Capa da publicação ABIN e o caso Queiroz: mais um ato de improbidade administrativa
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Um ato de improbidade administrativa

17/12/2020 às 11:10
Leia nesta página:

Até onde irão as surpresas?

I – O FATO

Observo do que foi dito em reportagem na revista Época:

“A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) produziu pelo menos dois relatórios de orientação para Flávio Bolsonaro e seus advogados sobre o que deveria ser feito para obter os documentos que permitissem embasar um pedido de anulação do caso Queiroz.

Nos dois documentos obtidos pela coluna, e cuja autenticidade e procedência foram confirmadas pela defesa do senador, a Abin detalha o funcionamento da suposta organização criminosa em atuação na Receita Federal (RFB), que, segundo suspeita dos advogados de Flávio, teria feito um escrutínio ilegal em seus dados fiscais para fornecer o relatório que gerou o inquérito das rachadinhas.

Enviados em setembro para Flávio e repassados por ele para seus advogados, os documentos contrastam com uma versão do general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, que afirmou publicamente que não teria ocorrido atuação da Inteligência do governo após a defesa do senador levar a denúncia a Bolsonaro, a ele e a Alexandre Ramagem, diretor da Abin, em 25 de agosto.

Um dos documentos é autoexplicativo ao definir a razão daquele trabalho.

Em um campo intitulado “Finalidade”, cita: “Defender FB no caso Alerj, demonstrando a nulidade processual resultante de acessos imotivados aos dados fiscais de FB”. Os dois documentos foram enviados por WhatsApp para Flávio e por ele repassados para sua advogada Luciana Pires.

O primeiro contato de Alexandre Ramagem com o caso foi numa reunião no gabinete de Bolsonaro, em 25 de agosto, quando recebeu, das mãos das advogadas de Flávio, uma petição, solicitando uma apuração especial para obter os documentos que embasassem a suspeita de que ele havia sido alvo da Receita. Ramagem ficou com o material, fez cópia e devolveu no dia seguinte a Luciana Pires, que voltou ao Palácio do Planalto para pegar o documento, recebendo a orientação de que o protocolasse na Receita Federal. A participação da ABIN, a partir daí, seguiria por meio desses relatórios, enviados a Flávio Bolsonaro, com orientações sobre o que a defesa deveria fazer.

No primeiro relatório, o que especifica a finalidade de “defender FB no caso Alerj”, a Abin classifica como uma “linha de ação” para cumprir a missão: “Obtenção, via Serpro, de ‘apuração especial’, demonstrando acessos imotivados anteriores (arapongagem)”. O texto discorre então sobre a dificuldade para a obtenção dos dados pedidos à Receita e, num padrão que permanece ao longo do texto, faz imputações a servidores da Receita e a ex-secretários, a exemplo de Everardo Maciel.

 “A dificuldade de obtenção da apuração especial (Tostes) e diretamente no Serpro é descabida porque a norma citada é interna da RFB da época do responsável pela instalação da atual estrutura criminosa — Everardo Maciel. Existe possibilidade de que os registros sejam, ou já estejam sendo, adulterados, agora que os envolvidos da RFB já sabem da linha que está sendo seguida”, diz o relatório, referindo-se a José Tostes Neto, chefe da Receita.”

A reportagem traça um retrato vergonhoso de atuação da Administração em favor de pessoa da família do atual presidente da República.

Um ato de improbidade cuja conduta deve ser objeto da devida apuração. Que motivos levaram aquele importante órgão da Administração a agir de forma afrontosa a princípios republicanos?

Os órgãos da Administração não podem ser utilizados visando a defesa de pessoa ligada por vínculos familiares ao atual presidente da República.


II – OS PRINCIPIOS DA MORALIDADE E DA IMPESSOALIDADE

Há evidente ofensa aos princípios da moralidade e impessoalidade.

Há de haver uma necessária separação entre o público e o privado, de sorte que não se afronte ao princípio da impessoalidade.

Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Direito administrativo. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014), o princípio da impessoalidade tem desdobramento em dois prismas: o primeiro, com relação à igualdade de atuação em face dos administrados, por meio da qual busca-se a satisfação do interesse público; o segundo, com referência à própria Administração, de modo que os atos não são atribuídos aos seus agentes, mas ao órgão responsável, não cabendo àqueles promoção pessoal mediante publicidade de atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos. Assim, destaca-se:

[...] Exigir impessoalidade da Administração tanto pode significar que esse atributo deve ser observado em relação aos administrados como à própria Administração. No primeiro sentido, o princípio estaria relacionado com a finalidade pública que deve nortear toda a atividade administrativa. Significa que a Administração não pode atuar com vistas a prejudicar ou beneficiar pessoas determinadas, uma vez que é sempre o interesse público que tem que nortear o seu comportamento. [...] No segundo sentido, o princípio significa, segundo José Afonso da Silva (2003:647), baseado na lição de Gordillo que “os atos e provimentos administrativos são imputáveis não ao funcionário que os pratica, mas ao órgão ou entidade administrativa da Administração Pública, de sorte que ele é o autor institucional do ato. Ele é apenas o órgão que formalmente manifesta a vontade estatal”. Acrescenta o autor que, em consequência “as realizações governamentais não são do funcionário ou autoridade, mas da entidade pública em nome de quem as produzira. A própria Constituição dá uma consequência expressa a essa regra, quando, no § 1º do artigo 37, proíbe que conste nome, símbolo ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridade ou servidores públicos em publicidade de atos programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos”. 

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Feriu-se o princípio da moralidade administrativa.

Aplica-se o princípio da moralidade, em resumo, sempre que, em matéria administrativa, se verificar que o comportamento da Administração, ou do administrado que com ela se relaciona juridicamente, embora em consonância com a lei, ofende a moral, os bons costumes, as regras de boa administração, os princípios de justiça e de equidade, a ideia comum de honestidade.

Repito, na íntegra, a lição de Miguel Seabra Fagundes (O controle dos atos administrativos, 2ª edição, pág. 89 e 90), assim disposta; “A atividade administrativa, sendo condicionada pela lei à obtenção de determinados resultados, não pode a Administração Pública dele se desviar, demandando resultados diversos dos visados pelo legislador. Os atos administrativos devem procurar as consequências que a lei teve em vista quando autorizou a sua prática, sob pena de nulidade.”

Prossegue o eminente administrativista, que tantas lições deixou entre nós, alertando que se a lei previu que o ato fosse praticado visando a certa finalidade, mas a autoridade o praticou de forma diversa, há um desvio de finalidade.

Há, no ato administrativo, para sua higidez e validade, um fim legal a considerar. Marcelo Caetano (Manual de direito administrativo, pág. 507) distinguia os desígnios pessoais, os cálculos ambiciosos, as previsões que o agente faz de si para si, no momento em que se determina a exprimir a vontade administrativa, sem repercussão positivamente exteriorizada, na prática do ato, daqueles que se refletem de modo objetivo na sua prática, vindo a desvirtuá-lo em sua finalidade objetiva.

O agente público não pode usar de seus motivos pessoais para atingir fins outros através de um ato administrativo.

Repito o que disse o ministro Celso de Mello:

“O princípio da moralidade administrativa – enquanto valor constitucional revestido de caráter ético-jurídico – condiciona a legitimidade e a validade dos atos estatais. A atividade estatal, qualquer que seja o domínio institucional de sua incidência, está necessariamente subordinada à observância de parâmetros ético-jurídicos que se refletem na consagração constitucional do princípio da moralidade administrativa. Esse postulado fundamental, que rege a atuação do poder público, confere substância e dá expressão a uma pauta de valores éticos sobre os quais se funda a ordem positiva do Estado.”

Ali, o ministro Celso de Mello deixou consignado que “a atividade estatal, qualquer que seja o domínio institucional de sua incidência, está necessariamente subordinada à observância de preceitos ético-jurídicos que se refletem na consagração constitucional do princípio da moralidade administrativa.

Lembro que os chamados princípios da lealdade e da boa-fé, estudados por Jesús Gonzáles Peres (El principio general de la buena fe en el derecho administrativo, 1983), que já dizia que a Administração há de proceder em relação aos administrados com sinceridade e lhaneza, sendo interditado qualquer comportamento astucioso, eivado de malícia, produzido de maneira a confundir, dificultar ou minimizar, o exercício de direitos por parte dos cidadãos.

Acresça-se que, nos termos do artigo 85, V, da Constituição, atentar contra a probidade na administração é hipótese prevista como crime de responsabilidade do presidente da República, fato que enseja a sua destituição do cargo.

Como ensinado por Maria Sylvia Zanella di Pietro:

“Não é preciso penetrar na intenção do agente, porque do próprio objeto resulta a imoralidade. Isto ocorre quando o conteúdo de determinado ato contrariar o senso comum de honestidade, retidão, equilíbrio, justiça, respeito à dignidade do ser humano, à boa-fé, ao trabalho, à ética das instituições. Amoralidade exige proporcionalidade entre os meios e os fins a atingir (...) ; (se) o ato em si, o seu objeto, o seu conteúdo, contraria a ética da instituição, afronta a norma de conduta aceita como legítima pela coletividade administrada. Na aferição da imoralidade administrativa, é essencial o princípio da razoabilidade” (Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 1991. p. 111).


III - CONCLUSÕES 

Será caso de o Ministério Público Federal, no Distrito Federal, apurar o fato em todas as suas circunstâncias de materialidade e autoria, de forma a averiguar ofensa ao que determina o artigo 11 da Lei nº 8.429/92, e ainda colher provas com relação a eventuais prejuízos ao erário com tal conduta, com o fim de obter eventual ressarcimento. 

De outro modo, é preciso saber se houve crime de advocacia administrativa em face de atuação da Administração na proteção de interesses privados. 

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Um ato de improbidade administrativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6378, 17 dez. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/87378. Acesso em: 24 abr. 2024.

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