Resumo: No presente artigo, tentaremos compreender o atual cenário da liberdade da família na educação e formação de filhos. Primeiro, à luz da normativa internacional vinculante ao estado brasileiro, sobretudo com a escalada da internacionalização dos direitos humanos, exsurgente após a barbárie nazista no contexto da segunda grande guerra. Na sequência, localizaremos o tema proposto no bojo do ordenamento jurídico interno, momento em que trataremos dos temas polêmicos envolvendo a Lei Menino Bernardo, a vacinação de crianças contra a COVID-19 e o ensino doméstico ou homeschooling.
Introdução
Poder familiar é parte daquilo que temos denominado temas sensíveis da atualidade, aqueles que tangenciam interesses estatais, ao mesmo tempo em que são caros para diversas experiências religiosas. São temas fronteiriços, digamos, que sempre foram objeto de atenção especial da Igreja cristã e dos fundamentos ocidentais judaico-cristãos e, mais recentemente, e de maneira crescente, do Estado.
Noutras palavras, a liberdade da família no que pertine à criação de filhos é assunto de primeiríssima grandeza para a vida privada e para os mais variados aspectos culturais dos povos, sobre os quais o Estado tem empreendido um avanço sem precedentes na história moderna. Apenas para ilustrar o ponto, a Revista Oeste noticiou que o Canadá estaria na rota de criminalizar a conduta de pais e mães que vierem a reprimir a identidade de gênero de uma pessoa não cisgênero[2] ou a expressão de gênero que não esteja em conformidade com o sexo designado de uma pessoa ao nascer[3]. Imaginemos a atitude de uma mãe em não permitir que seu filho use vestido ou adote um nome social feminino. Pois bem, esta prática estaria enquadrada, nos termos da lei penal daquele país, no crime de repressão da identidade de gênero.
No presente artigo, tentaremos compreender o atual cenário da liberdade da família na educação e formação de filhos. Primeiro, à luz da normativa internacional vinculante ao estado brasileiro, sobretudo com a escalada da internacionalização dos direitos humanos, exsurgente após a barbárie nazista no contexto da segunda grande guerra[4]. Na sequência, localizaremos o tema proposto no bojo do ordenamento jurídico interno, momento em que trataremos dos temas polêmicos envolvendo a Lei Menino Bernardo, a vacinação de crianças contra a COVID-19 e o ensino doméstico ou homeschooling.
1. A normativa internacional.
Para começo de conversa, falaremos sobre a normativa internacional perante a qual o estado brasileiro se obrigou por meio de compromissos assumidos no plano internacional, tanto nos sistemas (convencional e não convencional) das Nações Unidas como no sistema interamericano. No tópico seguinte, trataremos sobre o ordenamento jurídico interno, notadamente o que estabelecem a Constituição Federal, o Código Civil e o Estatuto da Criança e do Adolescente.
1.1. Sistemas de Proteção de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU)
Em primeiro lugar, repiso, vamos conhecer o que dizem as normas internacionais que o estado brasileiro está obrigado a observar, começando a abordagem pelos sistemas da Organização das Nações Unidas (ONU) e, na sequência, aportando nos sistemas interamericanos.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), de 1948, garante a proteção contra interferências indevidas à vida privada e família: Ninguém será sujeito a interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques (artigo XII, com grifo)[5]. Quando trata do direito à educação, a DUDH diz que os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos (artigo XXVI.3, com grifo)[6].
É importante também conhecer as garantias estabelecidas no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP), de 1966. A garantia contra interferências arbitrárias é fixada no artigo 17:
1. Ninguém poderá ser objeto de ingerências arbitrárias ou ilegais em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação. 2. Toda pessoa terá direito à proteção da lei contra essas ingerências ou ofensas (com grifo).[7]
Quando o PIDCP trata, no artigo 18, sobre o direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião, estabelece no parágrafo 4º o seguinte:
Os Estados-partes no presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos pais e, quando for o caso, dos tutores legais de assegurar aos filhos a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções (com grifo).[8]
O tratado correlato do PIDCP, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), também de 1966, na mesma senda, ao tratar sobre o direito à educação, prescreveu o seguinte:
Os Estados-partes no presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos pais e, quando for o caso, dos tutores legais, de escolher para seus filhos escolas distintas daquelas criadas pelas autoridades públicas, sempre que atendam aos padrões mínimos de ensino prescritos ou aprovados pelo Estado, e de fazer com seus filhos venham a receber educação religiosa ou moral que esteja de acordo com suas próprias convicções (artigo 13.3, com grifo).[9]
Importante realçar, por outro lado, o que estabeleceu a Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989. Nesse tratado, ficou estabelecido que, in verbis:
Os Estados-partes respeitarão as responsabilidades, os direitos e os deveres dos pais ou, conforme o caso, dos familiares ou da comunidade, conforme os costumes locais, dos tutores ou de outras pessoas legalmente responsáveis pela criança, de orientar e instruir apropriadamente a criança de modo consistente com a evolução de sua capacidade, no exercício dos direitos reconhecidos na presente Convenção (artigo 5º, com grifo).[10]
O artigo 18 da Convenção da Criança prescreve que ambos os pais têm responsabilidades comuns na educação e desenvolvimento da criança e que a responsabilidade primordial pela educação e pelo desenvolvimento da criança é dos pais e, quando for o caso, dos responsáveis legais (grifei).[11]
A referida Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989, atendendo e dando efetividade à Declaração Universal dos Direitos da Criança, de 1959, inaugurou uma nova fase no tratamento da criança e do adolescente. Até então, a pessoa nessa fase da vida (com menos de 18 anos) era vista somente como objeto de proteção dos pais e do Estado (doutrina da situação irregular ou fase tutelar). A Convenção, entretanto, rompendo com o paradigma da fase tutelar, proclamou a Doutrina da Proteção Integral, transformando a criança e o adolescente em sujeitos de direitos, devendo ainda ser respeitada a sua condição peculiar de pessoas em desenvolvimento.[12] Os estudos que desembocaram na Convenção influenciaram o direito interno, a partir da Constituição Federal de 1988, conforme se verá adiante.
A Carta Internacional de Direitos Humanos (International Bill of Rights), como são chamados a DUDH, o PIDCP e o PIDESC, garante, em síntese: (1) a proteção da família, do lar e do domicílio contra ingerências arbitrárias; (2) a liberdade dos pais para escolher o gênero de ensino e a escola para seus filhos; e (3) a liberdade dos pais para transmitirem aos filhos ensino religioso e moral que esteja de acordo com as suas convicções. A Convenção especial sobre os direitos da criança, por sua vez, inovou ao assumir a Doutrina da Proteção Integral, considerando a criança (segundo a Convenção, toda pessoa menor que 18 anos) sujeito de direitos.
2. Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
A Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (DADDH, de 1948) também dedicou especial atenção à família. Para o que nos interessa, estabeleceu que Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra os ataques abusivos à sua honra, à sua reputação e à sua vida particular e familiar (artigo V, com grifos).[13] Ao tratar dos deveres, previu que Toda pessoa tem o dever de auxiliar, alimentar, educar e amparar os filhos menores de idade, e os filhos têm o dever de honrar sempre os seus pais e de auxiliar, alimentar e amparar sempre que precisarem (artigo XXX, com grifo).[14]
A Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH, de 1969) também fez previsões que nos chamam à atenção. A proteção contra ingerências arbitrárias está em seu artigo 11, parágrafos 2 e 3:
2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação. 3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas.[15] (grifei).
No artigo 12, que regula o direito à liberdade de consciência e religião, a CADH vaticinou, no parágrafo 4, que Os pais e, quando for o caso, os tutores têm direito a que seus filhos e pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções (grifei)[16].
Em uma consulta da Costa Rica, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH, órgão da CADH), na Opinião Consultiva 24/17, interpretou dispositivos da CADH no sentido de que o Estado deve facilitar, por meio administrativo ou notarial, o reajuste de documentos públicos para adequação ao gênero autopercebido. Na oportunidade, a Corte IDH aplicou o mesmo entendimento a crianças e adolescentes, ao argumento de que
as crianças são titulares dos mesmos direitos que os adultos e todos os direitos reconhecidos na Convenção Americana (...) esta Corte entende que as considerações relacionadas com o direito à identidade de gênero (...) também são aplicáveis às crianças que desejam apresentar solicitações para que se reconheça nos documentos e nos registros sua identidade de gênero autopercebida (...).[17]
Ressalto, pela importância, o que disse a Corte IDH no sentido de que o direito à identidade de gênero é aplicável a crianças que desejam apresentar solicitações para que se reconheça nos documentos e nos registros sua identidade de gênero autopercebida. A Corte fundamentou sua decisão na Proteção Integral e seus consectários: princípios do interesse superior da criança, da autonomia progressiva, de ser escutado e a que se leve em conta sua opinião em todo procedimento que o afete.[18]
Em breve síntese, o sistema interamericano de proteção de direitos humanos traz previsões semelhantes aos sistemas das Nações Unidas: (1) a proteção da família, do lar e do domicílio contra ingerências arbitrárias; (2) a liberdade dos pais para transmitirem aos filhos ensino religioso e moral que esteja de acordo com as suas convicções; e (3) deveres mútuos entre pais e filhos no que pertine ao auxílio, alimentação e amparo. Por meio de construção jurisprudencial, todavia, com base na consideração da criança como sujeito de direitos, a Corte IDH vaticinou que a criança tem direito a ajustar seus documentos ao gênero autopercebido, diretamente em cartório.
Observemos que tanto nos sistemas da ONU como no interamericano está garantida a liberdade dos pais de transmitir aos filhos o ensino religioso e moral correspondente às suas convicções e, por outro lado, o reconhecimento de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos próprios, que podem ser reivindicados inclusive contra pais cristãos amorosos.
Que crianças sejam resguardadas em seus direitos contra abusos e crimes, compreende-se e aplaude-se[19]. Mas, por que crianças poderiam impor aos pais restrições na fiscalização do seu celular, para que vissem protegidos seus respeito e intimidade? Por que crianças poderiam invocar a proteção do Estado para fazer valer seu gênero autopercebido, com direito à mudança de nome e gênero nos registros civis?
3. O Direito interno
A Constituição Federal de 1988 adotou, conforme lições da doutrina especializada, a Doutrina da Proteção Integral, alinhando o estado brasileiro com o cenário internacional. Nesse sentido, em seu artigo 227, caput, lançou o seguinte comando:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de coloca-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (com grifo).[20]
Esses deveres dos pais em relação aos filhos menores estão disciplinados, mormente, no Código Civil (Lei 10.406/2002) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990).
3.1. O Código Civil.
O Código Civil estabelece que os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menores (artigo 1.630, com grifo), que compete a ambos os pais (artigo 1.631)[21]. Poder familiar é, pois, o conjunto de deveres e direitos conferidos somente aos pais em relação a seus filhos menores. É, noutro dizer, o poder exercido pelos líderes de uma família natural, normalmente representados na figura dos pais.[22]
Havendo divergência entre os pais quanto à condução dos interesses dos filhos, o juiz pode ser buscado para dirimir o desacordo (artigo 1.631, parágrafo único)[23], como na hipótese em que o pai e a mãe não se entendem quanto à escola em que o filho deve estudar.[24] O suprimento judicial é consequência da igualdade de direitos e deveres do pai e da mãe em relação ao exercício do poder familiar. Não prevalece, pois, a opinião do pai, devendo o juiz suprir a controvérsia, ouvido o Ministério Público, com base no melhor interesse do menor.
No exercício do poder familiar, compete aos pais, quanto aos filhos, dentre outras atribuições, dirigir-lhes a criação e a educação e exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição (artigo 1.634, incisos I e IX).[25]
O juiz pode intervir no poder familiar, até suspendendo-o, se o pai, ou a mãe, vier a abusar de sua autoridade, faltar aos deveres a ele inerentes, arruinar seus bens ou em caso de condenação irrecorrível à pena que excede a dois anos de prisão (artigo 1.637, caput e parágrafo único)[26].
O poder familiar ainda poderá ser perdido se a mãe, ou o pai, vier a castigar imoderadamente o filho (voltaremos a tratar sobre esse dispositivo), deixar o filho em abandono (não lhe prestando o cuidado necessário), praticar atos contrários à moral e aos bons costumes (v.g., expondo-o à drogas ilícitas), incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente (artigo 1.637) e entregar de forma irregular o filho a terceiros para fins de adoção (artigo 1.638, caput e seus incisos). O parágrafo único do artigo 1.638 prevê outras hipóteses de perda do poder familiar[27].
3.2. O Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei Menino Bernardo.
Notemos que a expressão castigar imoderadamente o filho (inserta no artigo 1.637 do Código Civil Brasileiro) faz presumir que não incorre em ilegalidade, notadamente aquela capaz de ensejar suspensão ou perda do poder familiar, aquele que castiga física e moderadamente o filho. Ocorre que a Lei 13.010/14 (conhecida como Lei da Palmada e Lei Menino Bernardo)[28] alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente para proibir qualquer forma de castigo físico, inclusive.
Diz a lei referida que A criança e o adolescente têm o direito de ser educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto, pelos pais, pelos integrantes da família ampliada, pelos responsáveis, pelos agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou por qualquer pessoa encarregada de cuidar deles, tratá-los, educá-los ou protege-los (artigo 18-A do Estatuto, com grifo).[29]
A lei definiu (no parágrafo único do mesmo dispositivo) castigo físico como a ação de natureza disciplinar ou punitiva aplicada com uso da força física sobre a criança e o adolescente que resulte em: a) sofrimento físico; ou b) lesão. Tratamento cruel ou degradante, por sua vez, foi conceituado como conduta ou forma cruel de tratamento em relação à criança e ao adolescente que: a) humilhe; b) ameace gravemente; ou c) ridicularize.
A lei alterou o artigo 13 do Estatuto da Criança e do Adolescente para obrigar a comunicação dos casos ou suspeitas de castigo físico ou tratamento cruel ou degradante ao Conselho Tutelar, que é o órgão com atribuição para aplicar as sanções, inclusive aos pais, dos que incorrerem na ilegalidade apontada[30]. As sanções, segundo o artigo 18-B do Estatuto, com redação da Lei Menino Bernardo, são as seguintes: encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção à família, encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico, encaminhamento a cursos ou programas de orientação, obrigação de encaminhar a criança a tratamento especializado e advertência[31].
Por fim, a lei em comento ordenou ao Estado empreender ações destinadas a coibir o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, incumbindo-lhe, dentre outras ações, promover campanhas educativas permanentes para a divulgação do direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante (artigo 70-A, inciso I, com grifo).[32]
A denominada Lei da Palmada, portanto, inconformada com a permanência do castigo moderado no ordenamento jurídico pátrio, pressuposto no Código Civil, reuniu no mesmo enquadramento uma palmada corretiva aplicada pelos pais e o uso da força por um agente do Estado (v.g., um agente de uma unidade de atendimento socioeducativo).
De mais a mais, como se pode perceber, no atual cenário jurídico interno, é vedado aos pais e responsáveis usar castigo físico, mesmo que moderado, como forma de educação e disciplina.
4. Obrigatoriedade de vacinação de crianças e ensino doméstico.
Dois temas a serem abordados e de extrema importância ao nosso tema guardam relação com a obrigatoriedade da vacinação de crianças de 5 a 11 anos contra COVID-19 e com o ensino doméstico, o homeschooling. É sobre o que discorreremos.
4.1 Obrigatoriedade de vacinação de crianças contra COVID-19.
Primeiro, trataremos sobre a responsabilidade criminal dos pais que não vacinarem crianças de 5 a 11 anos. Em outras palavras, cometem crime os pais que não vierem a vacinar seus filhos crianças de 5 a 11 anos?
De chegada, deve-se relembrar o que estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente: É obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias (ECA, artigo 14, § 1º)[33].
Também nesse sentido, há o Decreto 78231/76[34], que, em seu artigo 29, dispõe:
Art. 29. É dever de todo cidadão submeter-se e os menores dos quais tenha a guarda ou responsabilidade, à vacinação obrigatória. Parágrafo único. Só será dispensada da vacinação obrigatória, a pessoa que apresentar Atestado Médico de contra-indicação explícita da aplicação da vacina (grifei).[35]
O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, no Tema 1.103, ARE 1.267.879/SP, decidiu pela obrigatoriedade da imunização por meio da vacina quando imposta pela autoridade sanitária, gerando dúvidas sobre se a decisão do tribunal não seria indevidas e preocupantes limitação do poder familiar e ingerência do Estado na família.
Como fica, então, a obrigatoriedades da vacinação contra a COVID-19? É possível aos pais não vacinarem os filhos, sem risco de responsabilização penal, alegando incertezas quanto à eficácia das vacinas hoje existentes? Quanto a isso, há duas posições:
Primeiro, há quem se posicione pela não obrigatoriedade e, consequentemente, pela não responsabilização. O fundamento alegado é o disposto no artigo 3º, caput, da Lei 6259/75[36]: Cabe ao Ministério da Saúde a elaboração do Programa Nacional de Imunizações, que definirá as vacinações, inclusive as de caráter obrigatório (com grifo).[37] Como caberia ao governo federal decidir sobre quais vacinas seriam obrigatórias e quais seriam facultativas, e como o Ministério da Saúde já estabeleceu que a vacina contra COVID-19 é facultativa (calendário anual de vacinações), a conclusão seria pela irresponsabilização dos pais que vierem a decidir pela não vacinação dos filhos crianças.
É nesse sentido também o artigo 28 do Decreto 78231/76, segundo o qual os Estados só poderiam tornar uma vacinação obrigatória, contrariando o disposto pelo Ministério da Saúde, com a aprovação prévia deste órgão: As Secretarias de Saúde dos Estados, do Distrito Federal, e dos Territórios poderão tornar obrigatório o uso de outros tipos de vacina para a população de suas áreas geográficas desde que: (...) II - O Ministério da Saúde aprove previamente, a conveniência da medida (...) (com grifo).[38]
Segundo, há também quem opine pela obrigatoriedade da vacinação contra a COVID-19 nos Estados que já determinaram a sua obrigatoriedade em seu território, a despeito da decisão do Ministério da Saúde, com a consequente sujeição dos pais que não o fizerem às penas da lei. Essa posição se fundamenta na decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 6341, segundo a qual Estados e Municípios podem adotar medidas de combate à pandemia da COVID-19, ainda que a União não o faça. O STF entendeu que o dever do Estado relacionado à saúde é comum a União, Estados, Distrito Federal e Municípios, que agem autonomamente em relação ao mandado constitucional. Na ADPF 576, o Supremo também caminhou no sentido de estender competência comum aos entes federados para imunizar adolescentes contra a COVID-19.
Assim, para essa posição, já pacificada pelo STF, nos Estados que estabeleceram (ou vierem a estabelecer) a obrigatoriedade da vacinação contra COVID-19, os pais seriam obrigados a vacinar os filhos crianças de 5 a 11 anos, sob pena de responsabilização penal, salvo se houver atestado médico de contraindicação explícita à vacina.
Ademais, segundo esse entendimento, a simples recusa imotivada dos pais em vacinarem os filhos contra COVID-19 (nos Estados que tornarem essa vacina obrigatória) implica-os como incursos nas penas do artigo 268 do Código Penal[39] (Infração de Medida Sanitária Preventiva): Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa: Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa[40]. Para essa corrente, enfatize-se, a única recusa considerada apta a ensejar a exclusão da imputação penal seria aquela embasada em atestado médico de contraindicação, o que significa dizer que razões de ordem política, filosófica ou religiosa não importariam na exclusão do crime.
O Conselho Nacional de Procuradores Gerais de Justiça (CNPG), na nota técnica 02/2022, de 26 de janeiro de 2022, já se posicionou pela possibilidade de configuração do crime do artigo 268 do Código Penal, embora advertindo que o uso do Direito Penal deve ser visto com cautela e reservado a casos extremos, quando medidas de ordem administrativa e civil não se mostrarem eficazes[41].
Um exemplo de sanção administrativa seria a previsão contida no artigo 249 do Estatuto da Criança e do Adolescente, in verbis: Descumprir, dolosa ou culposamente, os deveres inerentes ao poder familiar ou decorrente de tutela ou guarda, bem assim determinação da autoridade judiciária ou Conselho Tutelar: Pena - multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência[42].
Na seara cível, o Enunciado 26 do Fórum Nacional da Justiça Protetiva, que reúne juízes das Varas da Infância e da Juventude, diz que a recusa em imunizar crianças contra a COVID-19 pode resultar na infração administrativa do artigo 249 do ECA, como também na aplicação das medidas do artigo 129 do mesmo Diploma Legal, dentre elas a perda da guarda e a suspensão ou destituição do Poder Familiar.
Por fim, o plenário do STF decidiu na ARE 1267879/SP (Tema de Repercussão Geral 1103) que é constitucional a obrigatoriedade da imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, (i) tenha sido incluída no Programa Nacional de Imunizações ou (ii) tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei ou (iii) seja objeto de determinação da União, estado, Distrito Federal ou município, com base em consenso médico-científico, asseverando que em tais casos não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar.
4.2 A possibilidade do ensino doméstico (homeschooling).
O ensino doméstico, ou a educação familiar, é uma de modalidade de ensino em que a criança e o adolescente recebem educação formal e informal pela família, sem terem que frequentar diariamente uma instituição de ensino. As aulas seriam ministradas pelos próprios pais ou por professores por eles contratados.
Há uma classificação do homeschooling que importa apresentar: (1) desescolarização radical (unschooling radical): entende que a institucionalização da educação é prejudicial e que somente aos pais é dado direito de educar os filhos; (2) desescolarização moderada (unschooling moderado): não há proibição a que o Poder Público ofereça educação escolar, mas aos pais compete escolher entre a escola institucionalizada e o ensino familiar, inclusive com liberdade de conteúdo e método, sem qualquer interferência estatal; (3) homeschooling puro: parte da premissa que a educação é tarefa primordial da família e só subsidiariamente do Estado, mas aceita um patamar mínimo e objetivo para a formação de crianças e adolescentes; (4) homeschooling utilitarista ou por conveniência circunstancial: em casos excepcionais, a exemplo da ocorrência de bullying, violência ou tráfico e consumo de drogas nas escolas, os pais podem optar pelo ensino doméstico, desde que reproduzam os mesmos conteúdos do ensino escolar público e privado[43].
O homeschooling encontra ampla guarida na normativa internacional, como também no ordenamento jurídico pátrio. Relembro que a Declaração Universal dos Direitos Humanos dispõe que os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos (artigo XXVI.3) e, conforme o direito interno, os pais e a família têm deveres em relação à educação dos filhos (Constituição Federal, artigos 205 e 229; Código Civil, artigo 1.634, I).
Por outro lado, dispõe o Estatuto da Criança e do Adolescente que Os pais ou responsáveis têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino (artigo 55)[44]. Nesse mesmo sentido, o artigo 6º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação: é dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula das crianças na educação básica a partir dos 4 (quatro) anos de idade[45]. Não olvide também do crime de abandono intelectual, previsto no artigo 246 do Código Penal: Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar.[46]
No Recurso Extraordinário 888.815, o Supremo Tribunal Federal, conforme o voto do redator do acórdão, o Ministro Alexandre de Moraes, argumentou pela inconstitucionalidade dos tipos desescolarização radical (unschooling radical), desescolarização moderada (unschooling moderado) e homeschooling puro, afirmando não ser vedada o homeschooling utilitarista ou por conveniência circunstancial, desde que regulamentada por lei formal, atualmente inexistente. A tese firmada (tema 822) foi a seguinte: Não existe direito público subjetivo do aluno ou da família ao ensino domiciliar, inexistente na legislação brasileira.[47]
Conclusão
O estado brasileiro está vinculado a uma série de compromissos assumidos na ordem internacional, cuja normativa trata abundantemente da família, da vida privada e da educação de filhos. As declarações e tratados das décadas de 50, 60 e 70 são liberais em seu conteúdo e espírito. A partir das décadas de 80 e 90, grupos específicos de pessoas, consideradas hipervulneráveis, tornaram-se o centro das atenções do Direito Internacional dos Direitos Humanos. É nesse contexto que exsurge a Convenção dos Direitos da Criança.
A par da normativa internacional, interpretada evolutivamente[48], e da jurisprudência das cortes internacionais de proteção de direitos humanos, o Direito interno e as decisões dos tribunais nacionais aparentemente têm exercido influência cada vez mais marcante na vida privada e na família, sobretudo nas relações pais e filhos. O poder familiar parece mais limitado, enquanto o Estado avança sobre terrenos até então considerados próprios da esfera eminentemente privada.
Referências
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Código Civil. Disponível em: <L10406compilada (planalto.gov.br)> Acesso em 04/03/2022.
DEL PRETI, Bruno; LÉPORE, Paulo. Manual de Direitos Humanos. São Paulo: Editora Jus Podivm, 2022.
MAZZUOLI, Valério Oliveira. (Org.). Vade Macum Internacional: Método. 15ª Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
PAIVA, Caio; ARAGON HEEMANN, Thimotie. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos. 3ª. Edilção. Belo Horizonte: CEI, 2020.
SEABRA, Gustavo Cives. Manual de Direito da Criança e do Adolescente. 2ª Edição. Belo Horizonte: CEI, 2021.
Links
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