1 INTRODUÇÃO
As Empresas Públicas[1] e as Sociedades de Economia Mista[2] ligadas ao poder público em suas três esferas, isto é, União, Estados e Municípios, possuem uma mão-de-obra composta por profissionais que se submetem, conforme exigência constitucional, à prestação de concurso público de provas ou provas e títulos.
São milhares de indivíduos que possuem vínculo de relação de emprego com a administração pública indireta e o sustento suas respectivas famílias depende da manutenção deste vínculo.
Todavia, diferentemente dos chamados servidores públicos estatutários, os empregados públicos não possuem estabilidade em seus empregos e podem ser dispensados a qualquer momento, assim como acontece na iniciativa privada.
A diferença aqui é que o empregador é um ente da Administração Pública e, dessa forma, devem ser consideradas algumas particularidades que não se aplicam às demais empresas da regidas pelo direito privado.
Neste sentido, o presente estudo pretende fazer uma revisão bibliográfica na literatura jurídica, pesquisar na legislação e no entendimento dos tribunais superiores sobre a necessidade (ou não) de motivação no ato de dispensa do empregado público de empresas públicas e sociedades de economia mista.
Assim, buscou-se identificar, a partir de uma análise de normas constitucionais e infraconstitucionais, bem como na doutrina administrativista e trabalhista, os principais tópicos relacionados ao tema para uma compreensão mais universal.
O trabalho retornou até a gênese das discussões sobre o ato administrativo, sua definição, característica e pressupostos, dando ênfase no aspecto da motivação como requisito indispensável para a sua validade, incluindo um breve estudo da teoria das nulidades.
Na sequência, foram trabalhados os aspectos que envolvem a figura do empregado público, seu vínculo com a Administração e as peculiaridades da sua dispensa por ato unilateral de vontade desta última.
Por fim, adentramos as cortes superiores, no caso, o Tribunal Superior do Trabalho e o Supremo Tribunal Federal, a fim de traçar uma linha histórica da construção do entendimento destes tribunais sobre o tema e vislumbrar qual o caminho pretendem tomar.
Desse modo, na busca por compreender o assunto a partir destes três vieses, isto é, legislação, doutrina e jurisprudência, pretende-se, ao final do estudo, extrair aquilo que o direito brasileiro tem a oferecer como resposta (ainda que não definitiva) para o seguinte questionamento: “É necessária a motivação do ato administrativo de dispensa de empregado público vinculado à empresa pública ou sociedade de economia mista”?
2 O ATO ADMINISTRATIVO: Aspectos gerais
2.1 Conceito e pressupostos
Os atos jurídicos dizem respeito à manifestação da vontade humana que possui o condão de produzir efeitos de ordem jurídica, conforme estabeleçam as normas vigentes.
Podemos ter atos jurídicos que apenas produzam efeitos predominantes na esfera cível, como o casamento, a celebração de um contrato de compra e venda ou a quitação de uma dívida dada pelo credor ao devedor.
Todavia, segundo Matheus Carvalho (2018, p. 252), quando o ato jurídico tiver por finalidade a produção de efeitos jurídicos que interfiram na estrutura do Direito Administrativo, estaremos diante de um “ato administrativo”.
O ato administrativo pode ser compreendido como um ato jurídico praticado na esfera do Direito Administrativo. Entretanto, apenas tal simplificação não nos parece adequada para explicar a dinâmica do referido instituto. O saudoso administrativista Hely Lopes Meirelles (2016), em sua mais conhecida obra “Direito Administrativo Brasileiro”, nos brinda com a seguinte definição de ato administrativo:
Ato administrativo é toda manifestação unilateral de vontade da Administração Pública que, agindo nessa qualidade, tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar, extinguir e declarar direitos, ou impor obrigações aos administrados ou a si própria (MEIRELLES, 2016, p. 173).
É bem verdade que o referido conceito distingue o ato administrativo unilateral, isto é, o ato praticado unicamente por manifestação de vontade por parte da Administração, dos chamados atos administrativos bilaterais (contratos administrativos)[3] ou mesmo dos fatos administrativos[4].
Os atos administrativos devem respeitar alguns requisitos e para tanto a doutrina majoritária utiliza as disposições do artigo 2º da Lei nº 4.717/65 (Lei da Ação Popular) como parâmetro de estudo. Assim dispõe a norma em comento (BRASIL, 1965):
Art. 2º São nulos os atos lesivos ao patrimônio das entidades mencionadas no artigo anterior, nos casos de:
a) incompetência;
b) vício de forma;
c) ilegalidade do objeto;
d) inexistência dos motivos;
e) desvio de finalidade.
Dessa forma, basta que retiremos o sentido “negativo” das expressões utilizadas pela lei e teremos os cinco elementos (ou requisitos) do ato administrativo: competência, forma, objeto, motivo e finalidade.
De outra banda, Celso Antônio Bandeira de Mello (2008, p. 386) trabalha a questão de maneira diversa, distinguindo o que seriam os elementos do ato administrativo dos pressupostos do ato administrativo.
Conforme o autor, enquanto os elementos do ato administrativo dizem respeito à realidade intrínseca, isto é, forma e conteúdo, os pressupostos, por sua vez, são as condições que devem ser observadas para que o ato seja existente, válido e eficaz.
Todavia, independente de adotarmos a linha da doutrina majoritária ou a compreensão de Celso Antônio Bandeira de Mello, o presente trabalho pretende se debruçar sobre um aspecto do estudo dos requisitos (ou pressupostos) do ato administrativo que é crucial para a dispensa do empregado público: a motivação.
2.2 A Motivação como requisito do ato administrativo
A partir de agora, faremos uma análise de um aspecto mui relevante para a pesquisa: a motivação como condição essencial de um ato administrativo.
Sabemos que um dos elementos do ato administrativo é o motivo, porém, este não se confunde com a motivação.
O motivo, segundo Maria Sylvia Zanella di Pietro (2018, p. 290), é um pressuposto de fato e de direito que serve como um fundamento para o ato administrativo, isto é, de fato porque ele deve corresponder as circunstâncias que levaram a Administração a praticar o ato e de direito porque deve estar baseado em uma norma autorizadora da conduta.
Neste sentido, o motivo deve sempre guardar semelhança para com a realidade que o ato pretendeu “atacar”. Um bom exemplo é a punição do servidor público estatutário. Neste caso, a punição (ato administrativo) fica condicionada ao cometimento de uma infração (motivo) que deve ser comprovada.
Interessante destacar que o motivo pode ter previsão expressa em lei (como no exemplo supracitado) ou ficar a critério do agente que praticará o ato administrativo. Temos, de acordo com Helly Lopes Meirelles (2016, p. 176), a vinculação e a discricionariedade, respectivamente.
Por outro lado, a motivação é parte integrante do pressuposto “forma” do ato administrativo.
Para Maria Sylvia Zanella di Pietro, “motivação é a exposição dos motivos, ou seja, é a demonstração, por escrito, de que os pressupostos de fato realmente existiram” (PIETRO, 2018, p. 290).
Neste mesmo sentido, segundo Phillip Gil França (2014?):
Sob a ótica da atuação administrativa estatal, motivar é explicar as razões fáticas e jurídicas da Administração para prática de ato administrativo de forma suficiente para se conferir legitimidade substancialmente legal de tal atividade pública (FRANÇA, 2014?).
Além disso, o mesmo autor (2014?) diz que a conhecida “fundamentação” da decisão do ato administrativo nada mais é do que a descrição das razões de fato e de direito (legalidade) que foram determinantes para que o agente tenha praticado o ato administrativo.
Podemos inferir, portanto, que a fundamentação decorre diretamente do dever de motivação, previsto na própria lei para alguns atos.
A Lei nº 9.784/1999 (BRASIL, 1999), que regulamenta o processo administrativo no âmbito da Administração pública Federal, consagrou a motivação como um requisito indispensável para a prática de determinados atos administrativos. Vejamos:
CAPÍTULO XII
DA MOTIVAÇÃO
Art. 50. Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando:
I - neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses;
II - imponham ou agravem deveres, encargos ou sanções;
III - decidam processos administrativos de concurso ou seleção pública;
IV - dispensem ou declarem a inexigibilidade de processo licitatório;
V - decidam recursos administrativos;
VI - decorram de reexame de ofício;
VII - deixem de aplicar jurisprudência firmada sobre a questão ou discrepem de pareceres, laudos, propostas e relatórios oficiais;
VIII - importem anulação, revogação, suspensão ou convalidação de ato administrativo.
§ 1o A motivação deve ser explícita, clara e congruente, podendo consistir em declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações, decisões ou propostas, que, neste caso, serão parte integrante do ato.
§ 2o Na solução de vários assuntos da mesma natureza, pode ser utilizado meio mecânico que reproduza os fundamentos das decisões, desde que não prejudique direito ou garantia dos interessados.
§ 3o A motivação das decisões de órgãos colegiados e comissões ou de decisões orais constará da respectiva ata ou de termo escrito. (BRASIL, 1999).
Neste sentido, quando for praticado algum dos atos administrativos que estejam previstos na norma em comento, haverá a obrigatoriedade de apresentação de motivação, sob pena de se incorrer em ilegalidade.
Não obstante, a mesma lei, em seu artigo 2º, pretendeu alçar a motivação ao status de princípio a ser observado pela Administração Pública:
Art. 2º. A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. (BRASIL, 1999).
A partir da leitura destes dispositivos legais podemos observar que a dispensa de empregado público pode ser considerada como um ato administrativo que “negue, limite ou afete direitos ou interesses”, conforme prevê o inciso I, razão pela qual a inobservância da exigência de motivação, seja como requisito normativo (regra), seja como princípio, pode macular o ato a ponto de considera-lo nulo.
De outra banda, não bastassem os argumentos já delineados, o estudo dos atos administrativos ainda neste ponto de discussão nos apresenta a denominada “teoria dos motivos determinantes”.
Segundo Cyonil Borges, “tal teoria estipula que a validade do ato está adstrita aos motivos indicados como seu fundamento e sua prática, de maneira que, se inexistentes ou falsos os motivos, o ato será nulo” (BORGES, 2017, p. 180).
Neste sentido, é preciso que o agente que pretende praticar determinado ato administrativo esteja atento para fundamentar sua decisão, ainda que amparado por discricionariedade, em fatos consubstanciados na realidade.
De acordo com Hely Lopes Meirelles (2016, p. 223), a teoria dos motivos determinantes considera que os atos administrativos, quando tiverem sua prática motivada, ficam vinculados aos motivos expostos, para todos os efeitos jurídicos e tais motivos é que são responsáveis por justificarem a realização do ato, razão pela qual deve existir perfeita correspondência entre eles e a realidade.
Tendo analisado brevemente os aspectos mais relevantes sobre os atos administrativos que interessam para o trabalho, passaremos a tratar das ocasiões onde ocorre a nulidade do ato administrativo.
2.3 A Teoria das nulidades do ato administrativo.
Nas palavras de Matheus Carvalho (2018):
Atos nulos são aqueles declarados em lei como tais. Com efeito, a nulidade decorre do desrespeito à lei em algum de seus requisitos, ensejando a impossibilidade de convalidação por não admitir conserto (CARVALHO, 2018, p. 303).
Todavia, o assunto não é nada simples, pois precisamos compreender que o estudo da teoria das nulidades aplicado ao direito administrativo nos evidencia um complexo problema cujo duas correntes pretendem apresentar solução, cada qual a partir de seus respectivos argumentos.
De início, vale mencionar que a teoria das nulidades parte do estudo das normas de direito privado, no caso brasileiro, do Código Civil, onde identificamos atos jurídicos que podem ser tanto nulos, quanto anuláveis. José dos Santos Carvalho Filho (2018) assim leciona:
São duas as diferenças básicas entre a nulidade e a anulabilidade. Primeiramente, a nulidade não admite convalidação, ao passo que na anulabilidade ela é possível. Quanto a esse aspecto, o Código Civil é peremptório, proclamando: ‘O negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo’ (art. 169). Além disso, o juiz pode decretar ex officio a nulidade ou mediante alegação de qualquer interessado ou do Ministério Público, ao passo que a anulabilidade só pode ser apreciada se houver provocação da parte interessada (arts.168 e 177 do Código vigente). (CARVALHO FILHO, 2018, p. 215).
Dessa forma, temos duas correntes doutrinárias: A teoria monista e a teoria dualista.
Os defensores da teoria monista defendem que a teoria das nulidades, tal qual compreendida no âmbito de estudo do direito privado, não pode ser aplicada aos atos administrativos, tendo em vista que, em respeito à legalidade e ao interesse público (que difere do interesse privado), não existem atos anuláveis, sendo que os atos que desrespeitam as normas de direito público são todos nulos.
De acordo com Hely Lopes Meirelles (2016), um dos defensores desta teoria:
O ato administrativo é legal ou ilegal; é válido ou inválido. Jamais poderá ser legal ou meio-legal; válido ou meio-válido, como ocorreria se se admitisse a nulidade relativa ou anulabilidade, corno pretendem alguns autores que transplantam teorias do Direito Privado para o Direito Público sem meditar na sua inadequação aos princípios específicos da atividade estatal. (MEIRELLES, 2016, p. 233).
Por outro lado, a doutrina majoritária defende a teoria dualista sustentando a aplicação da teoria das nulidades aos atos administrativos, tendo em vista que seria possível classifica-los como nulos (quando há vício essencial) ou anuláveis (quando o vício não é fundamental).
Para Maria Sylvia Zanella di Pietro (2018, p.326), uma das defensoras desta corrente, é possível transportar do Código Civil para o Direito Administrativo as principais características que diferenciam os atos nulos dos atos anuláveis. Enquanto os primeiros não podem ter o vício que os macula sanados, os segundos podem.
Todavia, a mesma autora alerta para o fato de que o poder de autotutela permite que a Administração Pública, diferentemente do que ocorre nas relações de direito privado, independa da provocação do interessado para decretar a nulidade, seja ela absoluta ou relativa, uma vez que o interesse público (acima do interesse do administrado), busca a preservação da legalidade administrativa.
O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, editou a importante súmula de nº 473 com o seguinte texto (BRASIL, 2011):
Súmula 473. A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial (BRASIL, 2011).
Esta súmula é o reconhecimento do poder de autotutela que a Administração tem no que diz respeito a uma “autocorreção” quando ela mesma deixar de observar as normas postas.
E mais, nas palavras de José dos Santos Carvalho Filho (2018, p. 334), também é o reconhecimento da modulação de efeitos que advém de um ato administrativo ilegal, isto é, se restringe direitos sua anulação terá efeitos ex tunc, se os amplia, ex nunc.
Outrossim, a própria lei nº 9.784/99 reconhece este direito da Administração Pública em seu artigo 53 (BRASIL, 1999):
Art. 53. A Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos (BRASIL, 1999).
Quanto ao ponto, oportuno mencionar que mesmo dentro do entendimento majoritário sobre a existência dede existir diferentes nulidades, isto é, uma absoluta (ato nulo) e uma relativa (ato anulável) – ainda assim, o exercício de autotutela da Administração quanto a possibilidade de correção (convalidação) pode estar restrito apenas a este último caso.
Ocorre que a existência de vício de legalidade do ato administrativo está intrinsicamente ligada a alguns de seus pressupostos e dependendo de qual pressuposto estiver maculado, pode-se ou não, convalidar o ato.
Para José dos Santos Carvalho Filho (2018):
São convalidáveis os atos que tenham vício de competência e de forma, nesta incluindo-se os aspectos formais dos procedimentos administrativos. Também é possível convalidar atos com vício no objeto, ou conteúdo, mas apenas quando se tratar de conteúdo plúrimo, ou seja, quando a vontade administrativa se preordenar a mais de uma providência administrativa no mesmo ato: aqui será viável suprimir ou alterar alguma providência e aproveitar o ato quanto às demais providências, não atingidas por qualquer vício (CARVALHO FILHO, 2018 p. 224)
De outra banda, o mesmo autor afirma que atos com vícios no tocante a motivo, finalidade ou mesmo objeto (quando for único), são insanáveis e, portanto, não convalidáveis.
Nesta mesma linha, Celso Antônio Bandeira de Mello (2008, p. 477) compreende que os atos nulos, em que pese não possam ser convalidados, poderiam ser “convertidos” em atos administrativos válidos quando possível minimamente saná-los.
Assim, observado o ato administrativo de dispensa do empregado público sem motivação, elemento indispensável para a própria condição de legalidade do ato – mas parte integrante do requisito “forma” (conforme a classificação doutrinária) – estaríamos diante de uma situação passível de convalidação por parte da Administração Pública.
Todavia, caso apurado ausência ou inexistência de motivo determinante, estaríamos diante de ato não passível de convalidação, talvez apenas de conversão como sugere a obra de Celso Antônio Bandeira de Mello (2008, p. 477) citada anteriormente.