Capa da publicação A greve dos caminhoneiros: vitória do povo ou do cartel?
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A vitória do cartel

30/05/2018 às 10:30
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Como consequência da paralisação dos caminhoneiros, o custo do transporte para a sociedade vai subir, para garantir a eles lucros maiores. É legítimo?

I - O FATO 

Foi uma negociação inacreditável. A taxa de câmbio desvalorizou, o preço do petróleo subiu, e o país ficou mais pobre. E uma parte da sociedade não quer pagar a conta. O acordo institui um cartel: o custo de transporte para a sociedade vai subir para garantir lucros maiores para os caminhoneiros. A proposta também cria uma reserva de mercado para os caminhoneiros indicados pelos sindicatos (garantia de 30% dos fretes da Companhia Nacional de Abastecimento-Conab).

Para isso foi feito um lockout, movimento ilegal, conduzido por empresários. 

O ponto-chave é que muito foi concedido, a um custo financeiro estimado em quase R$ 10 bilhões, a ser arcado por toda a sociedade. Deve-se lembrar que a União continua a acumular déficits anuais pesados. Para este ano, sem incluir o custo da dívida, R$ 159 bilhões. Mais esta despesa terá de ser bancada pela sociedade.

Além da institucionalização de um cartel de transportes, há uma afronta ao livre controle de preços, essencial dentro de uma economia competitiva.

A  lista de concessões é longa:

- Redução do preço diesel em R$ 0,46 nas bombas pelo prazo de 60 dias. Depois desse período, o preço do diesel será ajustado mensalmente

-  Preço do diesel será reduzido em 10% nas refinarias e ficará fixo por 30 dias. Nesse período, o valor referência será de R$ 2,10 nas refinarias. Os custos da primeira quinzena com a redução, estimados em R$ 350 milhões, serão arcados pela Petrobras. As despesas dos 15 dias restantes ficarão com a União como compensação à petrolífera.  A cada 30 dias, o valor será reajustado conforme a política de preços da Petrobras e fixado por mais um mês.

- Isenção da cobrança de pedágio dos caminhões que trafegarem com eixo suspenso. A medida vale para todas as rodovias (federais, estaduais e municipais)

- A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) vai contratar caminhoneiros autônomos para atender até 30% da demanda de frete. O governo editará uma medida provisória no prazo de 15 dias.

- Não haverá reoneração da folha de pagamento do setor de transporte rodoviário de cargas

- Será estabelecido frete mínimo rodoviário. Tabela de frete será reeditada em 1º de junho e, a partir daí, ajustada a cada três meses pela ANTT

- Alíquota da Cide será zerada em 2018 sobre o diesel

- Isenção do pedágio para caminhões que circulam vazios (eixo suspenso)

- Ações judiciais contrárias ao movimento serão extintas

- Multas aplicadas aos caminhoneiros em decorrência da paralisação serão negociadas com órgãos de trânsito

- Entidades e governo terão reuniões periódicas a cada 15 dias

- Petrobras irá incentivar que empresas contratadas para transporte dêem oportunidade aos caminhoneiros autônomos, como terceirizados, nas operações de transporte de cargo

- Solicitar à Petrobras que seja observada resolução da ANTT 420, de 2004, sobre renovação da frota nas contratações de transporte rodoviário de carga 


II - O CARTEL 

Esse cartel causou perdas bilionárias e deve ser punido a bem dos interesses da sociedade.

O que é o cartel?

- cartel: A Resolução CADE 20/1999 descreve cartel como acordo explícito ou tácito entre concorrentes do mesmo mercado envolvendo parte substancial de mercado relevante, em torno de itens como preços, quotas de produção e distribuição e divisão territorial, na tentativa de aumentar preços e lucros conjuntamente para preços mais próximos ao de monopólio. Além de infração administrativa, há crime, configurado na Lei 12.529/2011;

A  Lei nº 6.404/76 (Lei das Sociedades Anônimas), cujos conceitos intimamente se relacionam ao exame do caso concreto, erige à categoria de princípio o padrão comportamental a ser observado pelo administrador no exercício de suas atribuições, também conhecido como standard:

“Art. 153. O administrador da companhia deve empregar, no exercício de suas funções, o cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios.”

           A Lei das S.A. estabelece, ainda, em seu art. 116, parágrafo único, que “o acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender.”

           Portanto o zelo, a diligência, a transparência, a probidade e a lealdade são requisitos do comportamento-padrão exigido tanto ao gestor da instituição financeira como ao acionista controlador.

Necessário estudar o instituto do cartel dentro do direito econômico, bem como suas repercussões no direito penal.

Em voto proferido no Ato de Concentração 08012.001697/2002-89 - requerentes Nestlé Brasil Ltda e Chocolates Garoto S.A - disse o então presidente do CADE, João Grandino Rodas: ¨(...) a ordem econômica se sustenta sobre dois fundamentos: a livre iniciativa e a valorização do trabalho humano e, também sobre um objetivo nuclear: assegurar a todos uma vida digna, de acordo com os preceitos da prática social. Desta forma, com esses pressupostos básicos, constrói-se a ordem social, decorrendo deles, também, os limites da intervenção governamental¨(folhas 08 do voto).

Toda a atividade econômica, seja pública ou privada, deve ser exercida na busca da existência digna de toda a coletividade.

A valorização do trabalho humano e a livre iniciativa demonstram que a Constituição de 1988 prevê uma sociedade brasileira capitalista moderna, onde haja a conciliação e composição dos titulares de capital e de trabalho como uma necessidade a ser viabilizada pela atuação do Estado.

Por sua vez, André Ramos Tavares(Direito constitucional econômico, 3ª edição, São Paulo, editora Método, pág. 256) acentua que a livre concorrência é um dos fundamentos de qualquer sistema capitalista.

Carlo Barbieri Filho (Disciplina jurídica da concorrência: abuso do poder econômico, São Paulo, Resenha Tributária, 1984, pág. 119) assim define: “Concorrência é disputar, em condições de igualdade, cada espaço com objetivos lícitos e compatíveis com as aspirações nacionais. Consiste, no setor econômico, na disputa entre todas as empresas para conseguir maior e melhor espaço no mercado.”

Ainda é André Ramos Tavares (obra citada,pág. 256) quem define a livre concorrência como a abertura jurídica concedida aos particulares para competirem entre si, em segmento lícito, objetivando o êxito econômico pelas leis de mercado e a contribuição para o desenvolvimento nacional e a justiça social.

Portanto, a livre concorrência, longe de exigir uma absoluta abstenção do Estado, impõe o que se chama de intervenção normativa e uma fiscalização deste, no sentido de permitir e garantir que no mercado permaneça a liberdade geral, que poderia estar sendo tolhida pela atuação de algum agente econômico. Esse princípio embasa o artigo 170, inciso IV, da Constituição.

Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior(Curso de direito constitucional, 4ª edição, São Paulo, Saraiva, 2001, pág. 375) lembram que enquanto princípio da ordem econômica e financeira, a livre concorrência tem por objetivo impedir a formação do monopólio do mercado, na medida em que o preceito constitucional abomina formas de dominação do mercado, como cartéis, trustes e monopólios em geral. Conclui-se que há conceitos verdadeiramente antitéticos: monopólio e livre concorrência.

A Constituição Federal a isso atenta, em seu artigo 173, § 4º, determina que o Estado estabeleça em lei punições às práticas que distorcem a situação de livre concorrência, estatuindo, a respeito de condutas da iniciativa privada, que “ a lei reprimirá o abuso de poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros”.

No Brasil, há o sistema brasileiro de defesa da concorrência, formado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE e pela Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda, com atribuições previstas em lei(Lei 12.529/2011).

A concorrência empresarial, em sendo assim, não é um valor-fim, mas um valor-meio, a ser seguida na tutela do direito econômico.

Distinguem-se posição dominante no mercado e poder econômico: para Sérgio Varella Bruna(O poder econômico, São Paulo, Ed. RT, 2001, pág. 115), posição dominante é aquela que confere a seu detentor quantidade substancial de poder econômico ou de mercado, a ponto de que pode ele exercer influência determinante sobre a concorrência, principalmente, no que se refere ao processo de formação de preços.

O legítimo uso do poder econômico não é censurável. Reprime-se o abuso de poder, que resulta na exclusão de outros agentes econômicos, que ficam sem condições de competir. Comprova-se tal abuso de poder econômico quando ele é usado para impedir a iniciativa dos outros, com a ação no campo econômico ou quando o poder econômico passa a ser o fator concorrente para um aumento arbitrário de lucros do detentor do poder.

São formas de manifestação desse abuso de poder econômico: a formação de trustes, cartéis, consórcios, holdings, multinacionais, etc, como apontou Tupinambá Miguel Castro do Nascimento ( A ordem econômica e financeira e a nova Constituição, Rio de Janeiro, AIDE, 1989, pág. 29).

Por sua vez, são formas de manifestação do poder econômico e seu abuso: a dominação do mercado(imposição de preços de mão-de-obra, de matéria-prima, de ofertas); a eliminação da concorrência.


III - O ASPECTO NOCIVO DO CONTROLE DE PREÇOS 

Em condições regulares de funcionamento do mercado concorrencial, não é possível a intervenção estatal que elimine a livre iniciativa e a livre concorrência - de que é exemplo a supressão da liberdade de fixação dos preços -. seja qual for o fundamento adotado para a medida.

A livre fixação de preços é elemento fundamental da livre iniciativa, princípio constitucional impositivo. Assim o controle prévio de preços como política pública regular viola principio constitucional.

Admite-se, todavia, que em situações anormais seja possível o controle prévio de preços pelo Estado, na medida em que o mercado privado como um todo tenha se deteriorado a ponto de não mais operarem a livre iniciativa e a livre concorrência de forma regular.

A Constituição brasileira não admite, como política pública, regular o controle prévio de preços.

Note-se que a situação de normalidade a que se fez referência não exclui, por natural, a possibilidade episódica da prática de ilícitos contra a ordem econômica. Diante de algum indício de conduta infratora ou anticoncorrencial, podem ser deflagrados os mecanismos próprios de apuração, mediante devido processo legal, e, se for o caso, de punição.

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Em situações normais, o controle estatal em matéria de preços de produtos e serviços será sempre posterior à verificação de práticas abusivas ou anticoncorrenciais, assegurados os direitos fundamentais à ampla defesa e ao devido processo legal (CF, art. 5°, LIV).

A matéria envolve uma premissa de direito econômico envolvendo a possibilidade de o Estado regulamentar ou regular a economia. 

Desregular significa não dar ordenação à atividade econômica, ao passo que desregulamentar, deixar de fazê-lo através de preceitos de autoridade, ou seja, jurídicos, como explicou Felipe A. Gonzáles Arzag(Sobre los conceptos de desregulación y desregulamentación, Revista de Derecho Publico y Teoria del Estado, 3, pág. 196). 

Expõe Eros Roberto Gradu(Interpretação e crítica da ordem econômica, pág. 48) que devem ser feitas, diante disso, as seguintes indagações: a) conforma-se ao bem comum e ao princípio da justiça a regulação da atividade econômica através de mecanismos de mercado? é possível o próprio mercado, sem uma legislação que o proteja, sofrer uma vigorosa intervenção destinada a assegurar sua existência e preservação?

A resposta à primeira pergunta tem caráter sabidamente ideológico. Os cultores da fé na economia de mercado a ela responderão afirmativamente. Já quem não seja fiel a esse credo responderá de modo negativo, com apoio em verificações empíricas. 

Com relação à segunda pergunta, o ministro Eros Grau(obra citada, pág. 48) expõe que não se pode perder de vista a circunstância de que a atribuição, ao Estado, da missão de conduzir o desenrolar do processo econômico, ordenando-o, é toda ela desenvolvida sob o compromisso de preservar os mercados. Isso porque o capitalismo reclama não o afastamento do Estado dos mercados, mas sim a atuação estatal, reguladora, a serviço dos interesses do mercado. 

Assim, o mercado não seria possível sem uma legislação que o protegesse e uma racional intervenção, que assegurasse a sua existência e preservação. 

Para Felipe A. Gonzáles Arzac(obra citada, pág. 199), os que pretendem desregular a economia nada mais desejam, no fundo, senão uma mudança nas técnicas de regulação, de modo a elevar a eficácia reguladora da atuação estatal sobre o domínio econômico, isto, aliás, através de procedimentos desregulamentadores. Pretende-se desregulamentar para melhor regular. 

Dessa forma, diante de uma necessária atuação do sistema da legalidade, vem a surgir uma inflação normativa. Contra a proposta de apresentação de normas rígidas, se opõe a adoção de normas flexíveis, indutoras de comportamentos, que poderá não produzir a eficácia da demanda. 

O sistema capitalista é preservado pela Constituição de 1988. O modo de produção, os esquemas de repartição do produto e os mercados capitalistas são mantidos em sua integridade pela Constituição de 1988.

A questão da fixação de tabelamento de preços, dentro da atual ordem econômica somente virá em situações excepcionais. 

A experiência demonstrou que o sistema de autorregulação do mercado nem sempre é eficaz em relação a um conjunto de outros aspectos dos produtos e serviços, como qualidade e segurança, veracidade das informações ao consumidor, vedação de cláusulas abusivas, atendimento pós-consumo etc. Daí a necessidade de uma regulamentação específica de proteção ao consumidor, que veio inscrita inclusive como um direito individual constitucionalizado.Trata-se, aqui, tanto de um princípio de funcionamento da ordem econômica, ao qual está vinculada a iniciativa privada, quanto de um dever do Estado. A ele cabe, não apenas assegurar um mercado efetivamente concorrencial, como também criar condições equitativas entre partes naturalmente desiguais, ainda que de forma induzida, e assegurar condições objetivas de boa fé negocial, como demonstrou Teresa Negreiros(Fundamentos para uma intepretação constitucional do princípio da boa-fé, 1998).

A opção por uma economia capitalista se funda na crença de que o método mais eficiente de assegurar a satisfação dos interesses do consumidor de uma forma geral é através de um mercado em condições de livre concorrência, especialmente no que diz respeito a preços.

Respeita-se o princípio da livre iniciativa. 

Particularmente, acerca da livre iniciativa e dos demais princípios que com ela convivem, escreveu ainda uma vez Diogo de Figueiredo Moreira Neto: "O princípio da liberdade de iniciativa tempera-se pelo da iniciativa suplementar do Estado; o princípio da liberdade de empresa corrige-se com o da definição da função social da empresa; o princípio da liberdade de lucro, bem como o da liberdade de competição, moderam-se com o da repressão do abuso de poder econômico; o princípio da liberdade de contratação limita-se pela aplicação dos princípios de valorização do trabalho e da harmonia e solidariedade entre as categorias sociais de produção; e, finalmente, o princípio da propriedade privada restringe-se com o princípio da função social da propriedade."(Ordem Econômica e desenvolvimento na Constituição de 1988, pág. 28).

Disse o ministro Luis Roberto Barroso (A ordem econômica constitucional e os limites à atuação estatal no controle de preços): “Ora bem: se a liberdade para fixar preços de acordo com o mercado concorrencial é da própria essência da livre iniciativa, ela não pode ser eliminada de forma peremptória, sob pena de negação do princípio, e não de ponderação com outros valores. A menos que - e este é o ponto a que se chegará mais à frente - o controle prévio fosse necessário para recompor o próprio sistema de livre iniciativa. Além desses dois princípios fundamentais - livre iniciativa e valorização do trabalho -, o art. 170 apresenta, ainda, um conjunto de princípios setoriais que, em harmonia com esses, deverão conduzir a ordem econômica.”

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. A vitória do cartel . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5446, 30 mai. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66564. Acesso em: 22 dez. 2024.

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