureal of Investigation (FBI) e de uma rede de hackers ativistas, que invadiu o sistema de Moore em 2012 fazendo com que o site saísse do ar. Depois disso, em 2014, Moore foi preso sob acusações de crimes federais previstos no Computer Fraud and Abuse Act, que incluíam invasão de contas de email, além da contratação de um hacker para invadir contas e obter material privado. Sua sentença se deu em 2015, e o “homem mais odiado a internet” foi condenado à dois anos e meio (SYDOW; DE CASTRO, 2017, p. 58-61).

Em 2012, outro site com a mesma finalidade movimentou a internet. Kevin Bollaert criou o site UgotPosted (“Você foi postado”, em tradução livre), em que os usuários eram convidados a postar imagens íntimas de homens e mulheres, juntamente com seus dados. No entanto, Kevin foi mais ousado e associou o site ao domínio ChangeMyReputation.com (“Alterar minha reputação”, em tradução livre), que se destinava à extorsão das pessoas que tivessem material íntimo exposto no UgotPosted. O serviço de remoção variava em torno de trezentos dólares, recebendo em cerca de oito meses, mais de dois mil pedidos de remoção, e faturando cerca de trinta mil dólares. Bollaert foi condenado em vinte e sete acusações, que incluem furto de identidade e extorsão, com sentença de dezoito anos de prisão, que posteriormente foi reduzida para oito anos, seguidos de dez em liberdade condicional. Além da prisão, foi multado em quatrocentos e cinquenta mil dólares pelo estado da Califórnia (EUA), e sentenciado a pagar dez mil dólares para cada uma das vítimas (SYDOW; DE CASTRO, 2017, p. 61).

Em 2010, a publicação de conteúdo online motivado por vingança recebe a sua primeira sentença de prisão. Joshua Ahby, de vinte anos, da Nova Zelândia, não aceitou o fim de um relacionamento e acessou a conta de sua ex-namorada. Alby alterou a foto do perfil, por uma foto nua da ex, recebida enquanto ainda namoravam. Apesar de o perfil ter sido excluído após doze horas, o conteúdo já havia viralizado nas redes sociais (MAIL ONLINE, 2010).

Em 2012, o grupo Cyber Civil Rights Initiative (“Iniciativa para os Direitos Virtuais”, em tradução livre) dá inicio a uma campanha online contra a prática da pornografia não consensual. O grupo administra em paralelo o site EndRevengPorn, fundado por Holly Jacobs – vítima da pornografia de vingança. O objetivo do grupo é divulgar abaixo-assinados online a fim de criminalizar tal ato, por considera-lo violação dos direitos civis (CYBER CIVIL RIGHTS, 2017).

Em 2014, em Israel, a divulgação de pornografia não consensual passa a ser tipificada como crime, com prisão de até cinco anos para os condenados, que passam a ser tratados como criminosos sexuais. Trata-se do primeiro país a criminalizar tal conduta, e a motivar outros países à não tolerância da prática nociva (YAAKOV, Yifa, 2014).

No Brasil, em 2015, o Governo Federal promoveu o “#HumanizaRedes – Pacto Nacional de Enfrentamento às Violações de Direitos Humanos na Internet”. É uma iniciativa que visa promover segurança na rede, e ir contra violações de Direitos Humanos que se manifestam online. O programa é composto por três eixos de atuação: denúncia, prevenção e segurança, com o intuito de construir um campo democrático e livre de intolerância (HUMANIZA REDES, 2017).

Após vários acontecimentos alcançados pela mídia e pelos debates de iniciativa de movimentos feministas, houve a exposição de inúmeras falhas reproduzidas por empresas de serviços online e redes de relacionamento virtual. A questão se tornou uma pauta prioritária, e motivou várias empresas a editarem políticas de uso mais severas atinentes ao compartilhamento de material pornográfico.

O Twitter alterou sua política, e proibiu a publicação de fotos íntimas ou vídeos que tenham sido tirados ou distribuídos sem o necessário consentimento das pessoas envolvidas. Aqueles usuários que tiverem material publicado online sem a autorização podem recorrer à empresa e o material será retirado e a conta da pessoa que compartilhou será bloqueada (SUPORTE TWITTER, 2017).

O Instagram, também alterou suas políticas. Atualmente somente é permitido o compartilhamento de fotos e vídeos pelo próprio usuário ou de reprodução permitida e são proibidas imagens de nudez. A rede conta com mais de trezentos milhões de usuários (SUPORTE INSTAGRAM, 2017).

O Facebook já permite denunciar imagens que foram compartilhadas sem a autorização da pessoa exposta, marcando as mesmas como “uma imagem nua minha”. Depois disso, há a atuação de uma equipe especializada da ferramenta social, que revisa a denúncia e a imagem, podendo remover a imagem e até mesmo retirar do ar a conta que compartilhou. Há depois disso, a utilização de uma nova tecnologia que compara fotos para impedir de modo automático que a imagem seja compartilhada novamente no Facebook e em outros sites de relacionamento que são de mesma propriedade (SHERMAN. Carter, 2017).

O Google também moveu esforços para alterar a política de compartilhamento de pornografia não consentida. A empresa resolveu mudar a política do seu buscador, removendo os resultados relacionados à pornografias não consensuais. A própria pessoa pode solicitar que buscas relacionadas com o conteúdo, sejam excluídas da rede (SUPORTE GOOGLE, 2017). Anteriormente, o Google somente aceitava essa solicitação através de ordem judicial. Não é a primeira vez que o Google permite a retirada de informações relacionadas aos seus usuários. Em 2014, uma decisão da alta corte da União Europeia definiu que toda pessoa tem o “direito de ser esquecida na rede”, ordenando a exclusão de dados indesejados, a pedido de usuários (SETTI, Rennan, 2014).

3.2. Direito ao esquecimento

O direito ao esquecimento corresponde ao direito que determinado indivíduo possui de não permitir que um fato ocorrido em determinado ponto de sua vida, se torne objeto de acesso do público geral, gerando-lhe inúmeros transtornos pessoais, que levam ao sofrimento (FONTENELE, 2014, p.1). Esse direito começou a ser discutido antes mesmo de a internet se tornar esse vasto canal de comunicação popular. Casos como o da Chacina da Candelária serviram de impulso para estabelecer os parâmetros do direito ao esquecimento no país (AMARAL; CHAVES, 2016, p. 83).

Em 2006, o programa Linha Direta – Justiça exibiu um episódio apontando um indivíduo já inocentado, como co-autor da Chacina da Candelária. O fato reacendeu uma repercussão muito negativa na vida do cidadão, que resolveu ingressar com uma ação de indenização, pelos danos sofridos com relação à imagem e à privacidade (AMARAL; CHAVES, 2016, p. 83).

Com a popularização da internet, o direito ao esquecimento se tornou novamente discutido, e assim surgiu na Europa o “right to be forgotten” (direito a ser esquecido), em razão da sua real importância, visto que o cyberespaço torna as notícias e informações “eternizáveis” com muita facilidade. Diante de casos relacionados com a pornografia de vingança, o assunto prospera ainda mais, uma vez que o fenômeno de exposição não consentida se mostra cada vez mais recorrente e preocupante (AMARAL; CHAVES, 2016, . 81).

Não há uma regulamentação específica sobre o direito de esquecimento. Ele emana implicitamente da proteção à imagem, à vida privada e à intimidade do ser humano – relaciona-se com a dignidade da pessoa humana e com a proteção à identidade pessoal. Durante a VI Jornada de Direito Civil através do Conselho da Justiça Federal em 2013, aprovou-se o enunciado 531 que estabelece: “A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento” (AMARAL; CHAVES, 2016, p. 85). A justificativa do enunciado é a seguinte:

Os danos provocados pelas novas tecnologias de informação vêm-se acumulando nos dias atuais. O direito ao esquecimento tem sua origem histórica no campo das condenações criminais. Surge como parcela importante do direito do ex-detento à ressocialização. Não atribui a ninguém o direito de apagar fatos ou reescrever a própria história, mas apenas assegura a possibilidade de discutir o uso que é dado aos fatos pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados (BRASIL, 2013).

Diante da elaboração do enunciado, entendeu-se que a justificativa se referiria a dados pretéritos nos meios de comunicação, especialmente na internet. Contudo, deve ser aplicado também a dados atuais do indivíduo, principalmente nos casos de pornografia não consensual, em que há a reiterada prática de exibição e compartilhamento de conteúdos privados. Isso porque o cyberespaço tem se tornado uma espécie de júri instantâneo, que ameaça importantes direitos de personalidade. Trata-se, assim, de um dos maiores desafios da proteção à privacidade, não necessitando de se estabelecer um lapso temporal entre o fato exposto e a exposição (AMARAL; CHAVES, 2016, p. 85-86).

Ademais, quando há a colisão de princípios, como o direito à privacidade e o da informação, por exemplo, na pretensão de se aplicar o direito ao esquecimento, não se deve usar critérios técnicos de solução de conflito de normas, bem como o hierárquico, o temporal e o da especialidade. O julgador deverá se utilizar da técnica da ponderação no caso concreto, de normas, valores ou interesses. Nessa senda, as decisões têm sido no sentido de se fazer prevalecer o direito de privacidade e intimidade, em detrimento do direito de informação, uma vez que o cyberespaço tem alargado o fluxo informacional (BARROSO, 2004, p. 9).

3.3. As estatísticas da pornografia não consensual

A pornografia não consensual não é fenômeno recente, mas somente nos últimos anos alcançou alguma visibilidade a ponto de se tornar necessário estabelecer-se um campo qualificador de violência de gênero, dado ao fato que de que as mulheres representam uma percentagem discrepante das vítimas. Os dados levantados pela organização “EndRevengePorn” , em 2014, apontam que um total de 90% das pessoas que alegaram terem sido vítimas de pornografia não consensual eram mulheres. Destas, 57% afirmaram que foram violadas pelos seus ex-companheiros (END REVENGE PORN, 2013).

O Brasil também possui um canal de acolhimento voltado para vítimas de crimes que ocorrem no ambiente virtual. A Safernet Brasil não possui fins lucrativos, e é integrada por profissionais de várias áreas do conhecimento, com o objetivo de combater a pornografia infantil na internet e outros crimes violam os direitos humanos. A organização possui parceria com a Polícia Federal, com o Ministério Público e com entidades privadas. O acolhimento acontece através do serviço Helpline Brasil, que constitui um canal de esclarecimento sigiloso e sem custos, cujo objetivo é orientar vítimas de violência online, através de uma equipe multidisciplinar (SAFERNET BRASIL, 2017).

Segundo dados da organização, em 2014, 81% das pessoas que pediram ajuda à ONG eram mulheres com faixa etária de 13 a 25 anos. E apesar do aumento da denúncia, ela representa menos de 20% dos episódios. Em 80% dos casos, as pessoas têm vergonha do acontecimento. Nesse mesmo ano, dos 1.225 pedidos de ajuda atendidos pelo canal de acolhimento, 224 eram de sexting, figurando como o principal tópico. As mulheres representaram 67 dos 78 atendimentos realizados pelo chat. Os dados mais que dobraram com relação aos dois anos anteriores, representando um aumento de 120% (COMPROMISSO E ATITUDE, 2015).

Ainda de acordo com dados da mesma organização, o número de vítimas do vazamento de conteúdo íntimo, como imagens de nudez ou sexo, caiu ao longo do ano de 2016. Neste ano, foram registrados 301 casos, representando 6,5% a menos do que os 322 registrados em 2015. As justificativas pra tal redução, segundo a organização, podem estar relacionadas com a tomada de conhecimento da legislação já existente, como por exemplo, o Marco Civil e Lei Carolina Dieckmann. Outra possibilidade é a ameaça de responsabilização veiculadas por sites de relacionamento, que recentemente tiveram que tomar iniciativas no sentido de coibir essas práticas. Os casos de Cyberbullying, por outro lado, cresceram, pois chegaram a 312, representando 17% a mais do que os 265 registrados em 2015. O Cyberbulling também se manifesta através da tecnologia digital, para a perpetração de amedrontamento e violência em suas diversas formas, geralmente contra minorias (COMPROMISSO E ATITUDE, 2017).

No ano de 2012 foi realizado um estudo intitulado: “Sexting no Brasil – Uma ameaça desconhecida”. Foram entrevistados cerca de 2 mil brasileiros, entre homens e mulheres, acima de 18 anos, revelando que 32% dos homens entrevistados já mandaram fotos de outras pessoas nuas ou seminuas. Com relação às mulheres, somente 10%. E dentre os que alegaram terem tido problemas com o envio desses conteúdos, 60% dos homens afirmaram que continuaram enviando conteúdos sexuais próprios. Enquanto somente 15% das entrevistadas compartilham da mesma opinião (ECGLOBAL SOLUTIONS, et al, 2013).

Os dados desse estudo oferecem espaço para reflexões. Os homens produzem mais material próprio em razão da liberdade de sexual que lhes é conferida. A vivência da sexualidade masculina é, de fato, incentivada. Daí não lhes escapa a segurança de agir sob um comportamento normal, esperado, sem julgamento moral. A sexualidade feminina por outro lado, se faz presa aos controles sociais, que obstam o seu exercício autônomo.

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Sobre a autora
Janaína Fernanda de Lima

Bacharel em direito, concurseira.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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