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Crime de responsabilidade X comum: competência para julgamento

06/07/2021 às 23:10
Leia nesta página:

O Presidente da República, se praticar ato criminoso contra a Administração que tenha relação com a função exercida, juridicamente, não deve ser enquadrado como crime comum, mas de responsabilidade.

Conforme amplamente noticiado, consta que o Supremo Tribunal Federal (STF) enviou ao Procurador-Geral da República (PGR), notícia acerca de suposta prática de crime por parte do Presidente da República (sobre a compra de vacinas para o combate ao COVID-19), para que o PGR deflagrasse os procedimentos investigativos sobre o caso. Sendo que o PGR teria devolvido o expediente ao STF, recomendando que se aguardasse a finalização dos trabalhos da denominada “CPI da Pandemia” em curso no Senado.

O STF, então, devolveu o expediente ao PGR determinando a adoção de providências independentemente da finalização dos trabalhos que estão sendo conduzidos no âmbito da “CPI da Pandemia” (fonte: https://exame.com/brasil/rosa-weber-rejeita-pedido-da-pgr-sobre-noticia-crime-contra-bolsonaro/).

Em razão disto, o PGR então requereu a formalização da investigação, e ato contínuo autorizada pelo STF, cujo trecho deste pedido de investigação teria sido assim redigido (fonte: https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/07/02/veja-manifestacao-da-pgr-que-pede-abertura-de-inquerito-para-investigar-bolsonaro-no-caso-covaxin.ghtml):

“...Excelentíssima Senhora Ministra Relatora,

O Ministério Público Federal, levando em consideração o que dispõem o artigo 102, inciso I, alínea “b” da Constituição da República e o artigo 21, inciso XV, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal1, vem à presença de Vossa Excelência, em atenção à percuciente compreensão contida no Despacho e-STF n. 002, de 1º de julho de 2021, promover INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO para a apuração dos fatos veiculados na petição em epígrafe, na qual os senadores Randolph Frederich Rodrigues Alves, Fabiano Contarato e Jorge Kajuru Reis da Costa Nasser atribuem ao Excelentíssimo Senhor Presidente da República Jair Messias Bolsonaro o cometimento, em tese, da infração penal descrita no artigo 319 do Código Penal.”

No caso, o crime atribuído ao Presidente da República é o descrito no art. 319, de prevaricação, que vem delineado no Código Penal (CP) no “TÍTULO XI DOS CRIMES CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA”:

Art. 319 - Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal:

Ocorre que, o Presidente da República, se praticar ato criminoso contra a Administração Pública que tenha relação com a função exercida (os que não tenham relação com a função desfrutam de imunidade temporária contra a persecução penal até o término do mandato), juridicamente, não deve ser enquadrado no CP comum, e sim na lei especial que trata dos Crimes de Responsabilidade (Lei n° 1.079/50). Seu enquadramento, teoricamente nesse caso acima relatado, seria no art. 9°, item 3, pela suposta não responsabilização de funcionários pelas alegadas corrupções praticadas nas aquisições de vacinas para o tratamento da pandemia do coronavírus:

Do Presidente da República e Ministros de Estado

Art. 1º São crimes de responsabilidade os que esta lei especifica.

...

DOS CRIMES CONTRA A PROBIDADE NA ADMINISTRAÇÃO

Art. 9º São crimes de responsabilidade contra a probidade na administração:

...

3 - não tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição;

Noutros dizeres, por mais que haja a previsão de crime contra a Administração Pública tanto Código Penal como na Lei de Crimes de Responsabilidade, pelo primado da “especialidade”, a eventual conduta criminosa deve ser capitulada apenas na lei especial. Na hipótese, que descreve os Crimes de Responsabilidade. Trata-se de um princípio de Direito que se aprende nos primeiros semestres dos cursos jurídicos.

O próprio Código Penal corrobora esta orientação no seu art. 12: “As regras gerais deste Código aplicam-se aos fatos incriminados por lei especial, se esta não dispuser de modo diverso”.

Portanto, em existindo a suspeita de que o Presidente da República teria cometido algum crime contra a Administração Pública (contra a Probidade da Administração) no desempenho de suas funções, é incorreto promover seu enquadramento no CP comum. Aliás, a própria Constituição Federal (CF) classifica tal sorte de conduta ilícita como Crime de Responsabilidade, no seu art. 85, cujos procedimentos estão previstos em lei especial:

 Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:

...

V - a probidade na administração;

...

Parágrafo único. Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento.

Tal distinção normativa, apesar de aparentemente sem menor importância, tem profundas implicações nos procedimentos e define a competência de qual será o Órgão Julgador.

Mais uma vez, é a CF que estabelece que, se for crime comum praticado pelo Presidente da República no desempenho da função (ex: uma lesão corporal praticada em razão de uma discussão ocorrida em ambiente presidencial) caberia ao STF o julgamento do tema. Porém, se versar sobre crime de responsabilidade (contra a probidade na administração), cabe ao Senado julgar caso.

A CF não poderia ser mais explícita: Art. 86. Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade.

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Logo, ao se pretender tipificar a suposta prática criminosa (no que se refere as alegadas fraudes na compra de vacinas) do Presidente da República no art. 319 do Código Penal COMUM, e não na lei ESPECIAL de Crimes de Responsabilidade (Lei 1.079/50, art. 9°, item 3), além de ser tecnicamente incorreto, indicia-se a tentativa de deslocar a competência para o julgamento que seria do SENADO (crime de responsabilidade art. 9°, item 3) para o STF (crime comum, CP art. 319).

Se for isto mesmo que está sendo arquitetado, fica o questionamento de qual seria o real motivo desta (ao que parece) manobra jurídica. Para que o eventual julgamento fosse feito pelo STF, e não pelo SENADO.

Talvez porque se saiba que, mesmo que porventura a Câmara dos Deputados por 2/3 dos seus integrantes desse o aval para o prosseguimento de um processo criminal contra o Presidente da República (CF, art. 86), muito dificilmente o SENADO seria favorável a uma condenação por crime de responsabilidade (resultando no impeachment), tal qual a situação está posta até este momento sobre estes fatos.

Preferindo-se, assim, tentar buscar uma eventual condenação perante o STF pela suposta prática de crime comum de prevaricação (CP, art. 319), ainda que pelas regras legais de regência isto se caracterize como um erro grosseiro jurídico.

Tempos difíceis, de grande insegurança jurídica, e de abandono dos textos e princípio legais que deveriam dar estabilidade ao Estado Democrático de Direito (CF, art. 1°).

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Sobre o autor
Sérgio de Oliveira Netto

Procurador Federal. Mestre em Direito Internacional (Master of Law), com concentração na área de Direitos Humanos, pela American University – Washington College of Law. Especialista em Direito Civil e Processo Civil. Professor do Curso de Direito da Universidade da Região de Joinville - UNIVILLE (SC).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA NETTO, Sérgio. Crime de responsabilidade X comum: competência para julgamento. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6579, 6 jul. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91730. Acesso em: 21 nov. 2024.

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