Casos de petições do Ministério Público deferidas por juízes para fins de esterilização compulsória de pessoas com deficiência mental (destacadamente mulheres) vêm gerando bastante debate na atualidade.
Neste texto intenta-se constatar se, de acordo com as normas jurídicas nacionais, tal espécie de ordem judicial e de procedimento seria possível no Brasil ou se, ao reverso, constituiria, para além de uma imoralidade, uma patente ilegalidade e abuso.
A legislação que trata especificamente da esterilização voluntária e compulsória no Brasil é a Lei de Planejamento Familiar (Lei 9263/96).
A questão referente à esterilização compulsória de deficientes mentais é prevista no artigo 10, § 6º., da Lei 9263/96. [1] Exige a norma a existência de ordem judicial para o procedimento, nos seguintes termos:
“A esterilização cirúrgica em pessoas absolutamente incapazes somente poderá ocorrer mediante autorização judicial, regulamentada na forma da Lei” (grifo nosso).
Conforme se vê, embora o dispositivo permita a esterilização compulsória de absolutamente incapazes mediante ordem judicial, não é possível sua autoplicação, já que a própria norma estabelece a dependência de sua regulamentação por outro diploma legal a ser promulgado.
Nesse passo é de ressaltar que o legislador agiu com a devida cautela, eis que a história nos ensina que a adoção de esterilização de certas categorias de pessoas não tem sido algo positivo e respeitador da dignidade da pessoa humana. Como nos ensina Bauman o holocausto como “solução final” não foi uma decisão de afogadilho, mas algo que se desenvolveu em progressão, passando pelo isolamento, pelas práticas abortivas, pela esterilização até chegar à eliminação pura e simples. E, ademais, nada impede que os mesmos processos que levaram àquela abominação voltem a acontecer na história humana. [2]
Muito embora a imagem do nazismo e de Hitler sempre nos venha à mente quando se fala de coisas como esterilização compulsória de pessoas, eugenia etc., fato é que, conforme explica Derosa:
“Hitler inspirou-se na popularidade dos movimentos eugenistas americanos e britânicos, na qual baseou toda a sua justificativa política e estatal, aliando a históricos anseios imperiais alemães". [3]
Não é de espantar que uma feminista do Reino Unido, Marie Stopes, autora de livros como “Married love: A new contribution to the solution of sex difficulties” e “Wise Parenthood”, se mostrasse dominada por uma fascinação pela “modernidade”, apoiando a “a esterilização compulsória de pessoas inaptas para a paternidade, que incluíam os depravados, doentes mentais e raças inferiores”. [4]
A obra de Black, “A Guerra contra os fracos”, certamente é um dos mais completos testemunhos das macabras e abjetas teorias eugenistas que se espalharam dos Estados Unidos para a Inglaterra e dali para a Europa, influenciando, inclusive, o nazismo. Nada mais emblemático do que a manifestação do Juiz da Suprema Corte Americana, Oliver Wendell Holmes Jr.:
“É melhor para todos no mundo que, em vez de esperar para executar descendentes degenerados por crimes, ou deixar que morram de fome por causa de sua imbecilidade, a sociedade possa impedir os que são claramente incapazes de continuar a espécie. O princípio que sustenta a vacinação compulsória é amplo o bastante para cobrir o corte das trompas de falópio. Três gerações de imbecis são suficientes”. [5]
É de se crer que não queiramos pequenos “Holmes” se incubando no Judiciário e no Ministério Público brasileiros, expedindo, à margem da lei, ordens de esterilização de pessoas, sejam elas deficientes mentais ou não.
Retomando a questão do artigo 10, § 6º. da Lei 9263/96, fato é que não houve regulamentação legal a possibilitar a expedição de ordens judiciais e a legitimar pedidos ministeriais de esterilização compulsória. Como visto acima, o dispositivo não é dotado de autoaplicabilidade, conforme expressamente estabeleceu o próprio legislador e sua regulamentação jamais foi levada a efeito.
Como destaca Albuquerque:
“A Lei dispõe que é apenas aceita quando houver autorização judicial, bem como assenta que será regulamentada na forma da Lei. Inicialmente, assinala-se que tal lei não existe no ordenamento jurídico pátrio, o que impõe ao Poder Judiciário o dever de adotar uma atuação comedida e cautelosa no que concerne à autorização para a realização de esterilização em absolutamente incapaz”. [6]
É importante lembrar que o Código de Ética Médica (Resolução CFM 1931/09), em seu artigo 15, apresenta como “infração deontológica” o descumprimento da “legislação específica relativa a esterilização”. E a esterilização é objeto da Lei 9029/95 que inclusive criminaliza sua prática discriminatória em geral e especificamente nas relações de trabalho e emprego. Além disso, a esterilização, se praticada com a finalidade de destruir no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal, pode configurar crime hediondo de Genocídio, nos termos do artigo 1º., alínea “d” da Lei2889/56. [7]
A falta de regulamentação do dispositivo da Lei 9263/96 já foi várias vezes reconhecida pela jurisprudência (v.g. TJRJ, Apelação Cível 2006.00134253, 2ª. Câm. Rel. Des. Carlos Eduardo da Fonseca Passos, j. 30.08.2006; TJRS, Apelação Cível, 7010573723, 7ª,. Câm., Rel. Des. José Carlos Teixeira Giorgis, j. 30.03.2005; TJRS, Apelação Cível, 70084484276, 8ª. Câm., Rel. Des. Antonio Carlos Stangler Pereira, j. 28.10.2004).
Embora haja também decisões que apontam para a suficiência do artigo 10, § 6º., da Lei 9263/96, tendo em vista a redação legal a exigir regulamentação, essa não parece ser a melhor interpretação. Mesmo porque, conforme visto, trata-se de matéria delicada que não pode ficar sujeita à discricionariedade, ou pior, ao arbítrio ministerial e judicial.
Mesmo tratando da atuação do STF no controle de constitucionalidade e decisões manipulativas, Fernandes chama a atenção para a necessidade de estabelecimento de “limites e parâmetros” a evitar a violação da divisão de poderes de forma indevida, transformando o Judiciário em “legislador positivo” e não meramente negativo, como seria sua função típica. A atuação como legislador positivo, “criando ou restringindo direitos de maneira importante” seria “atípica” ao Judiciário, mesmo com relação ao STF. [8] O que dizer então com referência aos juízos de primeiro e segundo graus?
E o atual quadro legislativo brasileiro aponta para a inviabilidade da esterilização compulsória de deficientes mentais, porque, além da falta de regulamentação do artigo 10, § 6º., da Lei 9263/96, que o torna inaplicável, surge o marco do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/15).
Em seu artigo 6º., II, o estatuto reconhece a capacidade civil do deficiente para “exercer direitos sexuais e reprodutivos”. E, mais importante, no mesmo artigo, agora no seu inciso IV, assegura a conservação da fertilidade do deficiente e veda peremptoriamente a “esterilização compulsória”. No seu artigo 8º., o estatuto estabelece como “dever do Estado, da sociedade e da família assegurar à pessoa com deficiência” (...) “a efetivação dos direitos referentes” (...) “à paternidade e à maternidade”. Os artigos 11 e 12 determinam que a pessoa deficiente não possa ser submetida a qualquer intervenção médica ou cirúrgica sem seu consentimento esclarecido, podendo, em casos de curatela, na forma da lei, ser esse consentimento suprido. Mesmo em caso de curatela, exige o estatuto o maior grau de participação possível do deficiente no processo de tomada de decisão, não havendo, como regra, uma “decisão substituta”, mas uma decisão conjunta e participativa, na qual a vontade do deficiente seja, com razoabilidade, levada em consideração. Finalmente, normatiza o artigo 13 que “a pessoa com deficiência somente será atendida sem seu consentimento prévio, livre e esclarecido em casos de risco de morte e de emergência em saúde, resguardado seu superior interesse e adotadas as salvaguardas legais cabíveis”. Especificamente quanto aos direitos reprodutivos, estatui o artigo 18, § 4º., VII, ao reverso da esterilização compulsória, o direito à “atenção sexual e reprodutiva, incluindo o direito à fertilização assistida”. Ademais, o Estatuto da Pessoa com deficiência impõe sérios limites ao instituto da curatela, praticamente o restringindo a questões patrimoniais e negociais, sem adentrar no âmbito existencial do curatelado, o qual, ademais, já não é considerado como absolutamente incapaz na ordem civil, além de dar prevalência, quando possível, ao sistema de “tomada de decisão apoiada” (vide artigos 84, 85, 114 e 116). Tudo isso e principalmente o artigo 6º., inciso IV, do Estatuto da Pessoa com Deficiência, está a indicar que não somente o artigo 10, § 6º., da Lei 9263/96 sempre careceu de regulamentação legal, como agora foi revogado tacitamente pela Lei 13.146/15, que lhe é posterior e veda de forma absoluta a prática de esterilização compulsória. A revogação é tácita, porque a lei posterior (Lei 13.146/15 – artigo 6º., IV, afora outros dispositivos) é incompatível com a lei anterior (Lei 9263/96 – artigo 10, § 6º.). [9]
Assim sendo, parece que somente outras medidas preventivas, que não a esterilização compulsória, podem ser adotadas em casos extremos nos quais o deficiente mental efetivamente, no caso concreto, não apresentar qualquer condição de expressar sua vontade livre e informada. A esterilização compulsória de deficientes mentais, e sua sombria lembrança histórica, foi banida do nosso ordenamento expressamente pelo artigo 6º., IV, da Lei 13.146/15.
No caso de ordens judiciais expedidas com essa finalidade, diante da clareza solar do sistema jurídico em uma análise conglobante, é de se cogitar da prática de crimes de Abuso de Autoridade (artigo 3º., “i”, da Lei 4898/65) e de lesão corporal gravíssima (quando a esterilização for realmente realizada), de acordo com o artigo 129, § 2º., III, CP (perda de função reprodutora).
Entende-se que o artigo 15, parágrafo único, IV, da Lei 9263/96, que prevê como crime a prática de esterilização sem observância dos requisitos dispostos no artigo 10, § 6º., do mesmo diploma, também resta tacitamente revogado, eis que é impossível realizar esterilização compulsória de acordo com o então dispositivo regulamentador, o qual, por seu turno, carecia de regulamentação específica, e acabou revogado pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência. Portanto, não há cogitar de imputação desse crime, o qual se torna inaplicável.
Quanto ao abuso de autoridade e ao crime de lesão corporal gravíssima, deverão ser responsabilizados tanto o Promotor de Justiça que requeira a esterilização compulsória (na qualidade de partícipe - indutor), quanto o Juiz de Direito que a determine, em atendimento ao pedido ministerial (na qualidade de autor, de acordo com o domínio do fato). Não é possível crer que tais autoridades desconheçam de forma tão intensa a legislação que regula a matéria e não atuem com dolo, mas informados por sincera convicção jurídica. Já no que se refere aos profissionais de saúde que cumpram uma ordem judicial, parece-nos possível reconhecer que atuam com exclusão de culpabilidade, eis que não versados na área jurídica e cumprindo uma suposta ordem judicial legal (inteligência do artigo 22, CP).
Por fim, é de se ressaltar que, nas relações de emprego, o induzimento ou instigação à esterilização constitui crime previsto no artigo 2º, II, “a”, da Lei 9029/95, seja a vítima deficiente ou não. Serão sujeitos ativos o empregador, seu representante legal na forma da legislação trabalhista ou os dirigentes de pessoas jurídicas de direito público (vide artigo 2º., Parágrafo Único, I a III, da Lei 9029/95).
REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, Aline. Esterilização compulsória de pessoa com deficiência intelectual: análise sob a ótica do princípio da dignidade da pessoa humana e do respeito à autonomia do paciente. Revista Bioehikos. Centro Universitário São Camilo. Volume 7, p. 18 – 26, 2013.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Trad. Marcos Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
BLACK, Edwin. A guerra contra os fracos. Trad. Tuca Magalhães. São Paulo: A Girafa, 2003.
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Comentários ao Novo Código de Ética Médica. Belo Horizonte: Del Rey, 2011.
DEROSA, Cristian. Breve História do Aborto. In: DEROSA, Marlon (org.). Precisamos falar sobre aborto – Mitos & Verdades. Florianópolis: Estudos Nacionais, 2018.
FERNANDES, André Dias. Modulação de efeitos e decisões manipulativas no controle de constitucionalidade brasileiro – possibilidades, limites e parâmetros. Salvador: Juspodivm, 2018.
Notas
[1] Importante observar que tal artigo foi objeto de veto pelo Executivo sob a alegação de que sendo a esterilização uma lesão gravíssima com perda de função reprodutora, não bastaria a mera anuência da pessoa e nem mesmo uma ordem judicial seria garantia de legitimidade do procedimento. A sugestão era de que tal procedimento somente fosse adotado quando houvesse indicação médica, baseada em critério de absoluta necessidade (Mensagem de Veto n. 66/96). Ocorre que o congresso acabou aprovando o texto original e derrubando o veto (vide Mensagem 928/97).
[2] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Trad. Marcos Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, “passim”.
[3] DEROSA, Cristian. Breve História do Aborto. In: DEROSA, Marlon (org.). Precisamos falar sobre aborto – Mitos & Verdades. Florianópolis: Estudos Nacionais, 2018, p. 23.
[4] Op. Cit., p. 35.
[5] BLACK, Edwin. A guerra contra os fracos. Trad. Tuca Magalhães. São Paulo: A Girafa, 2003, p. 215.
[6] ALBUQUERQUE, Aline. Esterilização compulsória de pessoa com deficiência intelectual: análise sob a ótica do princípio da dignidade da pessoa humana e do respeito à autonomia do paciente. Revista Bioehikos. Centro Universitário São Camilo. Volume 7, 2013, p. 22 – 23.
[7] Cf. CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Comentários ao Novo Código de Ética Médica. Belo Horizonte: Del Rey, 2011, p. 55.
[8] FERNANDES, André Dias. Modulação de efeitos e decisões manipulativas no controle de constitucionalidade brasileiro – possibilidades, limites e parâmetros. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 43.
[9] Inteligência do artigo 2º., § 1º. Do Decreto – Lei 4.657/42 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).