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Comissão da Verdade: até que ponto?

Comissão da Verdade: até que ponto?

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Por recomendação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, diante do caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia), o Brasil criou a Comissão da Verdade, que foi limitada pela Lei da Anistia, afastando qualquer possibilidade de revisão da mesma para que se pudesse punir os torturadores da ditadura militar.

Resumo: Com a criação da Comissão da Verdade, bem como a delimitação das atividades dos seus integrantes que foram empossados recentemente, cogita este trabalho de demonstrar as seqüelas deixadas pelas torturas praticadas no Brasil ao tempo do período da ditadura militar em todos aqueles que se insurgiram de uma forma ou de outra contra tal regime de governo. Como contraponto a essa situação posta, questiona-se a amplitude da Lei da Anistia que também agasalhou a impossibilidade de qualquer punição para os algozes do período ditatorial. Demonstra-se, igualmente que a Comissão da Verdade não terá qualquer efeito conciliador e muito menos prático.

Palavras-chave: Comissão da Verdade – Tortura – ditadura militar – Anistia.

Sumário: Introdução. 1. Breve escorço histórico da ditadura militar no Brasil. 2. O conceito e uma breve visão doutrinária da tortura. 2.1. A tortura como marca registrada do período de exceção brasileiro. 2.2. A tortura no ordenamento jurídico brasileiro. 2.3. A tortura praticada na ditadura militar alvo de cobrança da Corte Interamericana de Direitos Humanos. 2.4. Síntese da posição dos militares em relação à Comissão da Verdade. 2.5. A Lei de Anistia e a busca de outra versão normativa pelo Poder Legislativo. 3. A verdade e a Justiça. O que são? 4. A Comissão da Verdade como fator de esquecimento ou recrudescimento da tortura? Conclusão. Notas. Referências.


Introdução

Muito se escreve sobre o período da ditadura militar no Brasil. Também muito se escreve acerca do sofrimento das pessoas que foram vítimas de torturas em tal período, assim como dos familiares daqueles que foram mortos ou estão desaparecidos por obra dos agentes da repressão naquele momento crítico da história brasileira.

Mais recentemente tem tomado conta das manchetes dos jornais e da mídia em geral a criação da Comissão da Verdade que visa apurar o desaparecimento de pessoas em tal momento de exceção. A propósito dela, muito também se tem escrito sob os mais variados enfoques seja nos jornais, ou seja, na internet.

Aqui se pretende mostrar um outro lado do mesmo tema, diferente dos já publicados.

Pois bem. De fato, por recomendação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, posta nos itens 294 a 297 da sentença em que o Brasil foi demandado no caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) o mesmo se viu obrigado a criar uma Comissão da Verdade com o propósito de:

297. Quanto à criação de uma Comissão da Verdade, a Corte considera que se trata de um mecanismo importante, entre outros aspectos, para cumprir a obrigação do Estado de garantir o direito de conhecer a verdade sobre o ocorrido. Com efeito, o estabelecimento de uma Comissão da Verdade, dependendo do objeto, do procedimento, da estrutura e da finalidade de seu mandato, pode contribuir para a construção e preservação da memória histórica, o esclarecimento de fatos e a determinação de responsabilidades institucionais, sociais e políticas em determinados períodos históricos de uma sociedade. Por isso, o Tribunal valora a iniciativa de criação da Comissão Nacional da Verdade e exorta o Estado a implementá-la, em conformidade com critérios de independência, idoneidade e transparência na seleção de seus membros, assim como a dotá-la de recursos e atribuições que lhe possibilitem cumprir eficazmente com seu mandato. A Corte julga pertinente, no entanto, destacar que as atividades e informações que, eventualmente, recolha essa Comissão, não substituem a obrigação do Estado de estabelecer a verdade e assegurar a determinação judicial de responsabilidades individuais, através dos processos judiciais penais. ( Sem grifo no original).

Referida Comissão que nasceu, portanto, por força da Lei 12528, publicada em 18 de novembro de 2011, tem o seu artigo 1º com a seguinte redação:

É criada, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, a Comissão Nacional da Verdade, com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional. (sem grifo no original).

Para atingir tal desiderato, a mesma lei no seu artigo 2º estabelece:

A Comissão Nacional da Verdade, composta de forma pluralista, será integrada por 7 (sete) membros, designados pelo Presidente da República, dentre brasileiros, de reconhecida idoneidade e conduta ética, identificados com a defesa da democracia e da institucionalidade constitucional, bem como com o respeito aos direitos humanos.

Por seu turno, o artigo 8º referido no artigo 1º acima, estabelece o período sobre o qual recairão os atos de investigação da aludida Comissão da Verdade:

Art. 8º. É concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo Decreto Legislativo nº 18, de 15 de dezembro de 1961, e aos atingidos pelo Decreto-Lei nº 864, de 12 de setembro de 1969, asseguradas as promoções, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividade previstos nas leis e regulamentos vigentes, respeitadas as características e peculiaridades das carreiras dos servidores públicos civis e militares e observados os respectivos regimes jurídicos. (Regulamento) (Sem grifo no original)

Pela dita lei, então, aludida Comissão da Verdade terá a sua atuação limitada ao espaço temporal por ela mesmo estabelecido, qual seja de 18 de setembro de 1946 até 05 de outubro de 1988. Entretanto, os fatos que deverão ser por ela apurados, ao que se sabe pelo menos historicamente, se deram com maior amplitude no interregno de 1964 até 1985, período de um governo militar, ou seja, da Ditadura Militar.

Cabe ressaltar, para logo, que a Comissão da Verdade nos moldes em que foi aprovada não está em consonância integral com a recomendação da Corte Interamericana já que não está autorizada a promover as responsabilidades penais dos torturadores do período da ditadura. Muito embora isso, o Brasil não está imunizado dessa responsabilidade, pelo que se dessume do item 297 da sentença acima transcrito.

Com a criação agora dessa Comissão para investigar as reais condições em que ocorreram as mortes ou o desaparecimento daquelas pessoas mencionadas pela imprensa, deve ser indagado: qual deverá ser o alcance da atuação dessa Comissão? Deverá abranger a responsabilidade penal dos torturadores? Caso isso não seja possível, qual será o efeito prático da criação dessa Comissão diante da Lei da Anistia?

Logo, o que se pretende aqui é justamente tentar dar alguma resposta a tais questionamentos, devendo ser colocado, ainda, que a relevância do tema se detecta no fato de se saber o que pode ou não ser decidido pela dita Comissão.

Não se pretende, pois, uma incursão exaustiva no tema da Comissão da Verdade, até mesmo porque o próprio termo “verdade” tem a sua dimensão discutida. Buscar-se-á, assim, uma revisão de artigos já publicados tanto na internet quanto em literatura específica.


1. Breve escorço histórico da ditadura militar no Brasil

O período compreendido entre 1964 e 1985 foi considerado como a época em que a política brasileira foi conduzida pelos militares. Ficou conhecido também como o Golpe de 64 ou também como Revolução de 31 de Março de 64. Esse tempo ficou registrado na história do Brasil através da prática de vários Atos Institucionais que colocavam em prática a censura, a perseguição política, a supressão de direitos constitucionais, a falta total de democracia e a repressão àqueles que eram contrários ao regime militar.

Com isso, implantou-se no Brasil a chamada ditadura militar, que se inaugurou com o afastamento do então Presidente da República, João Goulart, e tomando o poder o Marechal Castelo Branco. Este golpe de estado durou até a eleição de Tancredo Neves em 1985. Os militares na época justificaram o golpe, sob a alegação de que havia uma infiltração comunista no país.

O primeiro ato de exceção criado pelos militares após a tomada de poder foi o Ato Institucional nº1. Esse instrumento normativo conferiu ao governo militar o poder de alterar a Constituição, cassar mandatos legislativos, interromper direitos políticos por 10 anos e demitir, colocar em disponibilidade ou aposentar compulsoriamente qualquer pessoa que fosse contra a segurança do país, o regime democrático e a probidade da administração pública, além de determinar eleições indiretas para a presidência da República.

O Alto Comando das Forças Armadas passou a manter o controle da sucessão presidencial, indicando um candidato militar que era referendado pelo Congresso Nacional.

Foi, então, no dito período de 1964 a 1985 que o Brasil, de fato, enfrentou um governo de exceção, conduzido por militares. Nesse espaço de tempo acreditaram os militares, como dito acima, que o país estava contaminado pelos comunistas e, por tal razão, alvo de subversivos. Parece, assim, que o foco maior da Comissão da Verdade será nesse lapso temporal.

Sabe-se, assim, que muita arbitrariedade foi cometida, acobertada pelo argumento de que seria necessário um forte combate aos subversivos, aos comunistas. A tortura foi a nota de toque. O DOPS (Departamento de Ordem e Política Social) é um dos órgãos públicos lembrado como um dos expoentes significativos na prática da tortura.

Nessa busca implacável feita pelos militares, vários jornalistas, mesmo outros militares que não se afinavam com o regime, políticos, radialistas, ou foram executados ou passaram a ter seus destinos ignorados. Vários políticos foram cassados em seus direitos. Até mesmo magistrados foram vítimas de tal perseguição.

A imprensa não se cansa de divulgar os nomes de pessoas famosas que foram alvo dos rigores daquele momento histórico, tais como Vladmir Herzog cuja morte até hoje não foi devidamente esclarecida: suicídio ou homicídio? Essa é a dúvida que perdura. A própria Presidenta da República, dentre outros nomes de destaque no cenário nacional. Muitos foram exilados, tais como o ex-presidente João Goulart, o ex-presidente Juscelino, o ex-governador Leonel Brizola, o ex-deputado federal Miguel Arraes.

Cantores também foram perseguidos e exilados como Gilberto Gil, Caetano Veloso e Chico Buarque de Holanda. Músicas eram censuradas e até proibidas se fossem entendidas como críticas ao governo militar. Quem não se lembra da música “prá não dizer que não falei das flores”, de autoria de Geraldo Vandré? Foi proibida. Cantar essa música era ofensa ao regime de governo da época.

Em 1979, quando o Brasil começou a viver um momento de atenuação do regime foi votada e aprovada a Lei 6683, de 28 de agosto de 1979, a chamada Lei da Anistia, assinada no governo de João Baptista Figueiredo de forma ampla geral e irrestrita. Equivale dizer, ela permitia a volta dos brasileiros exilados. De se lembrar que àquela época se dizia que brasileiro deve estar no Brasil.

No entanto, referida Lei da Anistia não se preocupou em punir aqueles que serviram ao regime militar com a prática de torturas de várias pessoas. Os militares, portanto, por força da dita lei ficaram isentos de qualquer punição pelo que fizeram naquele período negro da história brasileira.

Mesmo com a edição de tal lei, não se pode perder de vista que o retorno gradativo à Democracia permitindo a volta dos exilados, restituindo cargo dos cassados, etc. não foi o suficiente para deixar de lado outras questões, a exemplo do que de fato aconteceu com determinadas pessoas. Aliás, como morreu Vladimir Herzog? Qual a notícia que se tem dos desaparecidos.


2. O conceito e uma breve visão doutrinária da tortura

Parece que durante a ditadura a tortura estava legitimada, que seu uso para a obtenção de informações estava autorizado.

Mas como falar de um tratamento desumano não muito distante no tempo se não se buscar ajuda do que seja tortura ainda que seja em normas postas bem após aquele período negro.

Para ser conceituada ou mesmo entendida a tortura, basta fazer uma leitura do artigo primeiro da Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (Resolução 39/46 da Assembléia Geral das Nações Unidas) que foi estabelecida em 10 de dezembro de 1984. Tal Convenção foi ratificada pelo Brasil em 28 de setembro de 1989. Referido dispositivo esclarece por si mesmo, assim:

Artigo 1º

Para fins da presente Convenção, o termo "tortura" designa qualquer acto pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam conseqüência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram. O presente artigo não será interpretado de maneira a restringir qualquer instrumento internacional ou legislação nacional que contenha ou possa conter dispositivos de alcance mais amplo.

Na doutrina, encontra-se o seguinte conceito de tortura: “Trata-se de um conjunto de procedimentos destinados a forçar, com todos os tipos de coerção física e moral, a vontade de um imputado ou de outro suspeito, para admitir, mediante confissão ou depoimento, assim extorquidos, a verdade da acusação. José Afonso da Silva1.

O mesmo autor acima citado ainda menciona:

Aliás, a tecnologia da tortura se torna requintada: espetos sob as unhas, queimaduras de cigarros, choques elétricos no reto, na vagina, no pênis, espancamentos, aparelhos de tormentos de variada espécie, de que sobressai o famoso “pau-de-arara”, ameaças contra a mulher, filhos e filhas, etc. As coisas mais pavorosas que a mente doentia pode engendrar.

Difícil, portanto, não entender com facilidade o que seja tortura. Mais difícil será esquecê-la por parte de quem a sofreu na própria carne.

Há quem refute o conceito esposado por José Afonso da Silva por entendê-lo limitado já que ele, o conceito, na verdade deve ser mais abrangente.

Nesse sentido é o que sustenta Marco Felix Jobim2: “o conceito de tortura elaborado por José Afonso da Silva peca ao colocar somente a mesma para ver conseguida a verdade da acusação, esquecendo-se o jurista que existe tortura simplesmente pelo ato de torturar.

2.1. A tortura como marca registrada do período de exceção brasileiro

No Brasil, como já referido alhures, o período de 1964 a 1985 ficou conhecido como da Ditadura Militar. Neste interregno, vários procedimentos policiais e depoimentos indicam a tortura física e psicológica como meio utilizado por membros do governo e grupos militares com o objetivo de controlar a população. Dentre as formas de tortura mais utilizadas naquele período negro destacam-se, segundo Michel Goulart3.

- O pau-de-arara que consistia numa barra de ferro que era atravessada entre os punhos amarrados e a dobra do joelho, sendo o conjunto colocado entre duas mesas, ficando o corpo do torturado pendurado a cerca de 20 ou 30 centímetros do solo. Este método quase nunca era utilizado isoladamente, seus complementos normais eram eletrochoques, a palmatória e o afogamento.

- O choque elétrico foi um dos métodos de tortura mais cruéis e largamente utilizados durante o regime militar. Geralmente, o choque dado através telefone de campanha do exército que possuía dois fios longos que eram ligados ao cor­po nu, normalmente nas partes sexuais, além dos ouvidos, dentes, língua e dedos. O acusado recebia descargas sucessivas, a ponto de cair no chão.

- A pimentinha era uma máquina que era constituída de uma caixa de madeira que, no seu interior, tinha um ímã permanente, no campo do qual girava um rotor combinado, de cujos terminais uma escova recolhia corrente elétrica que era conduzida através de fios. Essa máquina dava choques em torno de 100 volts no acusado.

- No afogamento, os torturadores fechavam as narinas do preso e colocavam uma mangueira, toalha molhada ou tubo de borracha dentro da boca do acusado para obrigá-lo a engolir água. Outro método era mergulhar a cabeça do torturado num balde, tanque ou tambor cheio de água (ou até fezes), forçando sua nuca para baixo até o limite do afogamento.

- A cadeira do dragão era uma espécie de cadeira elétrica, onde os presos sentavam pelados numa cadeira revestida de zinco ligada a terminais elétricos. Quando o aparelho era ligado na eletricidade, o zinco transmitia choques a todo o corpo. Muitas vezes, os torturadores enfiavam na cabeça da vítima um balde de metal, onde também eram aplicados choques.

- Na geladeira, os presos ficavam pelados numa cela baixa e pequena, que os impedia de ficar de pé. Depois, os torturadores alternavam um sistema de refrigeração superfrio e um sistema de aquecimento que produzia calor insuportável, enquanto alto-falantes emitiam sons irritantes. Os presos ficavam na “geladeira” por vários dias, sem água ou comida.

- A palmatória era como uma raquete de madeira, bem pesada. Geralmente, este instrumento era utilizado em conjunto com outras formas de tortura, com o objetivo de aumentar o sofrimento do acusado. Com a palmatória, as vítimas eram agredidas em várias partes do corpo, principalmente em seus órgãos genitais.

De acordo ainda com Goulart4:

Havia também vários produtos químicos que eram comprovadamente utilizados como método de tortura. Para fazer o acusado confessar, era aplicado soro de pentatotal, substância que fazia a pessoa falar, em estado de sonolência. Em alguns casos, ácido era jogado no rosto da vítima, o que podia causar inchaço ou mesmo deformação permanente.

Vários tipos de agressões físicas eram combinados às outras formas de tortura. Um dos mais cruéis era o popular “telefone”. Com as duas mãos em forma de concha, o torturador dava tapas ao mesmo tempo contra os dois ouvidos do preso. A técnica era tão brutal que podia romper os tímpanos do acusado e provocar surdez permanente.

De certa forma, falar de tortura psicológica é redundância, considerando que todo o tipo de tortura deixa marcas emocionais que duram a vida inteira. Porém, havia formas de tortura que tinham o objetivo específico de provocar o medo, como ameaças e perseguições que geravam duplo efeito: fazer a vítima calar ou delatar conhecidos.

A nota de toque mais importante do citado período foi, assim, a tortura, tal qual se deu na Idade Média com a Inquisição com a diferença aqui que não houve o cunho religioso medievo.

Nessa mesma linha, e sob o título “Tortura no Brasil, uma herança maldita”, escreveu Maria Victoria de Mesquita Benevides Soares5:

No Brasil, a geração mais jovem, que não viveu o regime militar, terá ouvido falar da luta pelos Direitos Humanos daqueles perseguidos por suas convicções ou por sua militância política, presos, torturados, estuprados, assassinados, exilados, banidos e alguns, até hoje, dados oficialmente como “desaparecidos”. Mas talvez não saiba que foi nessa época que surgiu e cresceu o reconhecimento de que eles, “os subversivos”, tinham direitos invioláveis, mesmo que condenados de acordo com a lei vigente; que continuavam portadores “do direito a ter direitos” como qualquer ser humano.

Para muitos, os Direitos Humanos eram considerados “direitos de bandidos” ou artimanhas dos advogados. A repressão atingiu opositores membros das classes médias, como professores e estudantes, advogados e jornalistas, artistas e religiosos, além dos suspeitos de sempre, como ativistas e sindicalistas da cidade e do campo. A maioria, que nunca tinha visitado prisões, passou a sentir na pele a situação desumana dos ditos “presos comuns”, oriundos das classes populares. E passou também a constatar a tragédia do sistema prisional e a inoperância dos órgãos do Judiciário.

Diante disso, e apenas para rememorar, o que teria sofrido Vladimir Herzog para ter se “suicidado”?

Para aqueles que viveram e sofreram perseguições em tal época, bem como para os descendentes deles, nenhuma felicidade deve existir em relembrar tal momento negro de suas vidas. Com certeza qualquer mínima lembrança deve ser motivo de sofrimento para eles até os dias atuais. Todos e tantos foram atingidos nas suas almas, nas suas dignidades. Esquecer não é tão fácil assim!

De acordo com Paulo Vannuchi6, a discussão da tortura não se debruça apenas na lembrança de um passado, mas ainda se revela como prática persistente no cotidiano brasileiro, retocada pelas condições do tempo presente, por óbvio, sofisticando-se em sua forma e seu alcance. É fundamental quebrar esse ciclo de impunidade e, para isso, busca-se reafirmar o vínculo indissolúvel entre a tortura de hoje e a praticada no passado ditatorial recente. A dignidade de cada uma dessas lutas está na capacidade de se compreenderem como parte uma da outra.

2.2. A tortura no ordenamento jurídico brasileiro.

Para quê falar da tortura na Constituição se o que interessa é a tortura utilizada num período bem anterior à Carta Fundamental?

Com certeza não se discute isso aqui, mas a lembrança do tratamento da tortura na Constituição vem apenas para reforçar o relevo que o Texto Básico fornece a tal tipo de crime.

Deixando de lado o racismo, os crimes hediondos, o terrorismo e a ação de grupos armados civis ou militares contra a ordem constitucional por qual razão o legislador constituinte teria dado tanta ênfase ao crime de tortura e aos outros crimes aqui elencados? Por que não se preocupou em fazer o mesmo com o furto, com o estelionato, etc?

A resposta só pode vir justificada pelo argumento de que o Brasil acabara de sair do período da ditadura, e com certeza o que causou feridas no passado tanto no corpo quanto na alma não poderia continuar sem um tratamento diferenciado: a tortura!

Logo, a Constituição Federal cogita da tortura em 3 passagens distintas, a saber: a) o inciso III do artigo 5º quando afirma que ninguém será submetido a tortura ou a tratamento desumano ou degradante; b) o inciso XLIII do mesmo artigo 5º o qual prescreve que a lei considerará a prática da tortura crime inafiançável e insuscetível de graça, por ele respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-lo, se omitirem.

Infraconstitucionalmente, a tortura vem regulada pela Lei n. 9.455. de 7 de abril de 1997, que define em seu artigo 1º o que é tortura, sendo que, posteriormente, com o advento da Lei n. 8.072. de 1990, tal conduta foi elencada como crime inafiançável e insuscetível de graça, anistia ou indulto, juntamente com o tráfico de drogas ou entorpecentes, terrorismo e os próprios crimes hediondos tipificados no artigo 1º da referida Lei, não havendo, pois, no ordenamento jurídico pátrio em vigor, qualquer dispositivo legal que autorize a prática de tortura, apenas existindo, conforme já visto acima, aqueles que a vedam.

Nada obstante, e voltando a José Afonso Silva7, a condenação da tortura pelas constituições de quase todos os Estados do mundo não tem significado seu definitivo desaparecimento.

Na mesma fonte retrocitada, é o mesmo autor quem afirma:

Não mais usada como meio de prova regulada pela lei tem sido aplicada, todavia, sistematicamente como instrumento infame de domínio político, por parte de monstruosas tiranias, como a nazista ou comunista assinaladamente na idade stalinista, ou mesmo de nações que se definem como civis como a França (durante a guerra na Argélia) ou o hodierno Brasil.

A tortura não é só um crime contra o direito à vida. É uma crueldade que atinge a pessoa em todas as suas dimensões, e a humanidade como um todo.

Por sua gravidade, a tortura como crime, na previsão da Lei 9.455/97, gera como efeito automático da sentença penal condenatória, se praticada por servidor público a perda de cargo ou função, como frisa o artigo 1º § 5º, assim redigido:

A condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada.

Em comentários a tal dispositivo da Lei acima, Norberto Avena8 esclarece que “tal efeito é automático, prescindindo de fundamentação, bastando à Administração Pública, após o trânsito em julgado, executar o ato de exclusão. Aponta, inclusive jurisprudência do STJ nesse sentido: HC 134.218/GO, DJ 08.9.2009”.

2.3. A tortura praticada na ditadura militar alvo de cobrança da Corte Interamericana de Direitos Humanos

Em 24 de novembro de 2010 a Corte Interamericana e Direitos Humanos, no julgamento do caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) versus Brasil entendeu que este deve ser considerado responsável pelo desaparecimento de 62 pessoas, o que aconteceu entre os anos de 1972 e 1974, na região do Araguaia.

Uma das vítimas ouvidas na Corte assim se manifestou:

Laura Petit da Silva, suposta vítima, proposta pela Comissão e pelos representantes. Declarou sobre: a) a identificação de sua irmã, Maria Lúcia Petit da Silva; b) o impacto que teve em sua vida e na de sua família a alegada execução de sua irmã e o suposto desaparecimento de seus irmãos, Lúcio e Jaime Petit da Silva, e c) os esforços e obstáculos que teria enfrentado para obter verdade e justiça; ( Sem grifo no original).

Pedro Lenza9 alerta que:

A Corte concluiu que a Lei da Anistia, ao impedir investigações, negar acesso a arquivos e não prever sanções às violações de direitos humanos, é incompatível com as obrigações assumidas pelo Brasil perante a Convenção Americana de Direitos Humanos.

Eis o embate, a decisão da Suprema Corte brasileira, mantendo a Lei da Anistia e a condenação do Brasil perante a Corte Interamericana, declarando a referida lei incompatível com as obrigações internacionais assumidas pelo Brasil.

Não há dúvida de que, muito embora a decisão não anule a da jurisdição nacional (STF), o Brasil vai sofrer as conseqüências no plano internacional, sujeitando-se às sanções previstas na Convenção.

Deve ser esclarecido que o Conselho Federal da OAB antes mesmo do julgamento da Corte Interamericana, em agosto de 2010, interpôs a ADPF nº 153 buscando a anulação do perdão dado pela Lei da Anistia aos representantes do Estado (policiais e militares), os quais foram acusados da prática de atos tortura durante o regime militar.

Acontece que o STF, por 7x2 rejeitou o pedido e revisão, tendo como Relator o então Ministro Eros Grau.

Adiante a ementa da decisão proferida na aludida ADPF:

(...) A chamada Lei da anistia veicula uma decisão política assumida naquele momento – o momento da transição conciliada em 1979. A Lei 6.683 é uma lei-medida, não uma regra para o futuro, dotada da abstração e generalidade. Há de ser interpretada a partir da realidade no momento em que foi conquistada. A Lei n. 6.683/79 precede a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes – adotada pela Assembléia Geral em 10 de dezembro de 1984, vigorando desde 26 de junho de 1987 – e a Lei 9.455, de 7 de abril de 1997, que define o crime de tortura; e o preceito veiculado pelo artigo 5º, XLIII da Constituição – que declara insuscetível de graça e anistia a prática de tortura, entre outros crimes – não alcança, por impossibilidade lógica, anistias anteriormente à sua vigência consumadas. A Constituição não afeta leis-medida que a tenham precedido. No estado democrático de direito o Poder Judiciário não está autorizado a alterar, a dar outra redação, diversa da nele contemplada, a texto normativo. Pode, a partir dele, produzir distintas normas. Mas nem mesmo o Supremo Tribunal Federal está autorizado a reescrever leis de anistia. Revisão da lei de anistia, se mudanças do tempo e da sociedade a impuserem, haverá – ou não – de ser feita pelo Poder Legislativo, não pelo Poder Judiciário. A anistia da lei de 1979 foi reafirmada, no texto da EC 26/85, pelo Poder Constituinte da Constituição de 1988. Daí não ter sentido questionar-se se a anistia tal como definida pela lei, foi ou não recebida pela Constituição de 1988; a nova Constituição a (re) instaurou em ato originário.

(ADPF 153, Rel. Min. Eros Grau, j. 29.4.2010, Plenário, DJE de 06.08.2010).

Na verdade, em rápidas palavras, a rejeição se deu sob o argumento de que não cabe ao Judiciário rever lei de anistia, mas sim o Legislativo. Difícil não é discutir a técnica da decisão. Difícil é digerir a injustiça da decisão.

Dessa forma, a decisão da Corte Suprema brasileira revela à saciedade que a Lei da Anistia opera como fato impeditivo de uma atuação profunda da Comissão da Verdade. Na verdade, esta ficou limitada por aquela decisão superior.

2.4. Síntese da posição dos militares em relação à Comissão da Verdade

Para Antonio Carlos Lacerda10, existe um documento do Exército que se mostra resistente à criação da Comissão Nacional da Verdade para apurar crimes praticados durante a ditadura militar de 1964 a 1985, posto que apontar seus responsáveis reabre o enfrentamento - iniciado no final do mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva - entre militares e o governo brasileiro, por conta das chamadas feridas incicatrizáveis.

Para ele, ainda, em referido documento, elaborado pelo Comando do Exército, com a adesão da Marinha e da Aeronáutica, os militares afirmam que o argumento da reconstrução da história parece tão somente pretender abrir ferida na amálgama nacional, o que não trará benefício. Ao revés, irá provocar tensões e sérias desavenças ao trazer fatos superados à nova discussão.

Afirmam, pois, os militares que não há mais como apurar fatos ocorridos no período da ditadura militar e que todos os envolvidos já estariam mortos. O tempo passado de quase 30 anos do fim do governo chamado militar e muitas pessoas que viveram aquele período já faleceram: testemunhas, documentos e provas praticamente perderam-se no tempo. É improvável chegar-se realmente à verdade dos fatos.

Eles reconhecem ser legítimo o direito das famílias de buscar desaparecidos, mas falam em revanchismo: "O que não cabe é valer-se de causa nobre para promover retaliações políticas", dizem.

É de se indagar aqui: Afinal, por quem os sinos dobram?

2.5 A Lei da Anistia e a busca de outra versão normativa pelo Poder Legislativo

Pelo que se apura neste instante, a Câmara dos Deputados analisa o Projeto de Lei 573/11, da deputada Luiza Erundina (PSB-SP), que exclui do rol de crimes anistiados após a ditadura militar (1964-1985) aqueles cometidos por agentes públicos, militares ou civis, contra pessoas que, efetiva ou supostamente, praticaram crimes políticos. Segundo a proposta, esses atos não estão incluídos entre os crimes conexos definidos na Lei da Anistia (6.683/79).

Ao que consta, essa lei considera conexos crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política. A proposta de Erundina determina ainda que a prescrição ou outra exclusão da punibilidade não se aplique aos crimes não elencados pela Lei da Anistia.

A parlamentar explica que o objetivo é dar interpretação uniforme à anistia declarada em Lei. Segundo ela, trata-se de uma reação à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que considerou anistiados os crimes comuns, praticados por agentes públicos, civis e militares, contra os oponentes ao regime político então vigente.

De acordo com ela, já à época da promulgação da Lei da Anistia, os atos de terrorismo de Estado, tais como o homicídio, com ou sem a ocultação de cadáver, a tortura e o abuso sexual de presos, praticados pelos agentes públicos de segurança contra opositores ao regime militar, qualificaram-se como crimes contra a humanidade, insuscetíveis de anistia e de prescrição da punibilidade.

Não se desconhece que a Lei da Anistia extinguiu a punibilidade dos que cometeram crimes políticos ou conexos com estes ou crimes eleitorais. A lei também devolveu os direitos políticos suspensos e anistiou servidores públicos e representantes sindicais punidos com base em Atos Institucionais e Complementares entre setembro de 1961 e agosto de 1979.

No momento, o projeto está na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados desde 19/10/2011 em que o Deputado Jilmar Tatto funciona como Relator.


3. A verdade e a Justiça. O que são?

Quid est veritas? O que é a verdade? Essa pergunta perpassa os séculos desde que Pôncio Pilatos ao julgar Jesus Cristo retrucou a este indagando o que era a verdade.

Com efeito, de acordo no Evangelho de São João, Capítulo 18 versículos 37 e 38, acerca de Cristo na presença de Pôncio Pilatos para ser julgado, ocorre o seguinte diálogo:

Disse-lhe, pois, Pilatos: Logo tu és rei?

Jesus respondeu: Tu dizes que eu sou rei. Eu para isso nasci, e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele é da verdade ouve a minha voz.

Disse-lhe Pilatos: Que é a verdade? E, dizendo isto, tornou a ir ter com os judeus, e disse-lhes: Não acho nele crime algum. (Sem grifo no original).

A partir de então sempre se colocou a verdade numa dimensão filosófica. E então, o que é a verdade?

No dicionário Aurélio encontra-se a seguinte definição de verdade: “Conformidade com o real”.

Já numa dimensão filosófica, há quem sustente que os filósofos começaram a se perguntar sobre as mais diversas questões que passam pelo pensamento humano. Dentre elas esta a verdade e sobre ela se pergunta: o que é a verdade?

Platão apud Wisley Francisco Aguiar11 inaugura seu pensamento sobre a verdade afirmando: “Verdadeiro é o discurso que diz as coisas como são; falso aquele que as diz como não são”. É a partir daí que começou a se formar a problemática em torno da verdade. Certo é que não existe uma verdade cujo sujeito possa ser o seu detentor.

A Filosofia distingue cinco conceitos fundamentais da verdade, a saber: a) a verdade como correspondência, que é a verdade que garante a realidade, isto é, o objeto falado é apresentado como ele é; b)a verdade como revelação, que é aquela que surge de forma empirista, através das sensações ; c) a verdade como conformidade a uma regra, que é aquela que deve se adaptar a uma regra ou a um conceito; d) a verdade como coerência, que é a verdade que critica o mundo da experiência humana partindo da idéia de que “o princípio de que o que é contraditório, não pode ser real”, isso o fez aceitar que “a verdade é coerência perfeita”; por fim, e) a verdade como utilidade, onde o verdadeiro não significa em geral senão o que é apto à conservação da humanidade.

Na ótica do filósofo Wisley Francisco Aguiar12 “a verdade possui inúmeros significados, dependendo da pessoa que a defina. Ela continuará sendo uma das questões mais abordadas nestes últimos tempos. Estamos em um mundo de grandes transformações”.

De acordo com ele, ainda, “muitas ideologias nos sãos apresentadas como verdades inquebrantáveis. Somos forçados a acreditar na mídia, na política e na manifestação religiosa. Isso acontece de uma maneira inconsciente”.

Ele ainda assegura que: “o que nos libertará de toda essa prisão é nossa atitude como sujeitos formadores de consciência crítica. A questão é ir a fundo sobre aquilo que nos é apresentado. Fugir do senso comum e criar opiniões próprias. Depende de você encarar isso como verdade”.

À toda evidência, o primeiro conceito, isto é, aquele que diz que a verdade como correspondência é a verdade que garante a realidade, isto é, o objeto falado é apresentado como ele é. Só mesmo ele estaria afinado com uma apuração integral feita pela Comissão da Verdade. Essa, sim, seria a dimensão correta de verdade. Mas seria essa a verdade desejada pela dita Comissão?

E quando a verdade, em qualquer de seus ângulos ora focalizados é justa?

Aqui, outra vez, se socorre da filosofia para esclarecer o que é ser justo, o que é justiça.

Por mais que professores, filósofos e operadores das ciências jurídicas tentem, uma das mais árduas missões do Direito é definir o que, afinal de contas, pode ser considerado como “Justiça”.

Não é demais afirmar que sempre se disse que a busca da Justiça é o ideal que persegue todo o direito, e o fato de ter havido e haver direitos injustos, não destrói esse ideal.

Contudo, antes de se deter mais atentamente aos meandros da definição de Justiça, é de extrema importância observar-se os motivos pelos quais a Justiça seria necessária em uma sociedade.

Nesse sentido, diversos filósofos e cientistas sociais chegam a um acordo quanto à necessidade de o homem viver em sociedade. Resumindo drasticamente, pode-se considerar que o ser humano possui uma ordem social, ou seja, um desejo / necessidade de coexistir. Deste modo, segundo Daniel Christianini Nery13, os principais motivos para os homens procurarem vida em sociedade e a paz seriam:

- o medo da morte; e

- o desejo de uma vida confortável.

Consoante ainda o autor retromencionado, a única maneira para se atingir tais objetivos – que, em uma palavra, podem ser resumidos pelos termos autopreservação ou ainda bem-comum – é a criação de um Estado. Porém, essa criação humana só é possibilitada pela realização de pactos recíprocos entre os homens e, sendo a justiça a manutenção dos pactos, é evidente a importância desse conceito.

Em Hobbes apud Christianini14, este leciona que essa idéia inicial pode ser obtida pela leitura do conceito de justiça contido n’O Leviatã, cuja análise também ocorre em dois momentos interdependentes. Primeiramente, Hobbes explica que a justiça é a manutenção dos pactos, algo fundamental e, inclusive, necessário à sobrevivência da vida do Estado. Exatamente por isso, num segundo momento – decorrente do primeiro –, cabe ao Estado, a partir de sua criação, possibilitar que a justiça sempre prevaleça.

Para ele, ainda segundo aquele filósofo, para que as palavras "justo" e "injusto" possam ter lugar, é necessário que o Estado detenha alguma espécie de poder coercitivo, capaz de obrigar igualmente os homens ao cumprimento dos seus pactos, mediante a ameaça de alguma sanção que seja superior ao benefício que o ofensor esperava tirar com o rompimento do pacto.

Para Ulpiano, também apud Christianini15, justiça é "a vontade firme e permanente de dar a cada um o seu direito" (justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuere).

Numa concepção religiosa, justiça seria "não fazer aos outros aquilo que não quiseres que façam a ti".

Percebe-se até aqui que a justiça seria um pressuposto que leva a sociedade a um bem-estar e felicidade social, bem como estaria implicitamente ligado ao conceito de igualdade / isonomia.

O mesmo autor antes declinado, após tecer as suas considerações acerca da justiça paritária, da justiça valorativa, da justiça restaurativa, da justiça proporcional, bem como da justiça corretiva, preocupa-se em definir a justiça como sendo o conjunto de características e valores, mutáveis em razão da evolução social, pelas quais o Estado (de forma coercitiva), e os demais membros da sociedade organizada (de forma crítica), se balizam para criar e seguir regras que, isonomicamente, visem a manutenção dos pactos sociais estabelecidos para a criação e manutenção da sociedade, sendo um elemento essencial para a obtenção do bem comum. Justiça é, entre outros valores, virtude, liberdade, igualdade, racionalidade, boa vontade, boa fé, humildade ante a finitude da vida humana, moderação nas ações, honestidade e aplicação de sanções àqueles que descumprirem suas obrigações perante a sociedade.

A justiça é uma eterna procura.

Na doutrina, Friede16 anota que:

Não obstante o fato de possuir o juiz uma determinada condição, em princípio, acima da própria autoridade pública, de modo geral, por exercitar mais diretamente _agindo como Estado em nome do próprio Estado – o poder estatal, através da jurisdição, em nenhuma hipótese, tem o magistrado uma autoridade e um poder que não estejam nitidamente previstos e limitados pela Constituição Federal e pelas leis infraconstitucionais que para ela convergem.

Por essa razão não podem os juízes –como erroneamente supõem os menos avisados – realizar o que se convencionou atecnicamente denominar-se justiça, de forma ampla, subjetiva e absoluta, considerando que o verdadeiro e único Poder, outorgado legítima e tradicionalmente aos magistrados – desde o advento da tripartição funcional dos poderes – é a prestação da tutela jurisdicional, com o conseqüente poder de interpretação e aplicação jurídico vigente, majoritariamente criado – em sua vertente fundamental pelo Poder Legislativo, rigorosamente limitado à absoluta observância de regras próprias e específicas que, forçosamente, restringem o resultado final do que e convencionou chamar de justiça à sua acepção básica, objetiva e concreta e, portanto, dependente da efetiva preexistência de um denominado Direito Justo.

De acordo com Friede17, ainda, “hoje, entende-se por justiça a aplicabilidade eficiente e correta das leis vigentes em um determinado pais. Um juiz faz justiça quando imparcialmente, sem propender emocionalmente para esta ou aquela parte, aplica os preceitos legais cabíveis naquele caso em pauta”.

Diante das anotações ora postas acerca tanto da verdade quanto da justiça, torna-se pertinente a seguinte pergunta: Teria sido justa a decisão do Supremo Tribunal Federal ao rejeitar a ADPF 153 e, por conseqüência afirmar a constitucionalidade da Lei da Anistia?

Pelo conceito de justiça sim. Para as vítimas das torturas não importa tal conceito.


4. A Comissão da Verdade como fator de esquecimento ou recrudescimento da tortura?

Há muito se sustenta na doutrina que nenhum direito fundamental é absoluto. Parece não haver discussão quanto a isso.

Seria de s indagar: então o direito de não ser torturado não é absoluto? Parece que sim por tal raciocínio.

Entrementes, a despeito da maciça maioria em tal direção, quer parecer que Norberto Bobbio18, pensa de maneira diferente, assim:

Inicialmente, cabe dizer que, entre os direitos humanos, como já se observou várias vezes, há direitos com estatutos muito diversos entre si. Há alguns que valem em qualquer situação e para todos os homens indistintamente: são os direitos acerca dos quais há a exigência de não serem limitados nem diante de casos excepcionais, nem com relação a este ou aquela categoria, mesmo restrita, de membros do gênero humano, (é o caso, por exemplo, do direito de não ser escravizado e de não sofrer tortura) esses Direitos são privilegiados porque não são postos em concorrência com outros direitos, ainda que também fundamentais. (Sem grifo no original).

Com certeza o pensamento do filósofo italiano está mais voltado para a realidade do que a corrente que sustenta não existir direito fundamental absoluto.

Ora, se é verdade que existe o direito absoluto de não ser torturado também pode ser verdade que é possível uma revisão pelo Congresso Nacional da Lei de Anistia que, equivocadamente, perdoou até os algozes da ditadura militar. Isso em consonância com o resultado da decisão do Supremo ao apreciar a ADPF 153.

Somente assim, o Brasil estaria dando àqueles que sofreram torturas com a ditadura militar uma resposta estatal decente digna e com a verdadeira justiça.

Logo, dizer que com a Comissão da Verdade, manca como nasceu, irá dar a cada um o que seu na visão justa de Ulpiano, é puro engodo.

Comissão manca porque já nasceu impedida por de lei de promover qualquer procedimento judicial penal contra os torturadores.

De que adiantará, por exemplo, a viúva de Vladimir Herzog ter a confirmação do médico legista Harry Shibata, que fez a necropsia em seu marido, ficar sabendo agora que, na verdade, ele foi executado pelos militares e não se suicidou? Qual o consolo ela terá? Como funcionará em sua mente saber de tudo isso? Sua dor irá desaparecer, diminuir ou aumentar ao saber que nada poderá ser feito penalmente? Que justiça decorre disso tudo para ela? Ao que parece nada.

No jornal “O Globo” edição de 20 de maio de 2012, no Caderno o País, Clarice Herzog, viúva de Vladimir afirma que “não adianta esperar que a comissão traga alívio para a mágoa, a dor e a perda”.

Ao instalar a Comissão da Verdade, um dos seus integrantes, José Paulo Cavalcanti foi entrevistado pelo Jornal O Globo no dia 18 de maio de 2012, no Caderno O País, e na abertura a manchete está dito que “Focar o início do trabalho na apuração de informações sobre desaparecidos políticos e não fomentar qualquer tentativa de revisão da Lei da Anistia foram as duas principais orientações da presidente Dilma Rousseff aos integrantes da Comissão da Verdade”.

Ai está a confirmação de que a Comissão nasceu manca e de que com certeza nenhuma utilidade terá a não ser recrudescer velhas mágoas com o fato de nada se poder fazer contra os torturadores que forem identificados.

Quem em sã consciência ficará satisfeito quando souber, pela verdade levantada, que determinado parente morreu vítima de torturas praticadas por determinado agente do Estado e que contra o mesmo nada poderá ser feito penalmente justamente porque a Comissão a Verdade está impedida a tanto? Pior ainda. Quando souber que pela recomendação da Corte Interamericana referida comissão deveria buscar a tutela penal para os torturadores e tal não foi acatado, como reagirá o parente da vítima? À toda evidência ficará mais revoltado.

O que poderá cobrar os parentes das vítimas de tal Comissão? Nada, pois ela foi castrada pela própria lei que a criou.

Lado outro, não se pode perder de vista também que pela Lei 9140 de 1995, sancionada pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, todos os desaparecidos, mais de 100 pessoas ali relacionadas, passaram a ser consideradas como mortas, assim:

Art. 1º São reconhecidos como mortas, para todos os efeitos legais, as pessoas que tenham participado, ou tenham sido acusadas de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988, e que, por este motivo, tenham sido detidas por agentes públicos, achando-se, deste então, desaparecidas, sem que delas haja notícias. (Redação dada pela Lei nº 10.536, de 2002)

Art. 2º A aplicação das disposições desta Lei e todos os seus efeitos orientar-se-ão pelo princípio de reconciliação e de pacificação nacional, expresso na Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979 - Lei de Anistia.

Em suma, a Comissão da Verdade apenas servirá para aumentar o sofrimento de tais pessoas. Haverá, pois o recrudescimento, repete-se, das mágoas. Ele constitui um verdadeiro engodo político e normativo.

Averbe-se em prol disso que o Jornal do Brasil, edição de 22 de junho deste ano publicou que o governo brasileiro, em resposta à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, informou que a Lei da Anistia impede que se abra no país uma investigação sobre a morte do jornalista Vladimir Herzog, ocorrida em 1975, durante a ditadura militar.

Para piorar, a própria Presidenta da República, Dilma Rousseff, anunciou no jornal O Globo de 23 de junho deste ano, no caderno O País, que não tem ódio dos seus torturadores, nem vontade de vingança, mas que não os perdoa.

Ora, se a representante maior de uma nação afirma que não perdoa os seus torturadores, como se pode esperar das demais vítimas uma posição conformista?

O tempo dirá acerca da eficácia da Comissão da Verdade.


Conclusão

Nesta parte, pode-se concluir então, que ficou claro que a Comissão da Verdade nasceu de uma recomendação da Corte Interamericana de Direitos Humanos e não de uma decisão política de quem também foi vítima da ditadura militar, no caso a própria presidenta Dilma Rousseff.

Da mesma forma, restou patente, também, que tal Comissão da Verdade surgiu em descompasso com a Corte Interamericana de Direitos Humanos ao julgar o caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia).

No mesmo diapasão, comprovou-se que a Lei da Anistia afastou das pretensões da Comissão da Verdade qualquer possibilidade de revisão da mesma para que se pudesse punir os torturadores da ditadura militar. E, pior, com apoio no próprio julgamento pelo STF da ADPF 153 de agosto de 2010.

Ficou evidente que nenhum destinatário de tal Comissão será contemplado com uma decisão que faça justiça pelo fato morte ou desaparecimento de seus entes queridos ante a limitação imposta legalmente à Comissão.

Sem medo de errar, pode-se afirmar que a Comissão, na verdade, não terá nenhum efeito prático e muito menos conciliador, justamente pelo desabafo da viúva daquele que se pode reputar um emblema da tortura militar que é Vladimir Herzog quando ela diz que “não adianta esperar que a comissão traga alívio para a mágoa, a dor e a perda”. Dificilmente os demais parentes das vitimas pensarão de forma contrária a ela e, principalmente, quando se sabe que há forte resistência das Forças Armadas à criação da mencionada Comissão.

A verdade é que apenas, e tão-só o Poder Legislativo poderá, com a aprovação do Projeto de Lei da Deputada Erundina da Silva, reverter toda uma situação posta em desfavor daqueles que sofreram e ainda sofrem seqüelas dos porões da ditadura militar. Ai, sim, a esperança de justiça e da verdade real irá, de fato, conciliar e amenizar as dores.

Por fim, caso contrário ao que se fala no item acima, a Comissão da Verdade, sem querer fazer trocadilho, na verdade, será apenas um instrumento criado para aumentar a dor dos familiares das vitimas e dos desaparecidos já dados como mortos por força de lei.


Referências

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Notas

1 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, p. 203/204.

2 JOBIM, Marco Felix. O direito fundamental a não ser torturado e o direito penal do inimigo. Disponível em https://www.ajdd.com.br/artigos/art3.pdf. Acesso e 10/6/2012.

3 GOULART, Michel. 10 torturas da ditadura militar. Disponível em: https://www.historiadigital.org/historia-do-brasil/brasil-republica/ditadura militar/ Acesso em 8/6/2012.

4 Ibidem

5 SOARES, Maria Victoria de Mesquita Benevides. Tortura no Brasil, uma herança maldita. Disponível em https://portal.mj.gov.br/sedh/biblioteca/livro_tortura.pdf. Acesso em 08/6/2012.

6 VANNUCHI, Paulo. Ministro de Estado Chefe da Secretaria de Direitos Humanos. Seminário Nacional sobre Tortura realizado nos dias 4 e 5 de maio de 2010, na Universidade de Brasília (UnB), no Distrito Federal. O evento foi promovido pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, por meio da Coordenação Geral de Combate à Tortura, em parceria com a UnB através do Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos (NEP).

7 Ibidem

8 AVENA, Norberto. Processo penal esquematizado. São Paulo: Método, 2012, p. 1077.

9 - LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 1152.

10 LACERDA, Antonio Carlos. https://port.pravda.ru/cplp/brasil/10-03-2011/31364-brasil_ditadura-0/. Acesso em 10/6/2012.

11 Wisley Francisco. O que é a verdade? Disponível em https://minhafilosofia.blogspot.com.br/2007/01/o-que-verdade.html . Acesso em 10/6/2012.

12 Ibidem.

13NERY, Daniel Christianini. O que é justiça, afinal? Disponível em https://www.revistaautor.com/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=522:o-que-usti-afinal&catid=15:direito&Itemid=44. Acesso em 10/6/2012.

14 Ibidem.

15 Ibidem.

16 FRIEDE, Reis. Ciência do Direito, Norma, Interpretação e Hermenêutica Jurídica. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1997, p.39/40.

17 Ibidem.

18 - BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Ri de Janeiro: Campus, 1999, p. 20.


Abstract: With the National Truth Commission, as well as the delimitation of the activities of its members, which have been appointed recently, this paper aims at demonstrating the severe consequences caused by the torture practiced in Brazil at the time of the military dictatorship as a way to repress all those who stood against this military regime. As a counterweight of this situation, the extent of the 1979 Amnesty Law is questioned, since it also made it impossible to punish the perpetrators of the torture practiced during the military regime. This paper also aims at demonstrating that the National Truth Commission will not be effective or bring reconciliation.

Key words: : Truth Commission – torture - military dictatorship - Amnesty


Autor

  • Sebastião Raul Moura Júnior

    Sebastião Raul Moura Júnior

    Mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Campos, RJ. Pós-graduado em Magistério Superior em Direito pela Universidade Estácio de Sá. Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Estácio de Sá. Pós-graduando em Direito Público na Unisal. Promotor de Justiça aposentado pelo Estado de Minas Gerais. Ex-Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Professor de Processo Penal da Faculdade de Direito de Valença, RJ. Atualmente, professor de Processo Penal no UBM-Centro Universitário de Barra Mansa-RJ.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOURA JÚNIOR, Sebastião Raul. Comissão da Verdade: até que ponto?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3303, 17 jul. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22225. Acesso em: 18 abr. 2024.