Capa da publicação Mutilação genital feminina X direitos humanos: a violência de gênero por trás da prática cultural
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Direitos humanos x mutilação genital feminina.

A violência de gênero por trás da prática cultural.

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09/10/2018 às 15:38
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A MGF constitui, por sua natureza e consequências, uma das formas mais aviltantes de violência e discriminação contra as mulheres. Todavia, tem significado e um objetivo para quem a pratica.

Resumo: O cenário contemporâneo sobre os direitos humanos impõe a necessidade de descrever e/ou analisar algumas práticas culturais que podem ser objeto de severas críticas no sentido de violar direitos humanos, no entanto, segundo os especialistas em seus relatórios apresentados ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, “Retrocessos alarmantes estão ocorrendo em diversas regiões do mundo, formando uma “aliança de conservadorismo político e fundamentalismos religiosos”. Por 70 anos, a igualdade de gênero foi consagrada na Declaração Universal dos Direitos Humanos; há quase 40 anos, foi adotada a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher; e, há 25 anos, a Declaração e o Programa de Ação de Viena estabeleceram que os direitos das mulheres são uma parte indivisível dos direitos humanos. No entanto, especialistas apontam que nenhum país do mundo eliminou com sucesso a discriminação contra as mulheres ou alcançou a igualdade de gênero total, havendo, portanto, a urgente necessidade de proteger as conquistas passadas e avançar para garantir a igualdade para as mulheres em todos os lugares do planeta.

Palavras-chave: direitos humanos, cultura, mutilação, interculturalismo, diálogo intercultural


Os direitos humanos fazem parte dos chamados direitos de terceira geração. São direitos difusos, meta individuais e transcendentes. Não possuem como objeto de sua tutela um indivíduo em específico, mas dizem respeito a toda uma coletividade.

Dos “muitos obstáculos” que as mulheres enfrentam, o relatório da ONU afirmou questões envolvendo família, cultura e saúde sexual e reprodutiva continuam sendo os desafios mais difíceis de serem ultrapassados e são os que recebem a maior reação negativa. Segundo a Organização das Nações Unidas, em nenhuma sociedade, práticas como poligamia, casamento infantil, mutilação genital feminina, crimes de honra e criminalização de mulheres por comportamento sexual e reprodutivo, deveriam ainda existir.

Dada a descomunal violência, capaz de agredir a mulher em TODOS os sentidos (físico, moral, psicológico, sexual e reprodutivo) trataremos aqui da mutilação genital feminina, a qual pode ser conceituada como extirpação parcial ou total do órgão genital feminino, que ocorre sobretudo em 28 países africanos. Em tempos de intensa globalização, o debate sobre a universalidade dos direitos humanos ganha novos contornos.

A MGF constitui, pela sua natureza e pelas suas consequências, um atentado à igualdade de gênero, traduzindo-se numa das formas mais aviltantes de violência e discriminação contra as mulheres. Esta realidade perpetua situações de desigualdade, constituindo um obstáculo ao exercício pleno do direito inalienável de cidadania. Com efeito, enraizados nestas práticas, encontram-se estereótipos alicerçados na subordinação da mulher no contexto familiar e social. Estas práticas reforçam noções e realidades distorcidas quanto ao papel da mulher nas diversas esferas da sociedade.

Subjacente a fatores alegadamente relacionados e legitimados com costumes, tradições e/ou religião, o que transparece desta violação mais elementar dos Direitos Humanos é uma relação assimétrica de poder em que se subalterniza e discrimina o papel da mulher, quer na esfera privada, quer na esfera pública, incluindo a política.

A Mutilação Genital Feminina (MGF) é indiscutivelmente reconhecida em vários convénios internacionais como uma grave violação dos direitos humanos das mulheres, provocando danos irreparáveis, a curto e a longo prazo, para a saúde psicológica, sexual e física das mulheres e meninas que a ela foram submetidas. Este grave atentado à pessoa e à integridade física, mental, sexual e reprodutiva das mulheres chega, em alguns casos, a provocar a morte. A MGF é uma discriminação de género, já que se encontra profundamente enraizada em desigualdades e assimetrias de poder entre homens e mulheres impedindo a mulher de usufruir plenamente os seus direitos.

Mesmo quando praticada por mulheres, não deixa de ser uma violência de género, já que a mulher é aqui utilizada como veículo de perpetuação de uma cultura de desigualdade que a subjuga, anula e viola a sua integridade. A MGF coloca em causa direitos fundamentais como a igualdade, dignidade e integridade, assim como o direito das meninas e mulheres terem controle sobre a sua própria vida. Como se as mulheres não pudessem ter direito ao seu próprio corpo e à sua sexualidade. Esta violação tem um efeito prolongado no corpo e condiciona, por conseguinte, toda a vida e autonomia das mulheres. Anula-as, mutilando-as também como.

Esta prática viola um conjunto de direitos humanos fundamentais, normas e princípios de igualdade de género e não discriminação, bem como o direito inalienável à vida e o direito a ser livre de tortura ou tratamento cruel, desumano ou degradante. Esses princípios encontram-se consignados na Declaração Universal dos Direitos Humanos; na Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres; na Convenção contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes; na Carta Africana sobre Direitos e Bem Estar das Crianças; na Plataforma de Acção de Pequim; na Carta dos Direitos Humanos e Reprodutivos; no Relatório da Comissão dos Direitos da Mulher e da Igualdade de Género; na Estratégia Europeia para a Igualdade entre Mulheres e Homens 2010-2015, entre outros. O respeito e a sensibilidade para com uma cultura não significam a aceitação de práticas tradicionais nocivas ou a violação dos direitos humanos fundamentais. A compreensão das diversas realidades culturais deve levar-nos, em parceria, a promover o respeito pelos direitos humanos. As culturas não são estáticas, mas dinâmicas, e influenciam e são influenciadas pela mudança, sendo que é essa mudança que é preciso implementar.

O Dia Internacional da Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina é observado pela Organização das Nações Unidas (ONU), anualmente, a 6 de fevereiro, para chamar à atenção para o fato de mais de 140 milhões de meninas e mulheres, em todo mundo, terem sido sujeitas a estas práticas violadoras dos direitos humanos. A Mutilação Genital Feminina (MGF) refere-se a todos os procedimentos que envolvem a alteração ou ferimento dos órgãos genitais femininos por razões que não sejam médicas. É reconhecida, internacionalmente, como uma violação dos direitos humanos das meninas e mulheres e constitui uma ameaça para a sua saúde, bem-estar e auto-estima das mesmas, pondo muitas vezes em risco a própria vida.

Para debater a situação e encontrar novas respostas, o Fundo das Nações Unidas para a População, o Fundo das Nações Unidas para a Infância e outros parceiros promoveram em Nova Iorque, um evento intitulado “Mobilização para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável através da eliminação da MGF até 2030”. A eliminação da MGF tem sido solicitada por inúmeras organizações inter-governamentais, incluindo a União Africana, a União Europeia e a Organização para a Cooperação Islâmica, bem como em duas resoluções da Assembleia-Geral das Nações Unidas.

Os 17 Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável, que entraram em vigor para os 193 Estados-membros que adotaram a Agenda 2030, são outro instrumento, onde a comunidade internacional estabelece propostas para eliminar a MGF. O Objetivo consiste em até 2030, “Eliminar todas as práticas nocivas, como os casamentos prematuros, forçados e envolvendo crianças, bem como as mutilações genitais femininas”. Esta resposta global chega numa altura em que a MGF é cada vez mais reconhecida como uma preocupação global: é praticada em mais de 30 países e tornou-se, também, uma realidade nas comunidades de diáspora desses países que vivem na Europa, América do Norte, Austrália e Nova Zelândia.

Boaventura afirma a incontestabilidade dos direitos humanos como “linguagem de dignidade humana”, porém, de plano, questiona essa validade, principalmente devido ao caráter hegemônico do instituto. Coloca mesmo, em xeque, a validade dos direitos humanos na forma e sentidos aos quais lhe emprestam os seus defensores. “A grande maioria da população não é sujeito de direitos humanos. É objeto de direitos humanos.”.

Fica bastante claro, na citação acima, o seguinte problema: embora grande parte da população mundial sobreviva em níveis que, conforme padrões internacionais, estão abaixo dos de pobreza, essas pessoas não são alcançadas pelos direitos humanos. Do contrário, são massacradas diariamente através dos meios de comunicação em massa principalmente, em uma época em que a informação consegue chegar de forma quase que instantânea aos locais mais remotos do planeta em tempo recorde por publicidade que anuncia um padrão de vida calcado no consumismo e bem-estar aparente exacerbados. Ora, são pessoas que vivem um mundo onde apenas uma exlusivo número de endinheirados possui junto, mais riqueza do que os cerca de oitenta por cento de todo o planeta.

Como bem afirma Boaventura, essas pessoas não são sujeitos de direitos humanos e sim objeto de direitos humanos. É clara a inquietação do autor português no seguinte questionamento:

“Deve, pois, começar por perguntar-se se os direitos humanos servem eficazmente à luta dos excluídos, dos explorados e dos discriminados ou se, pelo contrário, a tornam mais difícil. Por outras palavras, será a hegemonia de que goza hoje o discurso dos direitos humanos o resultado de uma vitória histórica ou, pelo contrário, de uma derrota histórica?” (Santos, p.15).

A mutilação genital feminina consiste na remoção total ou parcial dos órgãos genitais femininos, uma prática presente em meio a vários povos e Estados, muitas vezes sob a defesa de que é parte da identidade cultural de um grupo de pessoas. Dessa forma, indissociável dele. A Organização Mundial da Saúde, por sua vez, oferece material suficiente para a análise dessa prática cultural: o que é, onde ocorre, os motivos, efeitos e mais. E, para fundamentar esse desestímulo à prática, recorremos à ideia dos Direitos Humanos (que vem se consagrando em nossos dias), além da consciência de cultura.

Considerando que os direitos humanos surgiram no Ocidente, em uma sociedade organizada sobre os princípios do individualismo, é compreensível que se questione a sua validade universal. No entanto, será que hoje, com o decurso da história, quando os direitos humanos já correspondem a um conjunto que vai muito além dos direitos meramente individuais, não teriam esses direitos realmente uma aplicabilidade em todo o mundo? Se pensarmos na Organização das Nações Unidas, da qual fazem parte 192 países dos mais diversos matizes culturais, tendo todos se comprometido, entre outros propósitos, com a proteção dos direitos humanos (Carta da ONU, art. 1), é possível pensar em um compromisso dos vários povos do mundo em direção a algo em comum. Sabe-se que no campo da efetivação, entretanto, colocar em prática os princípios acordados não é tão fácil quanto possa parecer.

Enfim, não é difícil notar que o conceito evolui e muda tal qual a própria humanidade. Importante lembrar que no século XVIII apenas o mundo moderno ocidental poderia compreender a noção de direitos humanos, hoje se busca pensar esta idéia da forma mais abrangente possível para que as diferentes culturas sejam contempladas. Para tanto, há a necessidade de um fundamento dos direitos humanos que seja passível de ser encontrado em todas as culturas, uma base geral e abstrata para que sua aplicação concreta seja possível e desejável em todos os lugares do planeta.

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Como veremos, parece que fundar os direitos humanos na dignidade humana ainda é o que pode tornar os direitos humanos legítimos e emancipatórios nas mais diversas concepções de sociedade, sendo para isso relevante verificar-se qual a posição do ideal de universalidade dos direitos humanos dentro de um período em que a globalização deixa mais visível a diversidade cultural existente – entre Estados e dentro deles. Assim, é imprescindível rediscutirmos os limites em que o interculturalismo e os direitos universais podem coexistir.

Nesse contexto, então, surge a problemática da Mutilação Genital Feminina. Esta prática cultural tem levado a conflitos entre alguns pontos de vista, entre eles, os que ensejam estar o igual valor das culturas acima do que outros consideram valores universais. Essa conduta, contudo, aponta para um relativismo moral e cultural capaz de legitimar a extirpação da dignidade alheia em nome do multiculturalismo quando laçamos um “olhar Humano” sobre o que é essa prática cultural e suas consequências dentro da sociedade.

A Mutilação Genital Feminina, de acordo com o site da Organização Mundial da Saúde (OMS), trata-se de “todas as intervenções que envolvam a remoção parcial ou total dos órgãos genitais femininos externos ou que provoquem lesões nos órgãos genitais femininos, por razões não médicas”. Esses procedimentos não trazem nenhum benefício para a saúde e, sobretudo, ainda prejudicam a mulheres e garotas de variadas formas.

São quatro tipos principais que a OMS classificou: I) clitoridectomia, ressecção parcial ou total do clitóris e, em casos menos frequentes, apenas do prepúcio; II) excisão, ressecção parcial ou total do clitóris e lábios menores, com ou sem excisão dos lábios maiores; III) infibulação, estreitamento da abertura vaginal para criar uma vedação por meio do corte e reposicionando os lábios menores ou maiores, com ou sem ressecção do clitóris; IV) outros, que podem ser todos os outros procedimentos lesivos à genitália feminina para fins não médicos, tais como a perfuração, a incisão, raspagem a cauterização da área genital.

Sobre a terminologia desse procedimento, em geral, houve mudanças. A princípio, quando começaram as discussões sobre o assunto, usou-se a expressão “circuncisão feminina”. Porém, isso provocava uma analogia precipitada com a circuncisão masculina e, como resultado, acontecia uma confusão no entendimento desses diferentes procedimentos. É nos anoS 70, do século passado, que começam a denominar como Mutilação Genital Feminina, com intento de realçar a violação causada às mulheres e crianças.

Não se tem clareza quanto à origem dessa prática, porém se estima que ela já seja praticada há 3000 anos no Egito. Ao passar do tempo, com a imigração, isto começou a se passar em países diferentes dos países em que é natural. Dessa forma, torna-se claro que não se trata apenas de um problema local, isolado.

Não há consenso sobre sua origem e manutenção prática, sendo o costume e a tradição as razões comumente utilizadas para justificar a mutilação genital feminina, conforme Dulce de Queiroz Piacentini frisou:

[...] sua origem remonta a tempos anteriores ao do surgimento da religião muçulmana. Não está claro, contudo, quando ou onde a prática iniciou. Alguns autores sugerem que foi no Antigo Egito. Outros dizem que a MGF é um velho ritual africano que chegou ao Egito por difusão. Há ainda quem levante a hipótese de a prática ter sido aplicada nas mulheres negras à epoca do velho mercado árabe de escravos ou de que ela tenha sido introduzida quando o Vale do Nilo foi invadido por tribos nômades cerca de 3.100 a.C. [...] Existem diversas crenças a manter a prática da MGF. Diz-se que os homens a quiseram pelas seguintes razões: assegurar seus poderes; acreditar que suas mulheres não iriam procurar outros genitores ou que homens de outras tribos não as violariam; crer que as mulheres perderiam o desejo sexual. Em algumas tribos, acredita-se que o clitóris é diabólico e que se tocar na cabeça da criança durante o parto, ela estará condenada a inimagináveis desgraças. Outros pensam que essa falsa representação de um pênis minúsculo faria sombra à virilidade masculina (PIACENTINI, 2007, p. 120).

Estima-se que são mais de 100 milhões de mulheres e crianças que já passaram pelos procedimentos I, II ou III, em todo o mundo. Na África, o número das que correm o risco de se submeter a um destes procedimentos é de 3 milhões por ano. Há relatado em 28 países da África e em vários da Ásia e do Oriente Médio. Assim como também há relatado em outros países, como em grupos étnicos da América Central e América do Sul. Para maior horizonte, ainda que não possamos ter precisão pela falta de documentação, dados demográficos e de serviço de saúde vêm a indicar que as mulheres e crianças que vivem fora de seus países de origem podem vir a aumentar estes números.

A idade média em que costumam passar por esse procedimento é entre os 4 e 14 anos, período em que não há um discernimento pleno sobre o que se trata, sendo introduzidas por um membro mais velho da comunidade (geralmente mulher). Vale frisar, também, que esta prática é feita, normalmente, em comunidades patriarcais e religiosas, em que as famílias e seus respectivos chefes possuem forte poder sobre as decisões da mulher ou criança, valendo-se de valores morais e religiosos perpassados culturalmente.

A MGF, em algumas comunidades em que é praticada, está associada a cerimônias em que se costuma ser dados presentes, dinheiro e comida. Ou seja, são usados meios para afirmar que a pessoa está adotando uma conduta desejada pelos outros.

As formas utilizadas para incentivar as mulheres e crianças a passarem pelo procedimento de mutilação são de ordem sociocultural, higiene/saúde, espiritualidade/religião ou psico-sexuais.

Os incentivos socioculturais partem da ideia compartilhada de que a moça não se tornará mulher enquanto não passar pelo procedimento, o que a impede de conviver com as outras garotas do seio de sua comunidade. Existem também os que acreditam que, na hora do parto, a mulher não “circuncidada” pode cegar quem a estiver auxiliando. Entre outras, há também a ideia de que ela pode provocar a morte do recém-nascido ou do marido. Acredita-se, ainda, que a mutilação possa assegurar a virgindade da mulher, sem qual não poderá se casar.

A MGF também possui um apelo à higiene, pois os órgãos genitais externos (femininos) são considerados sujos. Como toda sujeira, eles devem ser removidos. Acrescenta-se a isso a crença de que, ao manter o clitóris intacto, este poderá crescer (assemelhando-se a um pênis). A mulher que se submete a esse procedimento, contudo, poderá ter benefícios como filhos mais bonitos – de acordo com o senso comum da comunidade.

Por sua vez, existem os motivos religiosos. Acredita-se que, ao passar pelos procedimentos de mutilação genital, a mulher será espiritualmente limpa. Estará mais a par do que Deus quis. Isto, porém, não está expresso em nenhum dos livros sagrados das comunidades em que há essa prática cultural. Exemplos disso são Bíblia e Corão.

Nenhuma religião promove ou condena a MGF. Ainda assim, mais de metade das meninas e mulheres de 4 dos 14 países em que há dados disponíveis, acreditam que a MGF é uma exigência religiosa. Por esta razão, uma estratégia efetiva para acabar com a MGF passa por trabalhar com os líderes religiosos

O outro incentivo diz respeito ao campo psicossexual, em que o senso comum das comunidades afirma que a mulher, ao não passar pelo processo de mutilação genital, alimenta desejos sexuais incontroláveis. Dessa forma, ela se encaminha a perder sua virgindade (pré-requisito para o casamento) prematuramente. Outro ponto a favor seria que, com a infibulação, o prazer sexual masculino seria maior por causa do estreitamento do orifício vaginal. Prevenir-se-ia a infidelidade e os divórcios.

A OMS, juntamente com outros órgãos, como a Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia, posiciona-se firmemente contrária a esse tipo de prática, que causa os mais variados danos às mulheres.

Como normalmente são os membros da própria comunidade que introduzem a mulher aos procedimentos de mutilação, não costuma estar presente a figura do profissional da saúde. A exceção, no caso, seria o Egito, onde foi estimado que 61% dos casos foram assistidos por profissionais da saúde no ano 2000. Dessa forma, parte das mulheres não tem acesso a elementos básicos, como anestesia, sendo o procedimento feito com ela em posição ginecológica. Ocorre isso na grande parte dos sítios rurais. Com isso, não obstante há casos de traumas e fraturas ósseas. Como também não há esterilização dos instrumentos utilizados, para cada caso, pode ocorrer transmissão de HIV ou até morte. Normalmente é recomendado algum tempo de repousa para a cicatrização ou, às vezes, fazer um ligamento do tornozelo às ancas.

A partir dos estudos publicados pela OMS, sabe-se que as consequências da MGF são várias, sendo elas de curto, médio e longo-prazo, que muitas vezes se estendem a complicações de ordem psicossocial.

De imediato, são notados que as complicações são dores intensas, choque, hemorragia, tétano, septicemia, retenção de urina, feridas abertas na região genital e lesões no tecido genial nas proximidades. Posteriormente, a longo-prazo, pode acontecer ainda mais consequências, tais como infecções urinárias recorrentes, cistos, esterilidade, aumento do risco de complicação no parto e morte de recém-nascidos, necessidade de novas intervenções cirúrgicas, quando, por exemplo, o processo de selagem ou estreitamente (tipo 3, mencionado anteriormente) deve ser corrigido para permitir relações sexuais ou parto. Contudo, em alguns casos volta a se fechar, necessitando de sucessivas intervenções, aumentando os riscos.

As complicações psicossociais, por sua vez, atuam de diversas formas. É um ato realizado, normalmente, em crianças não informadas. São estas intimidadas por familiares e pessoas de seu ciclo mais próximo, como os pais e amigos. Também, não muito raro, existe a obrigação para assistir à Mutilação Genital Feminina de outras crianças, o que acaba gerando fortes problemas psicológicos para ela. Algo que ficará marcado no seu desenvolvimento. É uma situação, para alguns, marcada pela submissão, inibição e supressão de sentimentos. “Fiquei muito revoltada. Aquele pânico não me saía da cabeça”, conta ao JPN Cadi, uma guineense a viver em Lisboa. As menstruações, posteriormente, são relatadas como tão dolorosas quanto o procedimento da MGF. Ainda há as mulheres que, pelo pesar que fora passar por essa prática, muitas vezes nem conseguem relembrar. Mostram-se, estas, em estado de tristeza profunda e dor emocional.

Tendo em vista o cuidadoso estudo elaborado sobre o que é a MGF, como ocorre e suas consequências – bastante nocivas –, faz-se possível começarmos a discutir qual a função dos Direitos Humanos diante dessa prática cultural. Partindo das explicações no que dizem respeito ao procedimento e às circunstâncias, fica evidente, desde a primeira vista, que a MGF viola uma série de princípios, padrões e normas que estão legalmente expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que tem como fundamento supremo o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana – cujos valores-base são liberdade, igualdade, segurança e solidariedade.

Sabe-se que os direitos humanos, após sua consolidação no século XVIII, passaram por transformações no sentido de que novas lutas foram agregando novos direitos ao conjunto. Se, a princípio, falar de direitos humanos significava tratar apenas de direitos civis e políticos, hoje tal denominação abarca também direitos sociais, direitos difusos – como o direito ao meio ambiente – e direitos coletivos – por exemplo, os direitos da mulher. Todavia, não obstante já terem passado mais de dois séculos do seu “nascimento” – cujo marco a história ocidental assenta na Revolução Francesa, de 1789 – sequer os direitos humanos ditos de primeira dimensão foram totalmente efetivados. Ainda que tais direitos sejam caracterizados como universais, isto é, pertencentes a todos os seres humanos, observa-se o desrespeito a direitos mais básicos – como o de não sofrer tratamento cruel ou degradante, para citar um – em várias partes do planeta. Algumas vezes esse desrespeito provém de afronta à própria lei que consagra os direitos. Outras vezes, eles acabam sendo violados por uma questão cultural, ou seja, por práticas culturais que, malgrado sejam exercidas há tempos e sejam aceitas por boa parte de seus praticantes, coíbem o desenvolvimento integral da pessoa, ferindo a dignidade humana e, por isso, constituindo uma ofensa aos direitos humanos.

Questionar a universalidade dos direitos humanos é perguntar sobre o seu fundamento. Embora Norberto Bobbio tenha asseverado que “o problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los”.

Em relação à dignidade humana, podemos afirmar que qualquer indivíduo deve ser tratado como centro e fim das ações. Em contrapartida, observa-se agressão a dois itens supramencionados (liberdade e igualdade). As garotas, por exemplo, têm a sua liberdade violentada na medida em que são intimidadas a passar pela MGF. Importante aludir que elas, normalmente, são sujeitas a esse procedimento bastante jovens e, em sua maior parte, não possuem informações sobre as consequências dela. Tal desconhecimento as priva de autonomia e da possibilidade de possuir um projeto de vida próprio. A igualdade, por sua vez, também é completamente ferida. São sociedades patriarcais, em que os homens têm quase total poder sobre as decisões das mulheres. Isto é visível quando observamos os motivos pelos quais tais práticas foram mantidas até os atuais dias, ressaltando a desigualdade de gênero existente.

Quando analisamos a MGF à luz das gerações (ou dimensões) dos Direitos Humanos, podemos retirar as seguintes conclusões:

Na primeira geração, que compreende os direitos civis, políticos e as liberdades clássicas, há violento ataque à integridade física e moral, fato impossível de ignorar. As mulheres e crianças que passam pelo procedimento têm seu corpo danificado, sem nenhuma razão médica, rasão pela qual passam a não usufruir dele de maneira plena. Tais prejuízos, físicos e psicologicos, limitam ou impedem a vida sexual , e, em muitas das vezes, enfrentam a impossibilidade para a maternidade. Nessa geração, além de várias outras, inclui-se ainda a já mencionada violação à liberdade.

Na segunda geração, em que se compreende os direitos econômicos, sociais e culturais, verifica-se a ofensa ao direito à saúde, uma vez que os procedimentos de MGF trazem inúmeras consequências nocivas a curto e longo-prazo por não contar com as menores observações acerca de higiene no procedimeto. As mulheres são sujeitas à infecções e dores lacinantes, somando-se ao fato de não serem orientadas com informações básicas sobre o procedimento e cuidado especializado após a mutilação.

A MGF, por atentar contra direitos essenciais do ser humano, tais como a liberdade, não discriminação por gênero, saúde, etc., é reconhecida como uma prática cultural nociva aos Direitos Humanos. Vale lembrar que estes, na sua condição de inalienáveis, não podem ser tirados por outros, nem podem ser cedidos voluntariamente por ninguém, além de que eles não podem ser suprimidos com o objetivo de promover outros, o que garante a característica da indivisibilidade dos Direitos Humanos.

Dessa forma, mesmo que haja, eventualmente, uma concordância da mulher para com a prática, é necessário fazer com que a indivisibilidade dos Direitos Humanos se sobressaia, pois razões de índole social e cultural não podem ser evocadas em defesa da MGF, já que direitos fundamentais estariam sendo suprimidos. É por esta razão que o Direito Internacional, mesmo protegendo os direitos à participação na vida cultural e liberdade religiosa, estipula limitações a esses direitos e liberdade justamente para garantir a dignidade e liberdade dos outros.

Há ainda, para apoiar a fundamentação da universalidade dos direitos, a perspectiva de Perces-Barba. Ele defende que a universalidade dos direitos tem a finalidade de combater as relações de desigualdade existente, pois são estas que dificultam a vivência daquela na prática. Podemos perceber isso, por exemplo, quando não são dadas as mesmas condições para mulheres e crianças, que têm dificuldade em ter acesso aos seus direitos.

Esses direitos estão elencados e têm o apoio de vários tratados internacionais e regionais. São resguardados por um Sistema Global de Proteção. Por meio de conferências e convenções mundiais, são complementados por vários documentos oriundos de um consenso político, a exemplo dos feitos pelas Nações Unidas.

O apoio também tem acontecido de maneira explícita em favor da mulher e criança, objetos dessa prática cultural indesejada, em tratados internacionais, como “Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres” e “Convenção sobre os Direitos da Criança”, em tratados regionais, como a “Carta Africana sobre Direitos Humanos e dos Povos” e “Protocolo sobre o Direitos da Mulher em África”, e em documentos de consenso, tais como “Declaração de Beijing” e “Declaração Universal da UNESCO sobre Diversidade Cultural”.

Um dos grandes desafios enfrentados pelos direitos humanos hoje, entretanto, é sustentar sua universalidade frente ao desponte das mais diversas culturas. O mundo sempre foi heterogêneo e a diversidade cultural sempre foi uma realidade. Contudo, a intensificação da globalização econômica ocorrida na segunda metade do século XX contribuiu para que a diversidade cultural despontasse como um dilema a ser discutido nas arenas política, jurídica, social e econômica.

A ideia do Estado moderno, homogêneo, com tônica na igualdade dos seus cidadãos, está em xeque. O desenvolvimento das tecnologias de modo geral e das tecnologias de informação e a mobilidade fruto desse processo contribuíram consideravelmente para gerar Estados cada vez mais multiculturais.

Nesse contexto, a corrente relativista vem a polemizar ainda mais a questão. Segundo os defensores dessa corrente, cada cultura é fruto de uma história e um contexto distintos no qual são levadas a adotar posturas diferentes para tratar seus assuntos. Dessa forma, incorre-se na ideia de que não cabe a ninguém julgar uma cultura diferente nem qualquer de suas práticas. Mas é preciso levantar o problema que dessa corrente surge: mesmo que uma comunidade esteja dominada por práticas desumanas, que tendem à degradação da dignidade da pessoa humana, as demais sociedades serão obrigadas a se omitirem na assistência das pessoas violadas.

Do outro lado, há a corrente universalista. Esta propõe que os valores fundamentais são essenciais a cada pessoa e, portanto, deve ser defendido independente da cultura a qual esta pertença. A crítica que se faz, porém, é que essa corrente iria provocar uma “ocidentalização”, ou seja, iriam impor valores ocidentais para as demais culturas. Os críticos da corrente universalista, portanto, acreditam que os direitos humanos estariam fechados ao diferente. Contudo, é preciso frisar que essa não é a postura adotada nesse trabalho. O que se pretende é a construção do diálogo entre as diferentes culturas, com o aprendizado recíproco.

Como nos ensina Boaventura de Sousa Santos, a primeira premissa para uma transformação é “a superação do debate sobre universalismo cultural”. Ambas as correntes possuem suas falhas intrínsecas, não podendo nenhuma alçar por si só uma solução efetiva para os problemas enfrentados pelos direitos humanos. Uma das propostas a solucionar parte desse problema é “propor diálogos interculturais sobre preocupações isomórficas”.

Somente ao olhar para as semelhanças existentes entre as culturas, pode-se chegar a um consenso. Não são elas seres totalmente alheios, mas que compartilham preocupações da mesma forma. Há, a exemplo, a preocupação com a família, com a segurança, nas mais diversas culturas. A partir disso, é possível manter o diálogo na busca de uma resposta mais adequada aos anseios de cada parte.

A globalização gera o temor da homogeneização e as reações a esse processo trazem à tona as diferentes identidades e culturas, que clamam ser respeitadas. Por outro lado, algumas práticas culturais, embora pertencentes a culturas bastante preciosas e ricas, acabam reprimindo o desenvolvimento integral da pessoa humana

Um dos grandes problemas enfrentados é fechamento das culturas à crítica. Nenhuma é isenta de erros. O processo que temos, em cada uma, é de dinamismo. Ocorrem mudanças por fatores internos e externos, o que não as torna um objeto estático, impassível de reforma.

Quando se condena a MGF, não se está condenando a cultura. É importante salientar que essa prática nociva não descaracterizaria a cultura das comunidades em que é praticada, estas que provavelmente até possuem muitas coisas que poderíamos aprender. O que se condena, portanto, é tão somente o ato que violenta de maneira nítida os direitos humanos, sem que a cultura seja descaracterizada.

Somente com os ideais dos direitos humanos, inclusive, é possível mantermos o multiculturalismo. Não seria possível a coexistência dessas diferentes culturas caso não houvesse valores compartilhados, de maneira que uma não visse na outra objeto de preocupação. Essa coexistência seria, nesse caso, insustentável, levando ao confronto delas entre si.

Registre-se que, mesmo num contexto tão plural, reivindicações em prol de direitos humanos universais ocorrem em diferentes partes do mundo. Por outro lado, a globalização econômica com a conseqüente hegemonia do mercado capitalista mundial gera o temor de homogeneização. Diante disso, seria possível defender a existência de direitos humanos universais? Apesar dos diversos modos de vida e das variadas maneiras de ver o mundo, o fato de sermos todos humanos implica haver algo em comum entre nós. Até a antropologia, que lida com questões relativas aos diferentes costumes e sociedades, tem representantes que admitem a existência de valores comuns. Como vimos, no que concerne aos direitos humanos, vislumbra-se inclusive um núcleo mínimo intangível, que corresponderia àqueles direitos que, embora não de forma absoluta, são encontrados em todos os patrimônios culturais e sistemas sociais: o direito à vida; o direito a não sofrer tortura nem pena ou tratamento cruel, desumano ou degradante; o direito de não ser reduzido à escravidão ou servidão; o direito à não-retroatividade da lei penal.

Ao sustentar que os direitos humanos devem servir como marco a partir do qual a diversidade cultural pode se manifestar, é comum deparar-se com o contraargumento de que os direitos humanos pertencem à cultura ocidental e, portanto, defender sua prevalência acaba sendo qualificado como um ato de imperialismo cultural. Ora, já é tempo de libertar os direitos humanos de sua origem. O episódio de terem ‘nascido’ em uma cultura específica não implica ficarem presos aos limites dessa procedência. Além disso, o individualismo presente nos direitos humanos – pelo fato de que quem possui direitos geralmente é o indivíduo –, tão criticado por culturas mais comunitaristas, vem adquirindo uma dimensão social e hoje já há também direitos humanos pertencentes a coletividades e à humanidade como um todo.

Outro fator que corrobora a desvinculação dos direitos humanos do Ocidente é o evento de que grupos oprimidos nas mais distintas sociedades “levantam a bandeira” dos direitos humanos à hora de lutar contra a opressão. Igualmente há que se superar a conexão ‘direitos humanos – liberalismo’, que é um forte elemento a mantê-los associados à cultura ocidental. É imprescindível destacar o fato de direitos humanos serem advogados por intelectuais de culturas diversas à do Ocidente.

É imprescindível destacar o fato de direitos humanos serem advogados por intelectuais de culturas diversas à do Ocidente. Chamam a atenção, em especial, os estudiosos muçulmanos, alguns dos quais afirmam que os direitos humanos são uma cultura de todas as culturas, ou expõem claramente que os valores-base desses direitos – dignidade humana, liberdade, igualdade – podem estar em diferentes sistemas culturais.

Ainda nos defrontamos com outra indagação: como estabelecer um limite entre aquilo que é cultura e deve ser respeitado e o que “se veste” de cultura para mascarar opressão, desigualdade, dominação? Um primeiro critério que despontou nesta pesquisa foi o da dignidade humana. Derivando esta das qualidades peculiares e intrínsecas ao seres humanos – sua capacidade de pensar, raciocinar, usar a linguagem para se comunicar, capacidade de escolha, de fazer julgamentos, de sonhar, de imaginar projetos de vida e de estabelecer com os seus semelhantes relações pautadas por critérios morais –, cheguei à conclusão de que práticas culturais que coíbam ou enfraqueçam tais capacidades não são emancipadoras e, portanto, merecem ser erradicadas.

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Sobre a autora
Kelly C. Lima Martins

Bacharela em Direito; Articulista na sessão Direito & justiça em oblogdowerneck.blogspot.com.br

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Kelly C. Martins. Direitos humanos x mutilação genital feminina.: A violência de gênero por trás da prática cultural.. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5578, 9 out. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69346. Acesso em: 21 nov. 2024.

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