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A morte de Rubens Paiva

24/09/2020 às 19:40
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Rubens Beyrodt Paiva, dado como desaparecido em 20 de janeiro de 1971, à época do regime militar, teve sua casa invadida por pessoas armadas de metralhadoras, sem qualquer mandado de prisão...

I – O FATO

Crítico do regime militar, Rubens Paiva teve o mandato cassado pelo AI-1 (Ato institucional nº 1), em 1964, e os direitos políticos suspensos por dez anos.  

Rubens Beyrodt Paiva, dado como desaparecido em 20 de janeiro de 1971, teve sua casa invadida por pessoas armadas de metralhadoras que, sem apresentar qualquer mandado de prisão, numa ilegalidade flagrante, se diziam da Aeronáutica. Teve Rubens Paiva tempo de se arrumar e saiu de terno e gravata, como era comum o traje àquela época, guiando o próprio carro, cuja recuperação posterior seria a prova de que foi preso.  

Rubens Paiva foi dado como desaparecido. Aliás, do que se sabe de nota oficial dos órgãos de segurança, o carro que o conduziu dois dias depois da prisão ao Centro de Operações de Defesa Interna (CODI) teria sido abalroado e atacado por indivíduos desconhecidos que o teriam seqüestrado.  

No entanto, relatos dão a indicação de que morreu sob tortura.  

Por sua vez, sua esposa, Maria Lucrécia Eunice Paiva permaneceu, durante doze dias, incomunicável, após haver sido detida com sua filha Eliana, então com quinze anos, esta presa por 24 horas e solta no dia seguinte e deixada, na Praça Saens Peña, no bairro da Tijuca, cidade do Rio de Janeiro.  

Eliana e Maria Lucrécia Eunice Paiva foram interrogadas na mesma sala em que as pessoas eram torturadas, tendo visto o pau-de-arara, sangue e o retrato do marido nas fichas de reconhecimento, além de ouvir os gritos dos torturados no DOI-Codi.

Em novembro de 2012, chegou ao conhecimento do País a ficha de entrada de Rubens Paiva em uma unidade do DOI-Codi no Rio de Janeiro. Até então, não havia prova documental da presença dele no local, apenas testemunhos.  

A divulgação recente do Informe nº 70 do DOI-Codi carioca, relata  as circunstâncias em que o ex-deputado Rubens Paiva foi levado de sua casa no Rio de Janeiro, por agentes do Cisa(extinto órgão de inteligência da Aeronáutica).  

Assim se tem conhecimento de que realmente Rubens Paiva foi localizado, detido e levado para o QG da 3ª Zona-Aérea e, de lá, para o DOI-Codi do Rio de Janeiro.  

O informe referenciado relata que o Cisa recebeu ordens para fazer uma revista em um avião da Varig, procedente de Santiago do Chile, que chegaria ao Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, às zero hora do dia 20 de janeiro de 1971.  

Naquela ocasião, foram detidas as passageiras, que foram identificadas como Cecília Viveiros de Castro e Marilene de Lima Coron, mãe e cunhada do brasileiro exilado Luiz Rodolfo Viveiros de Castro.  

Elas traziam cartas de exilados políticos que viviam, na cidade de Santiago, e que, segundo se cita no informe, ¨deveriam ser entregues no Rio a um senhor por nome Rubens que as faria chegar aos destinatários.¨ 

Sabe-se que, cerca de uma semana antes, a mesma aeronave da Varig havia levado para o Chile 70 (setenta) ex-presos políticos libertados em troca do Embaixador suíço no Brasil, Giovanni Bucher, que fora seqüestrado em dezembro de 1970 pela organização Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).  

Relata-se que foi informado por Marilene o número do telefone pelo qual constaria Paiva, o que teria levado os agentes a descobrirem o endereço de Rubens Paiva. Isso porque foi feito um levantamento que apurou que o aparelho 227-5362, estava instalado à Avenida Delfin Moreira, 80, em nome de Rubens Beyrodt Paiva, consoante se leu do informe retromencionado.  

Disse Marcelo Rubens Paiva (Um tormento que não acaba, Os primeiros 45 anos de Veja, pág. 55):  

- Meu pai apanhou assim que chegou à III Zona Área. Levou uma coronhada de submetralhadora desferida pelo brigadeiro João Paulo Burnier, que estourou sua carótida. segundo a professora (Cecília Viveiros de Castro). Ambos foram transferidos no assoalho de um carro no dia seguinte para a sede do DOI-CODI, no quartel do I Exército. Foram obrigados a ficar de pé de capuz com as mãos para cima durante horas. 

O Ex-Coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Cláudio Fontelles, cruzou  dados que mostram que depois de preso no Cisa (Força Aérea), Rubens Paiva foi levado para o DOI-Codi (Exército) e de lá foi examinado pelo médico da ditadura Amilcar Lobo(já falecido), que relatou que ele estava com hemorragia interna.  

Lobo afirma que foi chamado em casa numa madrugada de janeiro de 1971 para assistir Rubens Paiva. Levado à cela onde ele estava, o médico o examinou e constatou que ele estava com “abdomen em tábua, o que em linguagem médica pode caracterizar uma hemorragia abdominal, sendo que naquela situação parecia ter havido uma ruptura hepática”. 

Disse, ainda, Lobo, que o paciente lhe afirmara ser o ex-deputado e que ¨aconselhou que o preso fosse hospitalizado, mas que, no dia seguinte, quando assumiu seu horário de serviço normal, foi informado que ele havia morrido¨, acrescentando ter visto escoriações em Rubens Paiva e que pode afirmar que ele havia sido torturado.  

Como disse, Marcelo Rubens Paiva, ¨imaginar esse sujeito boa-praça, aos 41 anos, nu, em um pau-de-arara, levando choques aos gritos de ¨Fala, comunista safado!, Terrorista!¨, apanhando até a morte... Não dá. Não encaixa.¨ 

Em sua investigação, Procuradores da República, com atribuição para o caso, ouviram vinte e quatro pessoas, colhendo mais de trinta horas de depoimentos. Num dos mais importantes foi relatado que Rubens Paiva foi visto, por uma porta aberta, sendo torturado pelo então Tenente Antônio Carlos Hughes de Carvalho, já falecido (sujeito a extinção da punibilidade em face do artigo 107, I, do Código Penal), sendo o fato levado a ciência do Comandante do DOI – I, no dia 21 de janeiro de 1971.  

Releva-se que, a princípio, o procedimento instaurado, em 2012, pelo Ministério Público Federal, caminha para denunciar quatro militares: os oficiais reformados José Antônio Nogueira Belham – que comandava o Destacamento de Operações de Informações do Primeiro Exército (DOI – I), na Rua Barão de Mesquita – na Tijuca, Rio de Janeiro, onde Rubens Paiva morreu sob tortura, e Raymundo Ronaldo Campos, que admitiu ter montado uma farsa para forjar a fuga do ex-deputado, além dos irmãos e ex-sargentos Jacy e Jurandyr Ochsendorf, ainda envolvidos na fraude. Some-se a isso que relata-se que a missão de desaparecer com o cadáver de Rubens Paiva foi dada a um oficial que teria de dar fim definitivo ao corpo que foi enterrado dois anos antes nas areias do Recreio dos Bandeirantes, no Rio de Janeiro.  

As investigações procedidas revelam que o corpo de Rubens Paiva foi enterrado e desenterrado pelos próprios agentes do DOI no Alto da Boa Vista, na cidade do Rio de Janeiro. Eles o retiraram dali por temer que uma obra na Avenida Edson Passou acabasse por levar a descobrir o local, que seria muito próximo à pista. O corpo foi enterrado na praia do Recreio e desenterrado, em 1973, e levado de lanche para o alto mar.  


II – DOS CRIMES

Diversos crimes foram cometidos: sequestro e cárcere privado, homicídio qualificado (mediante tortura, artigo 121, § 2º, inciso III do CP), fraude processual(artigo 347 do CP), destruição e ocultação de cadáver (artigo 211 do Código Penal).  

O crime de sequestro ou cárcere privado (artigo 148, § 2º do Código Penal) é crime permanente, cuja consumação se protrai durante todo o tempo em que a vítima fica privada da liberdade, a partir do momento em que foi arrebatada pelo agente. De outro modo, há crime permanente na conduta de ocultar um cadáver, na medida em que se prove a morte de Rubens Paiva, consoante se lê do artigo 211 do Código Penal. Em face disso, não há que falar em prescrição penal.  

Necessário falar sobre o crime de destruição, subtração e ocultação de cadáver.  

A destruição do cadáver é a primeira modalidade na qual o delinquente pode praticar o crime, de forma a perder sua essência ou formas primitivas, atentando contra a sua existência. A segunda forma é a subtração. Subtrair é verbo que ainda é empregado para o crime de furto e significa tirar a coisa da esfera de proteção, guarda ou disponibilidade de outrem (o cadáver é retirado da situação normal e regular em que se encontra sob a proteção da família, parentes, amigos, vigias do cemitério, etc).  Por sua vez, ocultar, que foi o crime cometido no caso trazido à discussão, equivale a esconder, o que implica fazer desaparecer o cadáver, sem destruí-lo.

Nelson Hungria (Comentários ao Código Penal, volume VIII, pág. 76) faz distinção entre a ocultação da subtração. Disse que aquela somente pode ocorrer antes do sepultamento; pressupõe que o cadáver não se ache no local de destino. O objeto material do crime é o cadáver. Por certo, trata-se de crime de ação múltipla, pois a prática de várias ações mencionadas na lei dá lugar a apenas um delito. Além disso, o crime previsto no artigo 211 do Código Penal é crime permanente. Isso significa que continua a ser perpetrado enquanto a pessoa não é localizada, enquanto não se esclarece o que aconteceu. O Supremo Tribunal Federal (RT 784/530) entendeu que o crime de ocultação de cadáver é crime permanente que subsiste até que o cadáver seja descoberto, pois ocultar é esconder e não simplesmente remover.  

Ainda está pendente de julgamento definitivo, no Supremo Tribunal Federal, Arguição de descumprimento de  Preceito Fundamental 153/DF,  ajuizada pela Ordem dos Advogados Nacional, visando o reconhecimento de que a Lei de Anistia, não está integrada com a ordem constitucional de 1988.  


III – A PRESCRIÇÃO E OS CRIMES CONTRA A HUMANIDADE

Discute-se a questão da prescrição com relação aos chamados crimes contra a humanidade.  

É sabido que a Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos condenou o Estado brasileiro por não haver investigado crimes cometidos pela ditadura militar no combate à guerrilha do Araguaia.  

Na sentença, datada de 24 de novembro de 2010, afirma-se que a Lei de Anistia de 1979, na verdade uma Lei-Medida, é incompatível com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), do qual o Brasil é signatário.  

Entendeu a Corte Interamericana que o Brasil não empreendeu as ações necessárias para investigar, julgar e punir os responsáveis pelo desaparecimento forçado das 62 vítimas e pela execução extrajudicial de Maria Lúcia Petit da Silva, cujos restos mortais foram encontrados em 14 de maio de 1996.  

A Lei 6.683/1979 não se aplica com relação aos chamados crimes desumanos, como assassinatos, torturas, generalizados e sistemáticos, praticados contra a população civil, como ocorreu no conflito armado durante a ditadura militar, ilícitos esses cometidos pelos agentes públicos ou pessoas que promoveram perseguição arbitrária durante o regime ditatorial, com conhecimento desses agentes.  

Para a Corte Interamericana estamos diante de crimes imprescritíveis.  

Diversos são os pronunciamentos, nesse sentido, que foram emitidos, em que destaco: Comitê de Direitos Humanos da ONU, em seu relatório de 2007; pronunciamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no Caso Barrios Altos; Caso Almonacid Arellano, Caso Goiburú, etc.  

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Lembre-se que a imprescritibilidade dos crimes de lesa-humanidade decorre seja de instrumentos já existentes no Direito Internacional, como instrumentos da ONU, de 1946 como ainda da própria jurisprudência da citada Corte Interamericana de Direitos Humanos, que aplica, em sede internacional, a Convenção citada, que integra o ordenamento jurídico brasileiro, como se lê da Emenda Constitucional 45/2004.  

É certo que a mais recente interpretação da Lei de Anistia pelo Supremo Tribunal Federal não permitiria a punição de torturadores. Aliás, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil entrou com recurso contra essa decisão, que ainda não foi objeto de apreciação.  

É o que ocorre com relação à Lei de Anistia, que, como bem alertou Dalmo Dalari, não se aplica aos crimes contra a humanidade, que não ficam sujeitos à prescrição.  

Fala-se que o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ajuizará ação constitucional ao Supremo Tribunal Federal onde tentará demonstrar a incompatibilidade da chamada lei de anistia às normas de direitos humanos acolhidas por nosso sistema jurídico. Seu objetivo será levar a discussão sobre esses tratados internacionais e demonstrar que os crimes de tortura, cometidos durante o regime militar são imprescritíveis.  

Outra deve ser a estratégia a ser levada nas ações penais ajuizadas contra torturas naquele triste período da história nacional, levantando a premissa de que os crimes de ocultação envolvendo militantes, que desapareceram durante o chamado regime militar é crime permanente, que se protrai com o tempo.  


IV – ENTENDIMENTO DO STJ

 No entanto, por unanimidade, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu manter suspensa a ação penal contra cinco militares acusados de envolvimento na morte do ex-deputado federal Rubens Paiva, em janeiro de 1971, durante a ditadura militar.  

O julgamento foi iniciado em maio e encerrado, no dia 15 de setembro de 2020, com voto do ministro Felix Fischer - que, após pedir vista do processo, acompanhou o relator, ministro Joel Ilan Paciornik. O entendimento dos ministros do Superior Tribunal de Justiça foi de que a Lei da Anistia impede a punição dos militares em razão da prescrição do caso.  

Na tentativa de trancar o processo, as defesas dos militares acionaram o Superior Tribunal de Justiça em 2015. O principal ponto de divergência entre os ministros, que impedia uma definição sobre o pedido, era sobre a o caráter permanente do crime de ocultação de cadáver, nunca encontrado. Por fim, a Quinta Turma entendeu que a ocultação, praticada há 49 anos, não pode ser dotada de algum viés temporário, conforme alegava a acusação.  

Para a Quinta Turma do STJ, a ação de ocultar cadáver prevista no artigo 211 do Código Penal só é permanente quando se depreende que o agente responsável espera, em um momento ou outro, que o corpo, objeto jurídico do crime, venha a ser encontrado. Quando a ocultação praticada há 49 anos ainda não foi desvelada, não há viés temporário. Não pode, portanto, ser classificada como permanente.  

O tema tangenciou a análise do recurso em Habeas Corpus pela 5ª Turma, em dezembro de 2018, e foi definido em julgamento dos embargos de declaração. 

Segundo o relator, da interpretação da doutrina somente é possível afirmar que a ação de "ocultar cadáver" é permanente quando se depreende que o agente responsável espera, em um momento ou outro, que o corpo, objeto jurídico do crime, venha a ser encontrado. 

"Dentro das circunstâncias fáticas delineadas, não é de se deduzir que a ocultação, excluindo a hipótese de destruição, como pretende a denúncia, praticada há 49 anos seja dotada de algum viés temporário. Não pode, portanto, a conduta ser classificada como permanente, mas instantânea de efeitos permanentes", concluiu. 

O ministro Felix Fischer chegou a propor Questão de Ordem para suspender o julgamento do recurso até decisão definitiva do STF na reclamação. A 5ª Turma, no entanto, entendeu que não haveria prejuízo na análise. 

Data venia, a respeitável decisão nega vigência ao disposto no Código Penal, quanto ao crime permanente de ocultação de cadáver e nega convenção internacional que proclama ter havido, na hipótese, um crime contra a humanidade.  

Penso, com o devido respeito, que será caso do órgão do Ministério Público Federal, que funciona no caso, estudar a possibilidade de ajuizamento de embargos de declaração dos embargos de declaração julgados, uma vez que persiste a omissão e contradição no julgamento, data vênia.  

Em setembro de 2014, o ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal, concedeu liminar para suspender a tramitação da ação penal, no âmbito de uma reclamação por afronta à Lei da Anistia (Lei 6.683/79). O caso (Reclamação 18.686) ainda não teve o mérito julgado e está concluso ao ministro Alexandre de Moraes, sucessor na cadeira do ministro Teori na corte. 

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. A morte de Rubens Paiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6294, 24 set. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/85606. Acesso em: 22 dez. 2024.

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