7. PROJETOS DE LEI NO BRASIL
Existem, atualmente, na Câmara dos Deputados, mais de dez projetos de lei apensados, referentes à exposição pornográfica não consensual. Aqui serão apresentados somente aqueles que constituem objeto interessante de análise, visto que em muitos deles, o conteúdo se repete, e isso levaria a uma redundância desnecessária.
Um dos projetos mais comentados é o projeto de Lei 5.555/13, apelidado de “Maria da Penha virtual”, de autoria do deputado federal João Arruda do PMDB/PR. É um projeto que não cria tipo penal, visa a alterar o texto da Lei Maria da Penha, ao incluir um inciso de hipótese de violação da intimidade como novo tipo de violência doméstica. Além disso, prevê a ordenação do juiz a obrigar provedores de serviço de internet a remover conteúdos nocivos às vítimas dessas práticas (BRASIL, 2013). De acordo com o autor do projeto, a noção de impunidade é que permite que os números de casos similares não parem de crescer.
O projeto de lei 6.630/2013, de autoria do deputado federal Romário, do PSB/RJ, cria um novo tipo e propõe a alteração no Código Penal. Não limita às hipóteses de vingança, e não faz distinção de gênero. Propõe-se, por esse projeto, o art. 216-B, inserido ao Título VI do Código, que trata dos Crimes Contra a Dignidade Sexual. O novo dispositivo seria então denominado “Divulgação indevida de material íntimo”. Incide no mesmo tipo, quem realiza montagens gráficas, prevista causa de aumento de pena quando o motivo advir de vingança ou humilhação, próprios de relações de afeto, bem como contra menores e pessoas com deficiência. Além disso, o projeto prevê a obrigação do agente em indenizar a vítima por todas as despesas que guardarem relação com as consequências, além de impor-lhe restrição de uso aos meios eletrônicos que utilizou para disseminar o ato (BRASIL, 2013). Para o autor do projeto, o principal culpado nesses casos é a pessoa que divulga, que dispõe de claro entendimento de que a conduta irá denegrir e humilhar a imagem da mulher.
O projeto de lei 6.713/2013, de autoria do deputado federal Eliene Lima, do PSD/MT, objetiva punir com um ano de reclusão, mais multa de vinte salários mínimos, quem publicar material íntimo sem consentimento, com exclusivo motivo de vingança. Seu núcleo se resume ao verbo “publicar”. O projeto também não faz distinção entre homem e mulher como destinatário da lei (BRASIL, 2013). É uma lei independente, que não visa alterar nenhuma oura legislação.
O mais abrangente dos projetos de Lei visa a alterar o Código Penal para inserir o artigo 216-B, com a descrição do tipo como “violação da privacidade”. É o projeto 7377/14, proposto pelo deputado federal Fábio Trad, do PMDB/MS. O projeto não se limita a casos motivados exclusivamente motivados por vingança, e nem aquelas violências ocorridas no seio do ambiente doméstico, como previsto na Lei Maria da Penha. Seu núcleos são mistos alternativos, oferecendo assim um amplo alcance a diversas condutas que envolvem o ato de exposição íntima não consentida. Prevê hipóteses de causas de aumento de pena quando o objetivo a ser alcançado é o sofrimento psicológico, a vingança, a humilhação, vaidade, ou ainda, ocorrer no ambiente íntimo, como relações domésticas e amorosas. Interessante é que o projeto dispõe que são ilícitas as condutas listadas, ainda que a vítima tenha autorizado a captura de modo espontâneo, ou até mesmo enviado o material (BRASIL, 2014). Para o autor do projeto, Trad, a proteção deve incidir tão somente sobre a integridade da vítima, e não sobre a honra:
Prosseguir tipificando tais condutas como difamatórias, vale dizer atentatórias à honra, é reforçar o viés machista com que a vida social da mulher é julgada no meio social. É um paradoxo que a mulher tenha de se afirmar “honesta” diante da mera acusação de estar exercendo livremente sua sexualidade. O que a legislação brasileira precisa é proteger a integridade psicológica da vítima, que tem sua intimidade violada e exposta à apreciação pública, diante da divulgação no mundo cibernético, no qual não tem controle da disseminação. Os danos são graves e muitos deles irreparáveis: demissão, reprovação escolar, banimento social e até envolvimento em quadros traumáticos e doenças psíquicas que podem conduzir ao suicídio, especialmente entre jovens. O tipo penal proposto insere-se no capítulo dos crimes contra a liberdade sexual, sendo que o nome violação de privacidade demonstra tratar-se de delito a ofender a liberdade sexual por meio de propagação desautorizada do conteúdo violador, de forma a afastar eventual enquadramento de condutas tipificadas em ambiente público, quando não se cogita privacidade e também excluir a hipótese de reprodução não autorizada de material de conteúdo erótico, eis que ilícito abordado no capítulo dos crimes contra a propriedade intelectual (2014, citado por VALENTE, et al, 2016, p. 135).
Como dito anteriormente, muitos projetos apresentam explícita semelhança. Além disso, percebe-se com relação a todas as propostas, que a minoria dos projetos se mostra apta a perfazer um instrumento útil ao enfrentamento da exposição pornográfica não consentida. Poucos apresentam densidade suficiente para lidar com um fenômeno tão complexo. Há uma produção legiferante intensa, mas não há iniciativa de buscar reforço de profissionais especialistas. Uma dado importante é que em maioria dos projetos submetidos, a pena máxima é superior a três anos. Isso quer dizer que não constitui crime de menor potencial ofensivo e por isso, os tipos não se submetem à Lei 9.099/95, a exemplo dos crimes de injúria e difamação.
A pornografia não consensual, embora não seja um fato social recente, mobiliza uma discussão que permanece no limbo da criminalização dessas condutas. Dessa forma, os debates costumam girar em torno da criação de mecanismos de punição dos responsáveis, ao invés de investigar as causas que levam o indivíduo a expor a sexualidade feminina como forma de degradação da moral, bem como de promover assistência e amparo às mulheres vitimizadas por essa forma de violência.
Assim, o sistema penal se torna protagonista desse cenário de insegurança jurídica e vulnerabilidade de gênero. Indaga-se se esse sistema seria capaz de oferecer um resultado coerente com a natureza desse tipo de violência, uma vez que o sistema penal representa um histórico de inércia e seletividade para com as vítimas. Nesse sentido, tratar juridicamente um crime que possui como base as relações de gênero requer uma série de medidas que visem estabelecer um tratamento mais estruturado.
Não é incomum que as vítimas de violência de gênero, quando em contato com o sistema jurídico, deparam-se com uma segunda violência, pois muitas vezes são hostilizadas e desacreditadas pela própria instituição que as deveria amparar. Há a tendência de oferecer um tratamento instantâneo de estabelecimento do status quo, mas não há um processo de estabelecimento da vítima. Desse modo há reprodução de um sistema de dominação masculina, que ofusca importantes aspectos sociológicos, através de um viés puramente punitivista.
8 . CONSIDERAÇÕES FINAIS
Preferiu-se, ao longo do texto, utilizar a expressão “pornografia não consensual”, ao invés de utilizar a expressão popular “Revenge Porn”, ou “Pornografia de Vingança”. É certo que a utilização da expressão compreende a análise de uma variedade maior de motivações a que são expostas essas práticas. Dessa forma, apesar de ainda não haver um consenso a respeito da definição do termo para se referir ao fenômeno de divulgação da intimidade sexual sem o consentimento no meio informacional, vê-se na expressão pornografia não consensual, uma melhor adequação ao fim que se propôs o presente estudo.
Constatou-se que o fenômeno deve ser analisado sob a perspectiva de gênero, pois, conforme demonstrou no primeiro capítulo, as construções do gênero são marcadas por uma desigualdade manifesta. Dessa forma, o objetivo de interligar o fenômeno à hierarquização entre os gêneros se mostrou satisfeito, uma vez que, com a ajuda das autoras, pode-se perceber que a sociedade delimita os papéis associados ao feminino e ao masculino de maneira intrínseca, com base em determinismos biológicos, e os mantém atuantes através de uma espécie de contrato social, que se mostra vantajoso somente para os homens.
Dessa forma, não há como discutir a pornografia não consensual desligando-se de suas implicações sociais, históricas e políticas. A pornografia não consensual não deve ser encarada com um fato independente e também não deve ser vista como um acontecimento dotado de normalidade, porque precede de uma ação reiterada. A violação da intimidade sexual de alguém consiste em um fato carregado de iterações sistemáticas, que vão além de consequências da era cibernética, pois são representações humanas, falhas, não previstas em nenhum manual digital.
A exposição de dados e levantamentos por diversas instituições serviu para reafirmar essa hipótese de que o fenômeno se dirige à perpetuação das relações de gênero. As estatísticas demonstraram que a mulher é o principal alvo dessas ações, e que o crescimento de números desses casos se deve à banalização com que as relações tem sido guiadas nos contatos líquidos da tecnologia, sobretudo, amparados por uma ordem estrutural de discriminação. Esses dados mostram que o compartilhamento de material pornográfico se dá de maneira intensificada e sistemática, em sua grande maioria, através de indivíduos do sexo masculino. Além disso, essas estatísticas confirmam a pertinência do abandono da expressão “Revenge Porn”, uma vez que os motivos são variáveis, apesar estarem ligados à intimidação e à opressão.
As histórias aqui contadas demonstraram o poder dessas representações, pois as consequências obedecem a um mandamento fatídico de opressão, capaz de levar até mesmo à morte. Duas dessas protagonistas encontraram no suicídio uma forma de lidar com a pressão social da humilhação, e nem mesmo depois disso, obtiveram remissão por parte da sociedade, pois não cessaram os julgamentos e as condenações morais. O meio pelo qual se deu a narrativa: a partir do ponto de vista da vítima – objetivou-se estabelecer uma abordagem diferente da mídia, que ora expõe em demasiado a vítima e ora silencia.
Os autores Brunello Stancioli, Erving Goffman, Marilena Chauí, Nara Pereira Carvalho, viabilizaram o descortinamento de grandes questões a partir análise da construção do fenômeno da pornografia não consentida. Ao comparar as relações humanas na construção da identidade com uma encenação, Goffman oferece a premissa de que as “representações” só podem ser bem sucedidas se houver um cuidado excessivo em expor aquilo que o outro deseja ver, de acordo com determinada sociedade a que pertence. Ou seja, a construção da identidade não se faz de forma individual, de maneira que somos sempre pressionados a “encenar” determinado papel a fim de sermos aceitos e determinado grupo.
O mesmo autor demonstra que essas “más representações” põe em risco a construção de uma identidade considerada “sadia”, pois o estigma é capaz de assim, deteriorar a identidade social, e colocar em risco até mesmo a dignidade e a autonomia do indivíduo. Essa construção só é possível através de uma visão restrita a estereótipos, que mais uma vez, se relaciona com a ideia da inferioridade feminina e da sua submissão como destino. A formação dessa identidade a partir de uma visão externa, Goffman chamou de “identidade social virtual”, pois distancia-se uma realidade subjetiva. Já Nara Pereira Carvalho nomeou essa construção identitária de “identidade em rede”, pois é constituída a partir de um espaço dinâmico, em que a identidade não se faz sozinha, e não se faz estática.
A visão da sexualidade trazida por Gayle Rubin e por Marilena Chauí permitiu observar que o sexo apesar de fundamentalmente dizer respeito a corpos, se faz também social e político, uma vez que não está imune às interferências externas dos outros indivíduos.
Nos capítulos finais, ao se adentrar na análise jurídica do fenômeno, buscou-se reproduzir como o sistema judiciário tem recepcionado o fenômeno da pornografia não consentida e como ele tem se manifestado em casos individuais, bem como o que tem proposto, no âmbito legislativo, como alternativas globais, frente às demandas sociais. A pornografia não consensual, como fenômeno recente com a projeção das novas tecnologias, revela-se como um tipo não descrito na legislação e por isso se submete às interpretações de inúmeros dispositivos esparsos tanto na área civil, quanto penal, a depender de uma ponderação discricionária do poder judiciário.
Há de se reconhecer importantes avanços para a temática, de forma transversal, mas incidente, tanto por parte do Marco Civil, quanto da Lei Maria da Penha. O Marco Civil da Internet representou um passo rumo à celeridade nesses casos, uma vez que agilizou os processos de retirada do material íntimo indesejado dos sites, sem a necessidade de se passar por um processo judicial. Ademais, a Lei Maria da Penha, ao abarcar as situações de violência doméstica psicológica, mesmo que fora do ambiente de coabitação, pôde contemplar os casos de pornografia não consensual, e sem a possibilidade do benefício de transação, ou conciliação em benefício do réu.
Através da jurisprudência colhida pode-se perceber que as repostas que o judiciário tem dado à exposição pornográfica não consentida têm se resumido na condenação por delitos de difamação e injúria, e que essa abordagem se mostra falha e insuficiente, pois na maioria dos casos, a punição é tão branda em comparação com o ato que ensejou pena à condenação, que não transmite caráter repressivo. Os projetos de lei apresentados demonstram um avanço específico, na medida em que levam para a política os anseios sociais. No entanto, essas iniciativas revelam a deficiência do poder legislativo através da alta produção legiferante sem resultado, o que coloca em xeque a qualidade dessas propostas, visto que são repletas de falhas, redundâncias e atecnias.
A criminalização, como visto em muitas outras demandas no Brasil, não se mostra uma solução jurídica completamente garantidora, uma vez que criar um tipo penal especial, apesar de consubstanciar o fato e chamar atenção para ele, não é garantia de que haverá uma repressão adequada, ademais, algum tipo de prevenção. Isso porque o sistema penal se mostra repleto de deficiências, inclusive, carecendo de estruturas mais adequadas com o tratamento de vítimas pertencentes a grupos discriminados, como a mulher. Ao ir de encontro com o seio da justiça, a vítima muitas vezes se depara com a violência institucionalizada ao ser encarada com a reprodução da mesma discriminação, que a levou até ali.
É necessário, antes de criminalizar, que toda a sociedade e suas instituições, como a escola, o Estado, a religião e a família, se comportem como vetores potenciais de mudança, para que determinadas construções sociais, como a desigualdade de gênero, sejam desconstruídas e assim, seja possível a emancipação feminina - requisito para que se possa atingir, efetivamente, a dignidade da pessoa humana. Isso é possível através do estudo, da visibilidade, sobretudo, do diálogo entre essas instituições.