3. O sistema de ensino bourdieusiano e a pedagogia racional
A preocupação de Pierre Bourdieu com as consequências das lutas travadas no campo educacional o acompanhou ao longo de toda a sua vida acadêmica e integrou, de algum modo, boa parte de sua produção científica. Os livros “Os Herdeiros” de 1964 e “A Reprodução” de 1970 são tidos, indevidamente, diga-se de passagem, como o Estado da Arte de sua sociologia da educação. Aliás, no que diz respeito ao último, é por conta dele que vez em sempre é rotulado de estruturalista e/ou reprodutivista (ele mesmo em texto publicado no livro Coisas Ditas já reclamou e explicou essa equivocada apreensão de sua obra, como já destacado anteriormente). Seu espírito inquieto já nos faz lembrar que jamais permaneceria inerte a uma só tradição, notadamente em face das mudanças ocorridas no campo educacional, seja em função da massificação e democratização do acesso, seja nos modos como se tem trabalhado a relação com o saber.
Nesse sentido, desde a preocupação inicial com a produção e reprodução cultural e social pela via do sistema escolar, passando pela preocupação com estratégias de apropriação do sistema escolar por agentes e grupos, ou mesmo de forma mais recente em textos como “Os Excluídos do Interior” e “As contradições da Herança”, ambos publicados em 1993 em “A Miséria do Mundo”, onde constatou que com o acesso de novas clientelas à escolarização, as desigualdades escolares mudaram de forma e passaram a operar de modo mais sutil ou imperceptível, assim como o sofrimento do trânsfuga que graças à consagração escolar acaba por se afastar de seu meio social de origem (NOGUEIRA, NOGUEIRA, 2009, p.52).
O fato é que, em todas as suas análises não se deve perder de vista que seus conceitos devem ser compreendidos sempre em interdependência, circunstância que demostra, à saciedade, que sua obra nada tem de desmobilizadora no campo educacional. Pelo contrário, para além de desvelar os mecanismos de funcionamento da socialização através da escola, Bourdieu nos deu pistas e apontou caminhos, seja através da confessada “pedagogia racional” seja pela manifesta intenção de romper com os determinismos, pela mediação de agência e estrutura realizada através do habitus, seja pela ideia de subversão das posições de disputa que ocorrem no âmbito do campo científico. Isso pode ser sentido, repita-se, em sua declaração de que não há nada de desesperador no fato de se conhecer a origem social de todas as formas de sofrimento, pois o que o mundo social fez, o mundo social pode, armado deste saber, desfazer, na medida em que a alternativa da ciência aponta condições de oferecer os únicos meios racionais de utilização plena da ação política (BOURDIEU, 2012).
Ora, como já visto anteriormente, a preocupação epistemológica de Bourdieu era romper com a dicotomia objetividade x subjetividade para a compreensão do mundo social. Dessa forma o agente socializado através da educação não é o sujeito autônomo e muito menos o que tem seus comportamentos determinados em um pacote pronto e acabado pelas estruturas sociais. É alguém que, ao sofrer as influências das estruturas, adquire disposições que podem orientar a sua ação futura, que por sua vez também sobre a influência de seu modo de ser específico. Esse ethos social e educacional é dia a dia atualizado e estruturante da mesma estrutura que o influenciou. No entanto, o seu agente parte de um ponto que possui uma bagagem socialmente herdada que pode ser colocada a serviço do sucesso (ou fracasso) escolar, incluindo aí o capital econômico, cultural e social adquirido no status de origem Registre-se, por oportuno que o capital cultural, notadamente na modo incorporado, passa a integrar a subjetividade do indivíduo e é para Bourdieu o fator que tem o maior peso, maior até do que o capital econômico, na definição do sucesso (ou fracasso) escolar e no status de destino. Assim é que:
(...) a posse de capital cultural favoreceria o desempenho escolar na medida em que facilitaria a aprendizagem dos conteúdos e dos códigos (intelectuais, linguísticos, disciplinares) que a escola veicula e sanciona. Os esquemas mentais, (as maneiras de pensar o mundo), a relação com o saber, as referências culturais, os conhecimentos considerados legítimos (a “cultura culta” ou a “alta cultura”) e o domínio maior ou menor da língua culta, trazidos de casa por certas crianças, facilitariam o aprendizado escolar tendo em vista que funcionariam como elementos de preparação e de rentabilização da ação pedagógica, possibilitando o desencadeamento de relações íntimas entre o mundo familiar e a cultura escolar (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2009).
Na verdade, no caso dos agentes oriundos dos meios mais favorecidos de capital cultural, a educação escolar funcionaria como uma continuação da educação familiar, ao passo que para aqueles detentores de uma herança cultural desfavorável, a educação formal e seus códigos lhes causariam estranheza e constituiriam em verdadeira ameaça, razão pela qual Bourdieu assim concebeu essa situação como violência simbólica. Não se deve negar que nesse processo os capitais econômico e social exerceriam um importante papel instrumental de acumulação do capital cultural; mas ao fim e ao cabo, na visão bourdieusiana, prevaleceria o capital cultural como fator de sucesso (ou fracasso) no desempenho escolar.
Note-se que a intensidade dos investimentos que cada grupo de agentes se dispõe a realizar no campo da educação está diretamente ligado à percepção do grau de ascensão que verificam ou presumem no sucesso escolar de seus membros. Bourdieu assim apreendeu essa situação:
O “interesse” que um agente (ou uma classe de agentes) tem pelos “estudos” (e que é, juntamente com o capital cultural herdado, do qual ele depende parcialmente, um dos fatores mais poderosos do sucesso escolar), depende não somente de seu êxito escolar atual ou pressentido (i.e., de suas chances de sucesso dado seu capital cultural), mas também do grau em que seu êxito social depende de seu êxito escolar (BOURDIEU, 1989, p.393).
É claro que desde “A Reprodução” Bourdieu viu uma estrita relação entre o sistema de ensino e a estrutura de classes. É claro que identificou, naquele momento, a escola como uma instância de reprodução de desigualdades sociais. Como todo campo, o campo escolar ou educacional também não é neutro. Partindo da noção de arbitrário cultural e da ideia de que, como ocorre em qualquer campo de produção cultural, a parte dominante traçará, mesmo que de forma inconsciente, estratégias para imposição desse arbitrário cultural e manutenção das relações de poder e conservação das instâncias de dominação, não se poderia esperar outra lógica que não fosse a reprodução da ideologia, ou dos interesses, da classe dominante através do campo escolar.
A noção de arbitrário cultural é interessante por nos trazer a ideia de que a cultura consagrada, legitimada e transmitida através da escola em nada tem de superior, pois o valor que lhe é atribuído é arbitrário. É transmitida não por ser melhor ou pior, mas por ser a cultura do grupo que detém a legitimidade dos discursos e a faz impor com validade universal. Isso só pode ser compreendido quando se pensa nos vários arbitrários culturais em disputa e as relações de força dos vários grupos no âmbito da sociedade. Vale dizer:
No caso das sociedades de classe, a capacidade de imposição e de legitimação de um arbitrário cultural corresponderia à força da classe social que o sustenta. De modo geral, os valores arbitrários capazes de se impor como cultura legítima seriam aqueles sustentados pelas classes dominantes. Portanto, para o autor, a cultura escolar, socialmente legitimada, seria, basicamente, a cultura imposta como legítima pelas classes dominantes (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2009).
No entanto, não se pode perder de vista a conclusão bourdieusiana de o que o mundo social fez, o mundo social pode, armado deste saber, desfazer. Vale dizer, se a escola é capaz de reproduzir uma sociedade desigual, pelo mesmo mecanismo ela pode reproduzir uma sociedade mais igualitária, na hipótese em que haja um certo nivelamento dos capitais herdados no seio familiar ou um ajuste ao modo de ser de cada dentro do sistema escolar, mediante sua pedagogia racional. Bourdieu nos mostrou que a escola não é neutra, mas abre caminho para uma análise crítica da relação com o saber, através do currículo da avaliação escolar e dos meios pedagógicos.
Embora se saiba que Bourdieu não evoluiu seu pensamento a ponto de ter acesso a uma suposta “caixa preta” do sistema escolar, o fato é que desde o início de suas pesquisas apontou a ideia de uma “pedagogia racional”, como solução para a lógica (perversa) da acumulação do privilégio cultural por meio da escola, que – como vimos – faz com que o capital cultural permaneça sempre nas mãos daqueles que já o detém (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2009, p. 86). Essa pedagogia racional, aliada a uma vontade política de oportunizar a todos os agentes as mesmas chances de acesso a um sistema de ensino relevante, consistiria em uma aprendizagem metódica que tornasse explicito tudo aquilo que funcionasse de modo encoberto no processo pedagógico, favorecendo os agentes socialmente desfavorecidos. Embora não possa parecer, trata-se de igualar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades. Senão vejamos:
(...) uma pedagogia racional e universal, que, partindo do zero e não considerando como dado o que apenas alguns herdaram, se obrigaria a tudo em favor de todos e se organizaria metodicamente em referência ao fim explícito de dar a todos os meios de adquirir aquilo que não é dado, sob a aparência do dom natural, senão às crianças das classes privilegiadas (BOURDIEU, 2007, p. 53).
Mesmo que mais tarde possa ter considerado o caráter utópico da solução apresentada e que não tenha reservado um desdobramento específico sobre o assunto, talvez porque o desdobramento haveria de ser reservado à própria pedagogia, o fato é que o conjunto de sua obra nos faz acreditar numa visão transformadora. Para ele, à sociologia caberia o papel de desvelar as condições de produção e reprodução do mundo social, fossem elas quais fossem. Sua manifestação sobre a subversão da ordem estabelecida no campo científico e sua crença inabalável da capacidade de o mundo social desfazer o que ele mesmo fez, são indicações claras de que em sua mente nunca deixou de brilhar a ideia da existência de uma saída para os esquemas reprodutivos desiguais verificados no campo educacional. Interessante o que vai abaixo colacionado sobre a retomada da pedagogia racional:
O que ele considerava paradoxal é que fosse ele a ter que lembrar que o conhecimento dessa lei é o que tem permitido voar: “é o que tenho dito sempre desde Os Herdeiros: gostaria que retornassem à conclusão sobre a ‘pedagogia racional’ que havia sido considerada reformista por alguns. E porque conhecemos as leis da reprodução é que temos alguma chance de minimizar a ação reprodutora da instituição escolar” (CATANI, 2014, p. 30).
É como a ideia na mente dessa sociologia das desigualdades culturais e da subversão da ordem estabelecida do campo científico que passos a analisar o sistema de cotas, verificando quais as condições de possibilidade que possam inseri-lo como ação desses conceitos.
4. O sistema de cotas e o omelete de ovo de pelicano
Quando se fala em ação afirmativa, notadamente em face de acesso ao ensino superior, de imediato povoa a nossa mente a ideia de correção das distorções dos testes padronizados, a compensação por erros e discriminações do passado e a promoção da diversidade cultural. Confesso que o argumento que mais nos seduz seja o da promoção da diversidade cultural. Além de não envolver controvérsias sobre eventual responsabilidade coletiva por erros dos antepassados, também não tem relação com nenhuma ação específica de discriminação.
No caso, não se trata de recompensa ou de reparação, mas de meio de atingir um objetivo socialmente mais importante, justificado no bem comum da instituição de ensino superior e da sociedade em geral (SANDEL, 2009), uma vez que a diversidade permite a ampliação do alcance das perspectivas intelectuais e culturais, realinhando a disposição das forças em permanente luta nos campos de produção simbólica.
Sabe-se que a experiência pioneira das ações afirmativas é proveniente da Índia, onde a recém fundada república incorporou em sua constituição de 1950 garantias jurídicas para minimizar a segregação decorrente do sistema de castas. No Brasil, algumas iniciativas em relação à proteção do trabalhador nacional, das micro e pequenas empresas em matéria de licitações e até a reserva de vagas para pessoas portadoras de necessidades especiais, vigente desde a edição do regime jurídico dos servidores da União em 1990, passaram despercebidos da população em geral; o que não ocorreu quando os movimentos sociais, representantes de minorias historicamente discriminadas, começaram a exercer uma legítima pressão por uma ação política mais efetiva do Estado na direção das ações afirmativas. Aí sim a sociedade civil passou a se sentir incomodada, estabeleceu-se a polêmica até então inexistente o que culminou com o questionamento no Supremo Tribula Federal da Lei nº 12.771/2012, a chamada Lei de Cotas. No que é importante para este trabalho, o sistema de cotas, no âmbito da universidade pública, ao lado do Prouni e FIES, para acesso às instituições da rede privada, constituem os principais instrumentos de ação afirmativa de acesso ao ensino superior.
O sistema de cotas, no aspecto geral, consiste na reserva obrigatória de vagas nas instituições federais de ensino de nível superior e técnico para pretos, pardos, indígenas, alunos de baixa renda, bem como aqueles oriundos da escola pública. Fica claro aqui que esse modelo de ação afirmativa voltado para o acesso ao ensino superior, com início lá pelo ano 2000, mesmo que de forma tímida e para um número reduzido de instituições no Rio de Janeiro[4], promoveu uma mudança crescente e gradativa na composição socioeconômica, cultural e étnico-racial dos quadros das universidades brasileiras (TAFURI, 2012), cujos impactos sobre o sistema de reprodução de desigualdades através da escola precisam ser melhor avaliados.
É claro que o acesso puro e simples ao ensino superior de um grupo cultural antes alijado da disputa no campo científico, por si só, não tem o condão de inverter a lógica da reprodução cultual pela via escolar. Se seguirmos o raciocínio de Bourdieu, a universidade precisa, a partir desse ponto, adaptar-se a essa nova realidade e readequar seus processos pedagógicos às especificidades dessa nova “clientela”. É claro que a adoção do sistema de cotas nas universidades pública no Brasil resolverá todos os problemas como em um passe de mágica. A universidade nesse aspecto precisa reinventar-se, precisa transformar-se e isso demanda tempo. A alusão ao omelete de Roberto Desnos foi o próprio Bourdieu quem sugeriu; nos apontou a transformação de uma coisa em outra no âmbito de um mesmo campo. Nos indicou que assim como o sistema de ensino reproduz com competência um modelo de desigualdade, também pode reproduzir uma sociedade mais igual, multicultural. Isso se dará de uma forma ou de outra. O meio mais célere e menos traumático está na invenção da própria universidade para lidar com essa nova realidade. Um meio mais custoso, mas também possível, pode se dá na subversão do campo científico.
O que chamamos de omelete é a transformação no modo como o sistema de ensino passará a reproduzir as estruturas sociais. Já se viu com Bourdieu a necessidade de o sistema de ensino exercer uma pedagogia racional, uma nova maneira de relacionar o agente receptor aos conteúdos, professores e estrutura do sistema de ensino. Já se viu com Bourdieu, também, que a luta por posições dominantes no campo científico pode ser assumida de duas formas: ou os novatos assumem uma postura de boa vontade cultural ou aquela direcionada à subversão das posições do campo.
O que falo aqui em relação à luta e subversão do campo científico não paira sobre nós apenas no mundo da teoria. Isso é um fato concreto que já vem sendo vivenciado no seio da universidade brasileira. Diogo Tafuri, ao relacionar ações afirmativas com lutas acadêmicas, traz um interessante relato do professor Henrique Cunha Júnior, titular do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Ceará e membro da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), que espelha bem essa luta pela hegemonia no campo científico no âmbito dessa nova situação verificada com o acesso de grupos culturais não hegemônicos no seio da universidade:
[...] com o intuito de acelerar o processo de pesquisa das temáticas de interesse dos afrodescendentes, tenho ouvido pelos corredores, e, às vezes, explicitamente, os seguintes argumentos: pesquisa não tem cor, as temáticas abordadas por nós não são suficientemente universais, ou seja, não fazem parte da ciência. Concordo que a pesquisa não tem cor, mas as políticas científicas, que não têm nada a ver com o cerne do fazer científico, essas têm os atributos de cor, de grupo social, de grupo histórico, de marginalizações e de produção das desigualdades sociais, econômicas e políticas. Quem detém o poder detém a primazia da ciência e determina quais temas são parte ou não da ciência. (...) A formação dos pesquisadores negros passa por todos esses obstáculos ideológicos, políticos, preconceituosos, eurocêntricos, de dominações e até mesmo de inocências úteis, vigentes nas instituições de pesquisa e nos órgãos de decisão sobre as políticas científicas (TAFURI, 2012 apud CUNHA JÚNIOR, 2003:159)
É nesse sentido que enxergamos na obra de Bourdieu os caminhos para compreensão dos modelos de reprodução que ocorrem no âmbito do sistema de ensino e a chave para transformá-los. Assim faz sentido o poema de Robert Desnos com que Bourdieu fez abrir seu livro “A Reprodução”, pois essa situação de reprodução de desigual de se manterá indefinidamente se não fizermos antes um omelete.