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O julgamento de fake news e a continuidade da ilegalidade

22/06/2020 às 14:30
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Como pode a suposta vítima de infrações penais, em tese, conduzir uma investigação e, pior que isso, decretar medidas cautelares processuais penais restritivas, inclusive privativas de liberdade?

O Supremo Tribunal Federal concluiu, em 18.06.2020, o julgamento sobre a (i) legalidade do Inquérito 4781/DF, conhecido como inquérito das fake news.

Como já era esperado, a conclusão foi pela “legalidade” do feito em votação por 10 a 1, sendo o único dissidente o Ministro Marco Aurélio. [1]

Não há como não perceber que esse julgamento em si mesmo foi absolutamente ilegal, pelos mesmos motivos pelos quais o próprio Inquérito 4781/DF foi ilegal! Sobre essas ilegalidades do Inquérito, remete-se o leitor a outro trabalho já publicado.[2] Advirta-se que, aqui, novamente, não se irá lançar mão de maiores indicações bibliográficas, mas apenas tecer breve comentário acerca do caso, já que se trata de uma obviedade somente não acatada por cegos voluntários. O esforço acadêmico na discussão dessa questão seria uma espécie de tiro de canhão para matar pombos ou, talvez, mosquitos.

Ora, a questão versa especialmente sobre o reconhecimento unânime (ao menos desde a evolução do Sistema Inquisitório para o Acusatório) de que um magistrado não pode ser investigador, sob pena de ser parcial, fato este já reconhecido pelo próprio STF quando analisou o juiz inquisidor previsto na antiga Lei do Crime Organizado (Lei 9.034/95 – artigo 3º.), declarando sua inconstitucionalidade.

Também se refere à indiscutível impropriedade (para usar de um recurso eufemístico) de que sedizentes vítimas de supostas infrações penais sejam as responsáveis, seja pela investigação, ou por qualquer atuação processual ou pré-processual num caso concreto.

Partindo desses pressupostos básicos, de trivial conhecimento até por iniciantes dos cursos de Direito, é absolutamente indefensável a legalidade de uma investigação levada a efeito por magistrado, muito menos quando este é vítima. Ao magistrado cabe julgar, não investigar. Além disso, se é vítima deve assim se comportar, ou seja, como vítima e não como investigador, julgador, instrutor, juiz das garantias etc. Isso é de notoriedade absoluta e insofismável!

Tendo em vista que todos os Ministros do STF são apontados como potenciais vítimas dos supostos crimes em apuração no famigerado Inquérito 4781/DF, não poderiam investigar, e nem mesmo julgar, nada a respeito. Ademais, o próprio julgamento sobre a (i) legalidade do referido Inquérito é, desde logo, eivado de vício absoluto, pois todos são claramente impedidos de proferir esse julgamento. Se forem vítimas supostas desses crimes em tese investigados no Inquérito, como podem ser isentos para proferir um julgamento sobre a legalidade do Inquérito que os envolve??!!?

O próprio placar é eloquente (10X1). E o voto do Ministro Marco Aurélio, não se pode afirmar com absoluta certeza, mas aparenta muito mais uma dissidência amiga numa tentativa de dar impressão de alguma discussão sobre a questão na Corte. Lembra aquelas lutas-livres combinadas que antigamente passavam na televisão. Como disse, não se pode afirmar com certeza, mas é o que parece. E é importante lembrar, ainda uma vez mais, que a imparcialidade deve ser subjetiva (interna ao julgador) e objetiva (demonstrada publicamente com segurança para a população a serviço de quem está o Poder Judiciário de qualquer instância). A imparcialidade objetiva, neste caso, se perde completamente. Perde-se mais ainda quando os responsáveis pelo próprio Inquérito, Ministros Dias Toffoli e Alexandre de Moraes, proferem votos num julgamento que trata de possíveis ilegalidades cometidas por eles mesmos!!!! Ilegalidades que poderiam resultar para eles em responsabilizações de várias espécies, criminal (Abuso de Autoridade, em tese), administrativa e civil. Agora não são apenas vítimas que são investigadoras e juízas, são imputados que julgam a si mesmos!!!!

A retórica (negativa – erística) utilizada nos votos é assustadora. Citações de decisões antecedentes que não dizem respeito exatamente ao caso, alegação de Ministro de que as “formalidades” (sic) devem ceder espaço, tratando como “formalidades” a imparcialidade do julgador e do investigador no Sistema Acusatório, a competência ou incompetência do órgão julgador, a falta de atribuição do órgão incumbido da investigação, a violação da legalidade entre outros problemas gravíssimos, que jamais serão meras “formalidades”, mas garantias mínimas de um processo legal devido, pois sabe-se que forma é garantia! O Ministro em questão trata de fins primários e básicos do devido processo legal como se fossem meros instrumentos, confundindo de maneira inaceitável meios com fins.

Não é preciso seguir em nossas críticas, já bem delineadas em outro texto indicado em nota de rodapé neste trabalho.

É necessário dizer que, com o malfadado julgamento, outro inquérito já  instaurado foi também, por reflexo, legitimado, e com ordens de busca e apreensão e de prisão de pessoas decretadas por Ministro do STF quando tais pessoas não têm foro por prerrogativa de função e não há competência originária! Portanto, ordens emanadas de magistrado absolutamente incompetente!

Trata-se da alardeada prisão de Sara Winter por determinação do mesmo Ministro Alexandre de Moraes, também apontado como vítima de ameaça e injúria perpetradas, segundo consta, pela investigada (Inquérito STF 4828). Inclusive já há denúncia do Ministério Público contra a imputada e figurando o Ministro citado como vítima! [3] Novamente é preciso indagar: como pode a suposta vítima de infrações penais, em tese, conduzir uma investigação e, pior que isso, decretar medidas cautelares processuais penais restritivas, inclusive privativas de liberdade???!!!

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As ilegalidades são tão patentes como antes, mas não há, ao menos por agora, qualquer esperança de mudança desse quadro inusitado, principalmente porque, ao que parece, ao arrepio da Constituição e das leis, tudo continuará sendo decidido por juízo incompetente e impedido, desprovido de qualquer imparcialidade por decisão desse mesmo juízo que avalia a sua própria legitimidade de atuação!

Como a situação se apresenta, somente as instâncias internacionais poderão impedir o prosseguimento dessa situação, que se perpetuou e autolegitimou com o julgamento proferido a respeito da (i) legalidade do Inquérito 4781/DF, ensejando clima para todo tipo de abuso, sem que haja, por parte dos prejudicados, a quem recorrer no âmbito jurídico interno.


Notas

[1] D’AGOSTINHO, Rosanne. STF conclui julgamento e decide que é legal inquérito que apura fake news e ameaças a ministros. Disponível em https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/06/18/stf-conclui-julgamento-e-decide-que-e-legal-inquerito-que-apura-fake-news-e-ameacas-a-ministros.ghtml, acesso em 18.06.2020.

[2] CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Inquérito Judicial das “Fake News”: as obviedades que precisam ser explicadas. Disponível em https://eduardocabette.jusbrasil.com.br/artigos/854579298/inquerito-judicial-das-fake-news-as-obviedades-que-precisam-ser-explicadas, acesso em 18.06.2020. Também disponível na Revista Estudos Nacionais: https://www.estudosnacionais.com/25326/inquerito-judicial-das-fake-news-as-obviedades-que-precisam-ser-explicadas/, acesso em 18.06.2020.

[3] SARA Winter é presa em Brasília por ordem de Alexandre de Moraes. Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-jun-15/sara-winter-presa-brasilia-ordem-alexandre-moraes, acesso em 18.06.2020.

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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. O julgamento de fake news e a continuidade da ilegalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6200, 22 jun. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/83311. Acesso em: 29 mar. 2024.

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