As condições degradantes de trabalho, assim como qualquer outro elemento caracterizador do trabalho análogo à escravidão, não estão condicionadas pela anuência ou intenção do trabalhador. É a coerção coletiva do capital, através do mercado de trabalho, que viabiliza e está sempre presente na submissão de trabalhadores ao consumo de água envenenada por agrotóxicos, aos baixos salários pagos com atraso, aos alojamentos de lona preta, à ausência de banheiros, à inexistência de locais para refeição, ao fornecimento de comida estragada, a jornadas intermináveis, enfim, submetendo trabalhadores a condições que seriam próprias do que poderíamos chamar de escravismo típico (SALES, FILGUEIRAS, 2013).
No Brasil, a escravidão demorou séculos para deixar de ser um direito de propriedade do empregador sobre um ser humano para se tornar um crime (HADDAD, 2017, p. 130) e mesmo superando dificuldades normativas, a criminalização da escravidão enfrenta desafios substanciais. O Código Penal tipifica em seu artigo 149[1] o trabalho análogo ao de escravo no ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, a simples previsão legal da conduta ilícita a uma pena de reclusão de 2 a 8 anos por si só não foi suficiente para que a escravidão contemporânea deixasse de existir. Há dificuldades acadêmico-conceituais [alguns intelectuais temem que o uso indiscriminado da categoria escravidão venha a prejudicar a campanha propriamente dita contra a escravidão (BARBOSA, 2017, p. 174)], prático-conceituais [agentes públicos ainda mantém o discurso superado da necessidade de supressão da liberdade (NUNES, 2018, p. 215; BARBOSA, 2017, p. 183)], político/ideológicas (parlamentares e representantes patronais responsabilizam a própria vítima pobre escravizada pela condição degradante ou afirmam que o crime é artificialmente criado por autoridades mal intencionadas), jurisprudenciais (vide votos-vista vencidos do Ministro Gilmar Mendes no Inquérito n. 2131/DF, de 07.10.2010 e RE n. 398.041-6, de 19.12.2008), operacionais (poucos agentes públicos estão envolvidos no tema no Brasil, utilizando viaturas precárias para atuar em alvos situados em locais ermos, e também orçamentárias – em 2017 houve redução em 23% no número de operações de fiscalização em relação ao ano anterior – que impedem a efetivação do combate ao trabalho escravo). Analisaremos aqui, entretanto, uma dinâmica de enfrentamento ao trabalho escravo que tem alcançado relativa eficácia em um dos Estados da Federação – a Bahia – por nós intitulada de Força-Tarefa.
Com esta perspectiva, o objetivo do presente artigo é apresentar informações acerca das quatro peculiaridades deste grupo de trabalho na Bahia. São elas: sua forma de articulação democrática; priorização do trabalho preventivo; otimização de esforços; e caráter vinculante das sanções legais.
Articulação democrática e em rede
A Força-Tarefa de combate ao trabalho escravo é resultado das reuniões iniciais realizadas em 2015 no âmbito pela Coetrae/Bahia[2] (Comissão Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo, vinculada à Secretaria de Justiça, Desenvolvimento Social e Direitos Humanos - SJDHDS), visando atender a uma demanda específica do Estado, qual seja, a demora no atendimento das denúncias por parte do DETRAE – Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo, do Ministério do Trabalho. Algumas denúncias, por exemplo, demoravam tempo superior a um ano para serem objeto de fiscalização pelos Grupos Especiais de Fiscalização Móveis (GEFM).
A Força compreende, assim, uma iniciativa de instituições como Ministério Público do Trabalho, Ministério do Trabalho (extinto pelo atual Governo), Polícia Rodoviária Federal, Universidade Federal da Bahia, Secretaria de Estado de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social, Secretaria de Estado do Trabalho, Emprego, Renda e Desporto, Defensoria Pública da União, Organização Internacional do Trabalho, Polícia Federal, Ministério Público Federal, Sindicato dos Auditores-Fiscais do Trabalho no Estado da Bahia, Ministério Público do Estado da Bahia, entre outros, cada qual dando a sua pertinente contribuição. A Força-Tarefa foi gestada com o intuito de ter uma maior autonomia em relação ao cronograma de fiscalizações implementado pelo Ministério do Trabalho em nível nacional, em Brasília.
Sob a premissa de que a atuação isolada das instituições tende a diminuir a efetividade da política pública de combate ao trabalho escravo, acreditou-se que as atribuições deviam ser exercidas de forma conectada com os demais parceiros da rede. Além disso, não bastava que todos estivessem presentes nas reuniões bimestrais: também era fundamental sua participação no trabalho de campo, para evitar, em primeiro lugar, teorizações sobre o trabalho escravo contemporâneo sem lastro fático e empírico (dificuldade que impacta atualmente em decisões desfavoráveis da Justiça do Trabalho e Justiça Federal), e em segundo lugar, para uma perfeita identificação do efetivo papel que o órgão presente em campo pode desempenhar em um caso concreto. Afinal de contas, debater em uma reunião sobre a relevante atribuição de determinada Secretaria na execução da política pública assistencial é coisa diversa de olhar no olho do trabalhador resgatado e saber o que fazer, articular como abrigá-lo em pousadas ou casas de acolhimento municipal, cadastrá-lo em programas sociais, enfim, saber como providenciar sua proteção social.
Nos casos de trabalhadores indocumentados, por exemplo, a Secretaria de Justiça tem exercido um papel fundamental visando o encaminhamento destes trabalhadores aos órgãos governamentais responsáveis pela expedição de documentos como RG, CPF, ou Carteira de Trabalho. Quando são encontrados trabalhadores em situação de vulnerabilidade social e extrema pobreza, a Secretaria de Justiça tem encaminhado os obreiros aos órgãos assistenciais dos Municípios, para dar atendimento psicológico, cadastramento em programas assistenciais e/ou fornecimento de cestas básicas para alimentação, até o momento do deslocamento a suas residências. A Secretaria de Estado baiana, coordenadora dos Centros de Referência e Assistência Social e Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CRAS e CREAS), ainda encaminhava os resgatados para abrigos municipais, nos casos em que o empregador se recusava a fornecer hospedagem aos obreiros.
A presença da Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte, nas operações, por sua vez, permitiu o cadastramento de trabalhadores em cursos de capacitação e em programas estatais de inserção no mercado de trabalho, visando dar cumprimento ao art. 2º alínea “c”, parágrafo primeiro, da Lei n. 7998/90. Na Bahia, a SETRE é responsável pela coordenação do Projeto Ação Integrada (OLIVEIRA, 2017, p. 44, 48), no bojo da Agenda Bahia de Trabalho Decente, consoante Decreto n. 10454/2007 [3].
O grupo tinha por objeto: identificar com antecedência situações de trabalho análogo ao de escravo,permitir o contato dos parceiros da rede com a realidade do trabalho escravo; reprimir situações de trabalho análogo ao de escravo, com a formalização de termos de ajuste de conduta ou ações civis públicas; efetivar o resgate de trabalhadores; providenciar a emissão de documentos como a Carteira de Trabalho e Previdência Social; exigir o pagamento de verbas rescisórias e a percepção das parcelas de seguro-desemprego. Tudo isto com a máxima do “aqui agora”.
Ou seja, tudo acontecia ali mesmo na região, logo após o resgate, evitando-se o desencontro de informações ou a falta de contato posterior com os trabalhadores que, via de regra, são migrantes. Visando suprir uma lacuna na proteção e atenção às vítimas já identificada pela literatura (RIBEIRO, 2017, p. 272), o modus operandi da Força-Tarefa baiana efetivamente sensibilizava e impulsionava os órgãos estatais que podiam oferecer políticas públicas estruturais de assistência aos trabalhadores.
Não podemos deixar de mencionar, na esfera baiana, a existências das Leis Estaduais n. 12.356/2011, que instituiu o Fundo de Promoção do Trabalho Decente – Funtrad – para financiamento de ações de promoção do trabalho decente na Bahia, e a Lei n. 11.470/2009, que institui restrições à concessão e à manutenção de financiamentos e incentivos fiscais estaduais a empregadores que exploram trabalhadores em condições análogas à de escravos, esta ainda pendente de regulamentação.
Além da atuação em rede, destacamos o caráter democrático dos trabalhos realizados junto à Comissão Estadual. Com a realização frequente de reuniões e a comunicação constante dos membros através de redes sociais, o planejamento das operações era construído de forma coletiva, com um cronograma anual, permitindo-se a participação de todos os órgãos e parceiros da rede de enfrentamento, que podem sugerir os municípios que precisam ser fiscalizados, as atividades econômicas que demandam atuação prioritária e ainda quais deveriam ser os períodos de execução das operações. As reuniões funcionavam, também, como uma oportunidade para as instituições cobrarem e pressionarem, umas às outras, pelo exercício do seu papel corporativo de forma mais célere e eficaz.
Caráter preventivo
Neste ponto, a Força-Tarefa baiana distinguiu-se do Grupo Especial de Fiscalização, cujo foco de atuação é tradicionalmente repressivo (CAMPOS, 2011, p. 199), ou seja, impulsionado quase sempre por denúncias concretas. Os objetivos da unidade operacional da Bahia consistiam em identificar preventivamente situações de trabalho análogo ao de escravo, além de fazer com que os membros da rede parceira tivessem contato com a realidade do trabalho escravo e, a partir daí, adotassem providências necessárias de assistência aos resgatados.
Observamos que vários fatores levavam ao baixo quantitativo de denúncias apresentadas, por parte das vítimas ou de suas associações sindicais representativas, especialmente de trabalhadores rurais. As dificuldades consistiam: na falta de identificação do trabalhador em exercer um trabalho em condições degradantes; o difícil acesso dos trabalhadores a órgãos ou entidades que pudessem encaminhar as denúncias; a baixa qualificação dos agentes públicos e dos parceiros das entidades associativas em identificar irregularidades como verdadeiro trabalho em condições análogas à de escravo. Nesse contexto, foi necessário inverter a lógica de repressão - meramente reativa às denúncias - para ir até as regiões com indícios de trabalho escravo contemporâneo e diagnosticá-lo, ainda que sem provocação social. Levou-se em conta, neste planejamento, a existência de flagrantes anteriores de trabalho escravo – pela maior chance de reincidência a evidenciar uma praxis empresarial naquela região -, a maior vulnerabilidade dos trabalhadores, os fluxos migratórios e os picos de safra agrícola, com base em indicadores fornecidos pela Universidade Federal da Bahia, por meio do Grupo de Pesquisa Geografar, e de informações coletadas junto a entidades sindicais de trabalhadores. As operações eram realizadas em todas as regiões do estado, durante uma semana por mês, em média. Desde a instituição do grupo, mais de 40 operações foram realizadas.
Cerca de 30 dias antes das operações, coletavam-se informações junto a procuradores do trabalho, auditores-fiscais do trabalho e juízes do trabalho dos municípios a serem inspecionados, entre outros parceiros – como a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura e a Comissão Pastoral da Terra – como forma de identificar possíveis locais com exploração de trabalho escravo contemporâneo ou denúncias concretas. Nesta oportunidade, o MPT encaminhava ofícios-convite para as instituições parceiras que iriam participar da operação (que por sua vez deveriam indicar os nomes e a quantidade de representantes), as datas, e os equipamentos necessários às inspeções (máquinas fotográficas, GPS, impressoras, notebooks etc.). Uma semana antes da abordagem in loco, em contato com os auditores-fiscais do trabalho, procuradores e policiais que iriam integrar a Força-Tarefa, definia-se um roteiro de fiscalizações. Na ocasião, outros órgãos parceiros eram acionados para fornecer informações disponíveis sobre os empregadores que seriam inspecionados (cadastros em órgãos ambientais, investigações em curso no Ministério Público do Estado da Bahia, mapas de caminhamento, ou alvarás de construção junto ao CREA/Ba), para permitir um trabalho de inteligência preliminar.
Tudo isto se deu sem prejuízo de iniciativas de capacitação de agentes públicos e membros da sociedade civil. Assim é que, em um período de aproximadamente 3 anos, houve a realização de aproximadamente 20 eventos como audiências públicas, seminários envolvendo estudantes, e cursos de capacitação de agentes públicos (analistas do MPU, PRFs, atendentes de “Disque 100”, policiais militares, conselheiros tutelares, entre outros). A Força baiana teve por premissa a ideia de que, com maior conhecimento sobre o tema trabalho análogo a de escravo, qualquer pessoa pode veicular uma denúncia e assim potencializar a efetividade do combate a este crime.
Otimização dos esforços
A Força-Tarefa buscava ter um foco específico no combate ao trabalho escravo. Isto significa dizer que, ainda que a ida a campo não dependesse necessariamente de uma denúncia concreta, o objetivo do grupo era identificar situações de trabalho análogo ao de escravo: se após uma inspeção detalhada no estabelecimento empresarial não se detectava o crime em questão, as demais irregularidades encontradas (como falta de assinatura de CTPS ou de recolhimento do FGTS, violações às Normas Regulamentadoras) eram encaminhadas para as autoridades locais com atribuição para exercer sua atividade finalística. Otimizava-se, portanto, o tempo de trabalho da equipe, evitando-se a formalização de procedimentos burocráticos em face do empregador que praticou ilícitos administrativos mas não criminais (lavratura de autos de infração, requisição de documentos, expedição de notificações). Assim, se não constatado o trabalho em condições análogo à escravidão em determinada inspeção, a força-tarefa partia para a averiguação de outra denúncia, ou de outra empresa com indício de exploração ilegal.
.Um dia antes do início, os representantes da rede chegavam aos locais combinados. No dia inicial, era feito um briefing especificando o papel de cada instituição, ajustando e definindo o roteiro, e indicando as finalidades da Força-Tarefa, em especial para agentes públicos que participavam pela primeira vez deste tipo de grupo de trabalho. Durante quatro dias, fazendas e estabelecimentos empresariais eram inspecionados, sendo que ao final (quinto dia) havia o recebimento das empresas com trabalho escravo identificado para colheita de entrevistas, análise de documentos, entrega de multas, propositura de termos de ajuste de conduta, pagamento de rescisões e entrega de guias de Seguro. Como já visto, entidades como SETRE e SJDHS verificavam situações cadastrais e inscrição em programas sociais. Havendo resgate, ao fim da operação, os parceiros emitiam nota conjunta para as respectivas assessorias de comunicação.
De forma inovadora e com antecedência, a Polícia Rodoviária Federal e o Ministério Público do Estado da Bahia fizeram o mapeamento das localidades a serem inspecionadas (georreferenciamento).
Na Bahia, nos anos de 2015 a 2017, a força-tarefa foi coordenada pelo Ministério Público do Trabalho; a partir de 2018, ela passou a ser conduzida pelo Ministério do Trabalho, protagonista institucional natural para este tipo de atividade pública. As operações baianas eram mais rápidas e duravam apenas seis dias, ao invés dos doze que levam as organizadas pelo GEFM/MTb). Com foco restrito na identificação de trabalho análogo à escravidão, a força-tarefa baiana era, também, mais dinâmica: se não havia flagrante, encaminhavam-se as irregularidades trabalhistas ordinárias para instituições locais próprias, não se detendo no empreendimento inspecionado, otimizando o tempo e o recurso público. Ademais, a tônica do grupo era a prevenção, de forma que não se restringia a denúncias específicas para a busca ativa. Como se vê, a iniciativa da força-tarefa na Bahia era uma adaptação ao trabalho já realizado pelo GEFM há anos. Tinha por objetivo não rivalizar com seu “irmão” institucional sediado em Brasília, mas sim complementar a sua atuação e, mais do que isso, permitir que o GEFM concentrasse seus esforços nos demais estados da federação, já que a força-tarefa podia investigar as denúncias baianas. O DETRAE, aliás, ajudou muito as equipes baianas em suporte informacional (dados sobre resgatados, técnicas de inspeção) e na disponibilização de auditores-fiscais não vinculados à Superintendência do Ministério do Trabalho na Bahia.