1. INTRODUÇÃO
A crise mundial provocada pelo coronavírus (covid-19) tem causado uma série de impactos na economia e no universo laboral brasileiro, suscitando inúmeras discussões jurídicas na seara trabalhista.
Nesse contexto, destaca-se a Medida Provisória nº 936/2020, a qual foi editada, em síntese, com o intuito de oferecer soluções para a manutenção de empregos e de renda durante o período de calamidade pública derivada da referida doença.
Na aludida MP 936/2020, por sua vez, existe, dentre outros, um ponto que desperta algumas dúvidas, qual seja, a garantia provisória de emprego assegurada aos empregados que vierem a formalizar o ajuste de redução proporcional de salário/jornada ou de suspensão temporária do contrato de trabalho.
Assim, diante de sua grande importância prática, tal tema será analisado, interpretado e esclarecido ao longo deste artigo.
2. LINHAS GERAIS DA MP 936/2020
Antes de avançar para o exame da questão envolvendo a garantia de emprego, é fundamental apresentar as linhas gerais da MP 936/2020, já que essa contextualização viabilizará uma melhor compreensão da matéria.
Os instrumentos estipulados na MP 936/2020 (art. 3º) para evitar o desemprego em massa, decorrente da queda da atividade econômica durante a pandemia de coronavírus (covid-19) e, ao mesmo tempo, garantir que o nível de renda do trabalhador seja, de algum modo, mantido, foram os seguintes: a redução proporcional de jornada de trabalho e de salários por até noventa dias (art. 7º da MP); a suspensão temporária do contrato de trabalho por até sessenta dias (art. 8º da MP); o pagamento, pela União, do Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda aos empregados que pactuarem a redução proporcional de salário/jornada ou a suspensão temporária do contrato laboral, o qual tem como base o valor mensal do seguro-desemprego a que o empregado teria direito e é especificamente calculado segundo os ditames do art. 6º da MP.
O art. 16 da MP 936 ainda esclarece que, além de dever ser respeitado o prazo máximo para cada instituto (60 dias para a suspensão temporária do contrato laboral e 90 dias para a redução proporcional de salário/jornada), o “tempo máximo de redução proporcional de jornada e de salário e de suspensão temporária do contrato de trabalho, ainda que sucessivos, não poderá ser superior a noventa dias”.
A discussão mais ostensiva feita até agora em torno da Medida Provisória diz respeito à possibilidade de pactuação da suspensão temporária do contrato laboral ou da redução proporcional de salário/jornada por meio de simples acordo individual (art. 12 da MP 936), a qual, a despeito da literalidade do art. 7º, VI, da Constituição Federal - que exige a negociação coletiva como requisito para eventual diminuição salarial -, foi chancelada pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal (7 votos a 3) no julgamento, ocorrido no dia 17/04/2020, da Medida Cautelar pleiteada na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6363 (em tese há a possibilidade de entendimento diverso quando da apreciação do mérito da ADI, mas, em termo pragmáticos, a chance de isso ocorrer é praticamente nula).
Nesse contexto, foi prevista, no art. 10 da Medida Provisória, a garantia no emprego como contrapartida aos trabalhadores que vierem a pactuar a redução salarial ou a suspensão contratual, segundo os ditames da MP 936.
Prossegue-se.
3. A AMPLITUDE DA PROTEÇÃO CONFERIDA PELA GARANTIA PROVISÓRIA DE EMPREGO PREVISTA NA MP 936/2020
O art. 10, caput, da MP 936/2020, estabeleceu o seguinte
Art. 10. Fica reconhecida a garantia provisória no emprego ao empregado que receber o Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda, de que trata o art. 5º, em decorrência da redução da jornada de trabalho e de salário ou da suspensão temporária do contrato de trabalho de que trata esta Medida Provisória, nos seguintes termos:
Em seguida, estranhamente, o §1º do art. 10 da MP menciona o que a dispensa sem justa causa que ocorrer durante o período de garantia provisória no emprego previsto no caput do dispositivo sujeitará o empregador ao pagamento, além das parcelas rescisórias previstas na legislação em vigor, de uma indenização apurada com base nos salários do período estabilitário (vide incisos do art. §1º do art. 10 da MP 936)
Ora, a garantia provisória de emprego é expressão que, na doutrina, é tratada como equivalente a estabilidade temporária ou provisória no emprego, conforme se extrai dos ensinamentos de Maurício Godinho Delgado e Carlos Henrique Bezerra Leite. Essa garantia, segundo os exemplos ordinariamente conhecidos (estabilidade do dirigente sindical, estabilidade da gestante e estabilidade acidentária, destacadamente) visa restringir ou impedir o exercício do direito potestativo do empregador de dispensar o empregado arbitrariamente ou sem justa causa.
A jurisprudência também adota a nomenclatura “estabilidade” ou “estabilidade provisória” para se referir a proteções contra a dispensa imotivada ou sem justa causa de natureza meramente temporária (vide a estabilidade do dirigente sindical, da gestante e do acidentado previstas nas Súmulas 244, 369 e 378 do Tribunal Superior do Trabalho).
Nesse panorama, a prevalecer uma interpretação literal do §1º do art. 10, a MP 936, aparentemente o dispositivo estaria estipulando uma garantia provisória que não garante nada, já que apenas traria um custo adicional para a dispensa sem justa causa no período estabilitário, cujo valor é previsto nos incisos do §1º do art. 10 da MP, mas não proibiria a dispensa imotivada ou sem justa causa.
Ocorre que tal conclusão não faz sentido, pois implicaria em uma completa desnaturação do termo “garantia de emprego”, razão pela qual se compreende que o art. 10, §1º, da MP, estaria apenas prevendo a indenização que seria devida pelo empregador nas hipóteses em que a dispensa, ainda que equivocadamente, se der, no mundo fático, sem justa causa. Isso aconteceria nos seguintes casos:
- A empresa dispensa o empregado sem justa causa e este ajuíza ação trabalhista visando anular essa conduta após transcorrido o prazo estabilitário; ou o empregado propõe demanda judicial postulando a reintegração e o julgamento, com o acolhimento da tese de nulidade da dispensa, somente ocorre após o término do período de estabilidade provisória; ou o empregado ajuíza processo trabalhista, no curso do período de garantia no emprego, no qual pleiteia apenas a indenização do período estabilitário, já que, por algum justo motivo, entende não ser mais possível voltar a laborar para a empregadora. Nessas hipóteses, incidiria a lógica do entendimento já consolidado na Súmula 396, I, do TST, qual seja, a de que o trabalhador somente faria jus aos salários do período compreendido entre a data da despedida e o final do período de estabilidade. O art. 10, §1º, da MP, apenas regrou a indenização que seria devida nesses casos - o que será alvo de análise mais adiante -, evitando que em quaisquer hipóteses a jurisprudência condenasse a empresa pelos salários integrais do período;
- A empregadora dispensa sem justa causa o empregado em virtude da extinção da empresa ou do fechamento do estabelecimento, filial ou agência em que labore o empregado com estabilidade provisória (aplicação analógica das hipóteses acatadas pela lei de dispensa do empregado detentor de estabilidade decenal, vide artigos 497 e 498 da CLT). Também nesses casos, o art. 10, §1º, da MP, estaria estipulando a indenização que seria devida como consequência à dispensa sem justa causa, evitando-se que em todos os casos a jurisprudência condenasse a empresa pelos salários integrais do período (questão será melhor apreciada logo mais).
Confirma essa lógica o §2º do art. 10 da MP que estipula que “o disposto neste artigo não se aplica às hipóteses de dispensa a pedido ou por justa causa do empregado”. Ora, a contrario sensu, isso indica que a “garantia ao emprego” do artigo tem exatamente o sentido ordinariamente conhecido: o de proteção contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa.
Ademais, uma interpretação no sentido de que a garantia provisória ao emprego do art. 10 da MP 936 não estaria proibindo a dispensa arbitrária ou sem justa causa iria ferir o próprio artigo 7º, VI, da Constituição Federal, pois este dispositivo estabelece a irredutibilidade salarial como regra, de modo que sua flexibilização somente se justifica como alternativa temporária (reduzir de forma permanente os salários é transformar a excepcionalidade em regra) que visa evitar a dispensa dos trabalhadores e, por isso, deve, necessariamente, trazer como contrapartida, no mínimo, a estabilidade no emprego - proteção contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa - pelo menos durante o período em que perdurar o salário minorado.
Sem essa contrapartida específica, a flexibilização desse direito laboral termina redundando em pura e simples renúncia a um direito trabalhista de envergadura constitucional, não estando tal hipótese sob o alcance legítimo nem mesmo da negociação coletiva, quanto mais individual.
É necessário explicar que essa contrapartida mínima (estabilidade no emprego pelo menos durante o período em que perdurar o salário minorado) é que confere racionalidade jurídica à flexibilização da irredutibilidade salarial, pois somente a manutenção do emprego - e essa manutenção não pode ficar apenas no campo do discurso, devendo se transformar em cláusula negociada - pode justificar que o laborista seja afetado justamente na parte mais sensível de seu contrato de trabalho: seu salário, verba de natureza alimentar (art. 100, §1º, da CF) que viabiliza a sobrevivência e a manutenção do padrão de vida do empregado.
Felizmente, essa solução, decorrente da própria Lei das Leis, foi positivada pela Lei 13.467/2017, a qual inseriu o art. 611-A, §3º, na CLT (“Se for pactuada cláusula que reduza o salário ou a jornada, a convenção coletiva ou o acordo coletivo de trabalho deverão prever a proteção dos empregados contra dispensa imotivada durante o prazo de vigência do instrumento coletivo”), não fazendo sequer sentido que a legislação exija contrapartida para a negociação coletiva de redução salarial e não outorgue o mesmo direito aos acordos individuais de diminuição remuneratória (principal instrumento previsto pela MP 936/2020).
Outro aspecto que merece destaque e que quase passa despercebido é que o art. 10, caput, da MP 936/2020, garante a estabilidade provisória apenas para os empregados que perceberem o Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda.
Isso se deu porque a legislação visa a regular as pactuações de redução salarial/jornada e de suspensão temporária ocorridas nos estritos termos da medida provisória, as quais garantem o referido Benefício Emergencial, porém tal previsão deve ser interpretada teleologicamente, de modo a coibir desvios prejudiciais ao trabalhador na utilização dos instrumentos da MP 936.
No caso do art. 11, §2º, I, da MP 936 (negociação coletiva prevendo redução de jornada e salário inferior a 25%), o Benefício Emergencial não é assegurado. Só que, na linha do exposto, ainda que inaplicável ao caso os ditames do art. 10 da MP, alguma estabilidade precisará ser prevista na negociação coletiva respectiva, em respeito ao art. 7º, VI, da Constituição Federal, e do art. 611-A, §3º, na CLT, com redação dada pela Lei 13.467/2017.
Por outro ângulo, eventual(is) acordo(s) individual(is) de redução de salário/jornada ou suspensão contratual que extrapole(m) os limites temporais globais ou individuais de cada modalidade não prejudicará(ão) a garantia de emprego do laborista. Exemplo: é acordada individualmente a redução proporcional de salário e jornada pelo período de 150 dias, sem que a avença venha a ser imediatamente impugnada; pela lei o limite máximo é de 90 dias (art. 7º da MP), de modo que a partir do 91º dia o trabalhador deixará de receber o Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda; tal situação, altamente danosa para o trabalhador, não prejudicará o seu direito ao cálculo do direito a estabilidade pelo período integral do que foi acordado (150 dias), pois essa é a solução mais favorável ao trabalhador e que previne/pune eventuais tentativas de fraudes no uso da negociação individual sobre minoração remuneratória (a rigor, pelo que está escrito no art. 7º, VI, da CF, não seria nem mesmo possível acordo individual de redução salarial, mas, como já dito, esse não é o tema do artigo).
4. A ABRANGÊNCIA TEMPORAL DA GARANTIA PROVISÓRIA DE EMPREGO PREVISTA NA MP 936/2020
O art. 10, caput e incisos I e II, da MP 936/2020, estabeleceu o seguinte:
Art. 10. Fica reconhecida a garantia provisória no emprego ao empregado que receber o Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda, de que trata o art. 5º, em decorrência da redução da jornada de trabalho e de salário ou da suspensão temporária do contrato de trabalho de que trata esta Medida Provisória, nos seguintes termos:
I - durante o período acordado de redução da jornada de trabalho e de salário ou de suspensão temporária do contrato de trabalho; e
II - após o restabelecimento da jornada de trabalho e de salário ou do encerramento da suspensão temporária do contrato de trabalho, por período equivalente ao acordado para a redução ou a suspensão.
Importante esclarecer que o retorno à normalidade laboral (restabelecimento das condições contratuais anteriores à suspensão ou à redução de salário/jornada) ocorrerá no prazo de até dois dias corridos a contar (artigos 7º, parágrafo único, e 8º, §3º, da MP 936): da cessação do estado de calamidade pública; da data estabelecida no acordo individual como termo de encerramento do período de redução/suspensão pactuado; ou da data de comunicação do empregador que informe ao empregado sobre a sua decisão de antecipar o fim do período de redução/suspensão pactuado.
Nesse contexto, verifica-se que o artigo estabelece um período de garantia empregatícia básica (art. 10, I, da MP 936) e um período complementar (art. 10, I, da MP 936).
A complexidade do artigo pode ser revelada por dois exemplos.
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Suponha-se um cenário em que pactuada a suspensão temporária do contrato laboral por 30 dias. Encerrado o período de suspensão acordado em 27/05/2020, foi restabelecida a normalidade contratual dois dias após, em 29/05/2020.
Nesse contexto, a uma primeira vista, a garantia provisória ao emprego seria de 60 dias (30 dias de garantia de emprego básica, enquanto vigorou o acordo, mais 30 dias de garantia empregatícia complementar). Porém, o restabelecimento da normalidade contratual ocorreu somente após dois dias da data do encerramento da suspensão acordada de 30 dias, conforme autoriza a própria MP. Assim, por uma interpretação literal, esse intervalo estaria em um limbo não abrangido pela garantia de emprego, já que não se enquadra em nenhum dos incisos do caput do art. 10 da MP 936.
Entretanto, tal conclusão fragilizaria o objetivo almejado pela Medida Provisória, já que criaria um lapso temporal de desproteção ao trabalhador que poderia ser aproveitado pelo empregador malicioso.
Assim, a única interpretação que atende à finalidade da norma é aquela que assegura que esse dia de limbo (28/05/2020) também estaria acobertado pela garantia de emprego, até mesmo porque a demora de dois dias não ocorreu por culpa do empregado (se alguém foi culpado foi o próprio empregador que não se planejou para restabelecer imediatamente a normalidade contratual após o término previsível do pacto de suspensão) e as normas laborais devem ser interpretadas, em casos duvidosos, a favor do trabalhador (aplicação do princípio interpretativo “in dubio pro operario”).
E não é lícito que se pretenda “descontar” esse dia de limbo do período de garantia complementar previsto no art. 10, II, da MP 936, pois referido dispositivo estabelece o marco inicial do período protetivo adicional como sendo “após o restabelecimento da jornada de trabalho e de salário ou do encerramento da suspensão temporária do contrato de trabalho”.
Ou seja, a estabilidade total do empregado, nesse caso, seria de 61 dias.
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Suponha-se um caso em que foi acordada em 19/05/2020 a redução proporcional de salário e jornada pelo período de 60 dias (até 17/07/2020), porém, após 30 dias da celebração do acordo (17/06/2020) é cessado o estado de calamidade pública, sendo a normalidade contratual restabelecida no prazo de dois dias a contar do fim do estado de calamidade pública (19/06/2020). Ressalte-se que o exemplo teria os mesmos desdobramentos a seguir apresentados caso se supusesse que após 30 dias da celebração do acordo (17/06/2020), o empregador resolveu informar ao empregado sobre a sua decisão de antecipar o fim do período, tendo a normalidade contratual sido restabelecida em 19/06/2020.
Veja-se que o artigo 10, I, da MP 936/2020, menciona que a garantia provisória de emprego básica perdurará “durante o período acordado de redução da jornada de trabalho e de salário ou de suspensão temporária do contrato de trabalho”, e que o art. 10, II, da MP 936, menciona que a garantia de emprego complementar passa a contar do restabelecimento da normalidade contratual.
No exemplo, seguindo a interpretação literal, deveria ser compreendido que de 19/05/2020 até 17/07/2020, o empregado estaria protegido pela garantia de emprego nos termos do art. 10, I, da MP, já que foi esse o período acordado. Por outro lado, a contar de 19/06/2020 até 17/08/2020, estaria o empregado abrangido pela garantia de emprego complementar do art. 10, II, da MP. Veja-se que, durante o lapso de 19/06/2020 até 17/07/2020, o trabalhador estaria abrangido por uma “dupla” garantia (incidência simultânea das hipóteses dos incisos I e II do art. 10 da MP), a qual, entretanto, teria o mesmo efeito jurídico de uma garantia simples (incidência de apenas um dos incisos do art. 10 da MP). Resultado: garantia provisória de emprego de 19/05/2020 a 17/08/2020.
Não há nenhuma razão para se propor alguma interpretação diferente da gramatical acerca dos incisos do art. 10 da MP 936, pois mesmo a tentativa de se tentar evitar esse período aparentemente incoerente de “dupla garantia” levaria ao mesmo resultado prático do parágrafo anterior.
Explica-se.
Poder-se-ia compreender que o art. 10, I, da MP 936, apesar de mencionar que a garantia de emprego nele prevista perduraria durante o período acordado, somente teria eficácia enquanto vigente o acordo celebrado, já que, com o retorno à normalidade contratual laboral, o empregado passaria a contar com a proteção do art. 10, II, da MP 936, não fazendo sentido a incidência concomitante de ambos os incisos, já que não parece ter sido esse o espírito da norma.
Porém, indo por essa linha interpretativa, no caso do exemplo dado, o empregado teria a garantia provisória básica de 19/05/2020 a 17/06/2020, teria o limbo no dia 18/06/2020 (que, como visto na análise do exemplo anterior, deve ser considerado como sendo também protegido pela garantia empregatícia) e, por fim, teria a garantia provisória adicional de 19/06/2020 até 17/08/2020.
Resultado: garantia provisória de emprego de 19/05/2020 a 17/08/2020 (o mesmo que se tem com a interpretação puramente literal).
5. AS VERBAS RESCISÓRIAS E A INDENIZAÇÃO PELA VIOLAÇÃO À ESTABILIDADE PROVISÓRIA DE EMPREGO PREVISTA NA MP 936/2020
O art. 10, §1º, da MP 936, garante que a ruptura contratual sem justa causa ocorrida no curso da garantia provisória no emprego outorgada pelo caput do mesmo dispositivo gera o direito do empregado às verbas rescisórias previstas na legislação, além da indenização detalhada nos incisos do §1º do artigo.
A primeira pergunta que surge é: qual a base de cálculo das verbas rescisórias?
A definição dessa resposta deve partir de dois pontos: a suspensão contratual ou a redução proporcional de salário/jornada são medidas excepcionais e temporárias; a estabilidade provisória protege contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa, de modo que sequer deveria ser possível, no mundo ideal, qualquer dispensa imotivada ou sem justa causa durante o período de garantia empregatícia.
A partir dessas premissas, logicamente a base de cálculo das verbas rescisórias deve ser a remuneração normal do empregado (valor percebido antes de qualquer ajuste de redução salarial ou suspensão contratual). Solução em outro sentido (utilização como base do salário proporcionalmente reduzido, por exemplo) beneficiaria a empresa violadora da estabilidade e ainda faria com que a redução remuneratória excepcional e provisória impactasse de forma permanente e prejudicial ao trabalhador na apuração das verbas rescisórias, muitas das quais conquistadas integralmente (ou quase) sobre a égide do salário normal (férias vencidas mais um terço; aviso prévio proporcional etc.).
Outro ponto que merece destaque é a fórmula de cálculo da indenização prevista pela Medida Provisória em caso de ruptura sem justa causa durante a garantia de emprego, prevista no art. 10, §1º, I, II e III, da MP 936:
I - cinquenta por cento do salário a que o empregado teria direito no período de garantia provisória no emprego, na hipótese de redução de jornada de trabalho e de salário igual ou superior a vinte e cinco por cento e inferior a cinquenta por cento;
II - setenta e cinco por cento do salário a que o empregado teria direito no período de garantia provisória no emprego, na hipótese de redução de jornada de trabalho e de salário igual ou superior a cinquenta por cento e inferior a setenta por cento; ou
III - cem por cento do salário a que o empregado teria direito no período de garantia provisória no emprego, nas hipóteses de redução de jornada de trabalho e de salário em percentual superior a setenta por cento ou de suspensão temporária do contrato de trabalho.
Os incisos do §1º do art. 10 da MP 936 mencionam apenas o “período de garantia provisória no emprego” como interregno de apuração da indenização, o que poderia dar a entender que, mesmo que a dispensa ocorresse após já transcorrido determinado lapso do período de estabilidade, ainda assim a indenização deveria ser apurada com base no período total da estabilidade.
Entretanto, não tendo sido a expressão adotada tão clara no sentido de permitir indubitavelmente a interpretação apresentada no parágrafo retro, entende-se que se deve seguir o conhecimento já acumulado acerca da matéria (Súmula 396, I, do TST, destacadamente), de modo que, até mesmo por uma questão de proporcionalidade e isonomia, a referida indenização deve ser apurada do período compreendido entre a data da despedida e o final do período de estabilidade.
Por outro lado, o “salário” a que alude os incisos deve ser compreendido como dizendo respeito ao valor do salário normal do empregado (valor anterior à redução pactuada), já que o empregador adotou um instrumento excepcional e temporário com o intuito de manter o emprego do trabalhador e, não só não preservou o emprego do trabalhador, como ainda violou a estabilidade provisória prevista em lei, de modo que seu ato ilícito precisa ser censurado de forma compatível com a incoerência/danosidade de sua postura (restabelecimento imediato da normalidade contratual do empregado).
Isso porque, uma vez rompida a relação laboral sem justa causa, o trabalhador sem qualquer culpa, além de deixar de perceber o Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda, ainda perde o seu emprego, ficando totalmente desamparado dos objetivos da Medida Provisória n. 936/2020 (manter emprego e renda), o que naturalmente faz com que qualquer acordo de redução salarial que porventura ainda estivesse vigente perdesse imediatamente seu efeito.
Ademais, apesar de a expressão “salário” ter sido utilizada no singular, sistematicamente, guiando-se pelo Princípio interpretativo In dubio pro operario, deve-se entender o termo como dizendo respeito aos salários do período estabilitário remanescente (e não apenas a um salário mensal, o que resultaria em um valor ínfimo e muito prejudicial ao trabalhador). Nesse sentido, cita-se o entendimento de André Dorster e Priscilla Carrieri Donegá.
Nesse contexto, não se pode aceitar, tal como colocado nos incisos I e II do §1º do art. 10 da MP 936, que a indenização estabilitária simplesmente seja apurada de forma proporcional ao percentual de redução salarial/jornada anteriormente pactuado.
Ora, se o empregado pode vir a ser reintegrado - e essa hipótese é inegável, já que se está falando de uma garantia provisória ao emprego -, é lógico que ele deverá receber, caso reintegrado, os salários normais integrais do período em que, por conta do ato ilícito do empregador, esteve sem laborar.
Isso porque, conforme já argumentado, a partir do momento da dispensa ilícita do empregado, a contratualidade laboral volta imediatamente às suas condições normais (eventuais pactos de redução salarial ainda vigentes são prejudicados pelo ato ilícito do empregador incompatível com a estabilidade provisória do trabalhador e com as finalidades da MP 936), de modo que a remuneração a que o laborista passaria a fazer jus caso fosse imediatamente reintegrado seria a normal (paga antes de qualquer acordo de diminuição de salário/jornada). Nesse caso, a fórmula de cálculo proporcional ao percentual de redução salarial é uma verdadeira supressão do direito do trabalhador, já que torna diferentes as reparações por meio da tutela específica (reintegração) e da tutela indenizatória, em afronta inaceitável ao Princípio da Isonomia (art. 5º, caput, da CF), além de oferecer uma solução que beneficia o empregador descumpridor de acordos e desrespeitador da estabilidade provisória garantida pela MP 936, em manifesta violação à dignidade do trabalhador e à função protetiva do Direito do Trabalho (artigos 1º, III e IV, e 7º, caput, da CF).
Assim, os incisos I e II do §1º do art. 10 da MP 936/2020 são inconstitucionais e a indenização pela dispensa sem justa causa ocorrida no curso da garantia de emprego deve corresponder aos salários integrais normais do período compreendido entre a data da despedida e o final do período de estabilidade.
6. CONCLUSÕES
Diante de tudo que foi dito, pode-se concluir que:
- O art. 10 da MP 936/2020 assegura aos empregados proteção contra a dispensa arbitrária ou sem justa;
- Apesar de o art. 10, caput, da MP 936, garantir a estabilidade provisória apenas para os empregados que perceberem o Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda, tal previsão deve ser interpretada teleologicamente, de modo a coibir desvios prejudiciais ao trabalhador na utilização dos instrumentos da MP 936. Assim, caso o(s) acordo(s) individual(is) de redução de salário/jornada ou suspensão contratual que extrapole(m) os limites temporais globais (90 dias, vide art. 16 da MP 936) ou individuais de cada modalidade (90 dias para o acordo de redução proporcional de salário/jornada; 60 dias para a suspensão temporária do contrato de trabalho), a garantia de emprego deverá ser calculada de acordo com a quantidade de dias acordados (exemplo: caso “negociada” individualmente a redução de salário/jornada por 150 dias, a estabilidade provisória deverá ser calculada levando em conta esta quantidade pactuada, a despeito da nulidade do acordo);
- Eventual dia de “limbo” existente entre o término do acordo de redução/suspensão e o efetivo restabelecimento da normalidade contratual (artigos 7º, parágrafo único, e 8º, §3º, da MP 936) deverá ser considerado como também albergado pela garantia empregatícia prevista no art. 10 da MP 936, a despeito de a hipótese não se enquadrar estritamente em nenhum dos dois incisos do referido art. 10. Essa é a interpretação que respeita o Princípio In dubio pro operario, pois assegura a eficácia da estabilidade provisória prevista no art. 10 e evita a existência de uma “brecha” legal temporal que possa ser utilizada para prejudicar o trabalhador;
- Caso no mundo fático ocorra a dispensa sem justa causa no curso do período de garantia ao emprego, as verbas rescisórias devidas deverão ser apuradas levando em conta a remuneração normal do empregado (valor percebido antes de qualquer ajuste de redução salarial ou suspensão contratual). Solução em outro sentido (utilização como base do salário proporcionalmente reduzido, por exemplo) beneficiaria a empresa violadora da estabilidade e ainda faria com que a redução remuneratória excepcional e provisória impactasse de forma permanente e prejudicial ao trabalhador na apuração das verbas rescisórias, muitas das quais conquistadas integralmente (ou quase) sobre a égide do salário normal (férias vencidas mais um terço; aviso prévio proporcional etc.);
- A indenização prevista no §1º do art. 10 da MP 936 deve ser apurada do período compreendido entre a data da despedida e o final do período de estabilidade, pois essa é a interpretação que oferece a solução mais isonômica, proporcional e compatível com o conhecimento já acumulado sobre o tema (Súmula 396, I, do, TST);
- O termo “salário” a que alude os incisos do art. 10 da MP 936 deve ser compreendido como dizendo respeito ao valor do salário normal do empregado (valor anterior à redução pactuada), já que o empregador adotou um instrumento excepcional e temporário com o intuito de manter o emprego do trabalhador e, não só não preservou o emprego do trabalhador, como ainda violou a estabilidade provisória prevista em lei, de modo que seu ato ilícito precisa ser censurado de forma compatível com a incoerência/danosidade de sua postura (restabelecimento imediato da normalidade contratual do empregado). Ademais, apesar de a expressão “salário” ter sido utilizada no singular, sistematicamente, guiando-se pelo Princípio interpretativo In dubio pro operario, deve-se entender o termo como dizendo respeito aos salários do período estabilitário remanescente (e não apenas a um salário mensal, o que resultaria em um valor ínfimo e muito prejudicial ao trabalhador);
- A fórmula de cálculo proporcional ao percentual de redução salarial prevista nos incisos I e II do §1º do art. 10 da MP 936 é uma verdadeira supressão do direito do trabalhador, já que torna diferentes as reparações por meio da tutela específica (reintegração) e da tutela indenizatória, em afronta inaceitável ao Princípio da Isonomia (art. 5º, caput, da CF), além de oferecer uma solução que beneficia o empregador descumpridor de acordos e desrespeitador da estabilidade provisória garantida pela MP 936, em manifesta violação à dignidade do trabalhador e à função protetiva do Direito do Trabalho (artigos 1º, III e IV, e 7º, caput, da CF). Assim, os incisos I e II do §1º do art. 10 da MP 936/2020 são inconstitucionais e a indenização pela dispensa sem justa causa ocorrida no curso da garantia de emprego deve corresponder aos salários integrais normais do período compreendido entre a data da despedida e o final do período de estabilidade.
REFERÊNCIAS
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 16 ed. São Paulo: LTr, 2017.
DORSTER, André; DONEGÁ, Priscilla Carrieri. MP 936/20 e as Relações de Trabalho. Migalhas, 2020. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/323794/mp-936-20-e-as-relacoes-de-trabalho. Acesso em 16 abr. 2020.
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