Capa da publicação Misoginia na internet: a atribuição da Polícia Federal pela Lei 13.642/18
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Misoginia pela internet e atribuição da Polícia Federal pela Lei 13.642/18

22/04/2018 às 11:15
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Analisa-se a nova Lei 13.642/18, que concede atribuição à Polícia Federal para investigar “quaisquer crimes praticados por meio da rede mundial de computadores que difundam conteúdo misógino, definidos como aqueles que propagam o ódio ou a aversão às mulheres”.

A Constituição Federal, em seu artigo 144, estabelece as atribuições das polícias no Brasil, dentre elas as da Polícia Federal.

No inciso I, parte final do artigo 144, determina que as infrações penais que demandem “repressão uniforme” e tenham repercussão “interestadual ou internacional” sejam também investigadas pela Polícia Federal, na forma que dispuser a lei.

Nesse passo, foi editada a Lei Federal 10.446/02, que estabelece exatamente quais seriam essas infrações para as quais seria atribuída a investigação à Polícia Federal, dando concreção à norma constitucional.

A Lei 13.642, de 3 de abril de 2018, vem ampliar esse rol já previsto na Lei 10.446/02, acima mencionada. Agora é incluído no artigo 1º., da Lei 10.446/02, um inciso VII, concedendo atribuição à Polícia Federal para investigar “quaisquer crimes praticados por meio da rede mundial de computadores que difundam conteúdo misógino, definidos como aqueles que propagam o ódio ou a aversão às mulheres”.

Não há possibilidade de pecha de inconstitucionalidade com relação ao novo regramento, vez que a própria Constituição Federal deixou a cargo do legislador ordinário estabelecer quais seriam os casos de crimes que poderiam, excepcionalmente, ser atribuídos à investigação da Polícia Federal. No caso concreto, verifica-se a conveniência de repressão uniforme e também, concomitantemente, o potencial de repercussão interestadual e/ou internacional, dado o uso da internet.

Conforme aduz Moreira, a atribuição conferida pela Lei 10.446/02, com nova redação dada pela Lei 13.642/18 não impede a atuação concorrente das Polícias Estaduais. [1]É também o que já lecionava Marcão em sua obra, chamando a atenção para a redação clara e objetiva da Lei 10.446/02 (artigo 1º). [2]

Não há também alteração da competência para o processo e julgamento dos casos, mas tão somente da atribuição de Polícia Judiciária. Ou seja, esses crimes que envolvam misoginia perpetrados via internet serão, doravante, apurados pela Polícia Federal, mas não necessariamente julgados pela Justiça Federal.  A competência da Justiça Federal somente ocorrerá nos termos do artigo 109, CF, de modo que, em regra, o processo e julgamento serão levados a efeito pelas Justiças Estaduais.

Retomando o escólio de Moreira:

“Por fim, observa-se que a Lei 10.446/02 trata apenas de atribuição da Polícia Federal, e não de competência da Justiça comum federal, cujo tratamento encontra-se no artigo 109 da Constituição. Portanto, salvo hipótese de incidência de um dos incisos deste artigo — por exemplo, os seus incisos V e V-A —, a competência para o processo, julgamento e execução continuará sendo, em regra, da Justiça comum estadual”.[3]

A Lei 13.642/18 definiu o que seria o “conteúdo misógino” em seu texto, referindo-se ao “ódio ou a aversão às mulheres”, o que se compatibiliza com o conceito rotineiramente encontrado para o termo “misoginia”:

“Misoginia é a repulsa, desprezo ou ódio contra as mulheres. Esta forma de aversão mórbida e patológica ao sexo feminino está diretamente relacionada com a violência que é praticada contra a mulher. (...).Etimologicamente, a palavra ‘misoginia’ surgiu a partir do grego misogynia​, ou seja, a união das partículas miseó, que significa ‘ódio’, e gyné, que se traduz para ‘mulher’. Um indivíduo que pratica a misoginia é considerado misógino” (grifos no original)[4]

Um bom exemplo seria o caso de alguém que praticasse, via internet, a apologia ao crime ou ao criminoso (artigo 287, CP) com relação a práticas de violência contra as mulheres (estupros, homicídios, lesões corporais, ameaças etc.).

Tendo em vista a atual conformação de certos movimentos feministas radicais, seria de bom tom, especialmente com relação à concreção do Princípio Constitucional da Igualdade (artigo 5º., I, CF), que também fosse prevista, na mesma norma, a atitude daqueles que pratiquem crimes ligados à chamada “misandria” pela rede mundial de computadores, eis que tal fato não é incomum.

As condutas são equivalentes. Vejamos o conceito:

Misandria é a repulsadesprezo ou ódio contra o sexo masculino. Esta é uma forma de aversão patológica aos homens, enquanto gênero sexual, sendo considerada o oposto da misoginia, que é o sentimento de repulsa e ódio pelo sexo feminino.

Etimologicamente, o termo ‘misandria’ surgiu do grego misosandrosia, composto pela junção das partículas misos, que quer dizer ‘ódio’, e andros que significa ‘homem’.” (grifos no original). [5]

É bem verdade que esse “feminismo radical” não é uma regra geral, mas também a misoginia não é um fenômeno que acometa todos os homens, muito ao reverso. A afirmação de que a misandria seria apenas uma expressão sarcástica do movimento feminista, não correspondendo a nenhum ideário existente, porém, é falsa. [6]

Um exemplo extremado de misandria pode ser visto em Valerie Solanas, a feminista radical que alvejou Andy Warhol, em 1968. Seu “Manifesto SCUM” prega o genocídio dos homens pelo simples fato de pertencerem ao gênero masculino. SCUM é um acrônimo para "Society for Cutting Up Men” (“Sociedade para destruir ou dilacerar os homens”), praticamente um convite para o “generocídio”, com o abate dos homens. [7]

A misandria é um exemplo típico do chamado “Discurso do Ódio”, o qual

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“Consiste na manifestação de ideias que incitam à discriminação racial, social ou religiosa em relação a determinados grupos, na maioria das vezes, as minorias. [8] Tal discurso pode desqualificar esse grupo como detentor de direitos. Note-se que o discurso do ódio não é voltado apenas para a discriminação racial. Para Winfried Brugger o discurso do ódio refere-se ‘a palavras que tendam a insultar, intimidar ou assediar pessoas em virtude de sua raça, cor, etnicidade, nacionalidade, sexo ou religião, o que têm a capacidade de instigar a violência, ódio ou discriminação contra tais pessoas’.”. [9]

É claro que essa espécie de exemplo repugnante não é a regra, nem pode ser apresentado como o estado da arte do pensamento feminista contemporâneo ou histórico. Porém, o que se quer demonstrar é que o apego demasiado às conquistas das mulheres em vários campos vem minando pouco a pouco a atenção que deve ser dada para que os homens não se tornem reféns de discriminações injustas, inclusive com sua desqualificação na detenção de certos direitos. E essa cautela deve ser redobrada quando se sabe que

“o discurso do ódio pode ser manifestado por grupos que historicamente foram objeto de discriminação e se voltar contra um membro do grupo dominante. Nesse caso o discurso do ódio tem um tom de retaliação pelas agressões sofridas pela minoria [10], mas se dirige contra uma parcela inocente do grupo dominante.”.[11]

Observe-se que o que se propõe não é a eliminação do tratamento especial dado ao combate à odiosa misoginia, mas a ampliação desse tratamento ao seu inverso igualmente odioso, como proposta “de lege ferenda”.


REFERÊNCIAS

MARCÃO, Renato. Curso de Processo Penal. 4ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

MEYER – PFLUG, Samantha Ribeiro. MEYER – PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio. São Paulo: RT, 2009.

MOREIRA, Rômulo de Andrade. O novo crime da Lei Maria da Penha e a nova atribuição da Polícia Federal.  Disponível em www.conjur.com.br , acesso em 08.04.2018.

O que é misandria? Disponível em http://antimisandry.com/articles/, acesso em 08.04.2018.

SIGNIFICADO de Misandria. Disponível em www.significados.com.br, acesso em 08.04.2018.

SIGNIFICADO de Misoginia. Disponível em www.significados.com.br , acesso em 08.04.2018.

SOUZA, Lizandra. Vamos falar de misandria? Disponível em http://diariosdeumafeminista.blogspot.com.br/2015/05/vamos-falar-de-misandria.html , acesso em 08.04.2018.


[1] MOREIRA, Rômulo de Andrade. O novo crime da Lei Maria da Penha e a nova atribuição da Polícia Federal.  Disponível em www.conjur.com.br , acesso em 08.04.2018.

[2] MARCÃO, Renato. Curso de Processo Penal. 4ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2018,. p. 123.

[3]MOREIRA, Rômulo de Andrade. Op. Cit.,

[4] SIGNIFICADO de Misoginia. Disponível em www.significados.com.br , acesso em 08.04.2018.

[5] SIGNIFICADO de Misandria. Disponível em www.significados.com.br, acesso em 08.04.2018.

[6] Alegando a inexistência do movimento e do ideário: SOUZA, Lizandra. Vamos falar de misandria? Disponível em http://diariosdeumafeminista.blogspot.com.br/2015/05/vamos-falar-de-misandria.html , acesso em 08.04.2018.

[7] O que é misandria? Disponível em http://antimisandry.com/articles/, acesso em 08.04.2018.  É preciso lembrar que Solanas foi diagnosticada como portadora de anomalia mental logo após o episódio envolvendo a tentativa de assassinato de Warhol.

[8] Sempre é bom lembrar que nem na misoginia, nem na misandria se pode falar propriamente em “minorias” a não ser em um sentido fortemente metafórico.

[9] MEYER – PFLUG, Samantha Ribeiro. MEYER – PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio. São Paulo: RT, 2009, p.95.

[10] Não se esqueça da impropriedade da tomada ao pé da letra do termo “minoria” na questão de gênero.

[11] MEYER P PFLUG, Samantha Ribeiro, Op. Cit., p. 100.

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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Misoginia pela internet e atribuição da Polícia Federal pela Lei 13.642/18. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5408, 22 abr. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65328. Acesso em: 23 dez. 2024.

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