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Ponderações sobre o neoconstitucionalismo brasileiro

Ponderações sobre o neoconstitucionalismo brasileiro

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Analisam-se as principais alterações sofridas no Constitucionalismo brasileiro nos últimos anos, especialmente em relação ao controle de constitucionalidade.

Resumo: O objetivo do presente trabalho é apresentar um panorama geral das principais alterações da teoria do direito constitucional no último século, especificamente a passagem do modelo positivista para o pós-positivista e neoconstitucionalista, destacando sua recepção pela Constituição Federal de 1988 e sua expressão na prática jurídica brasileira. Longe de esgotar o tema e sua infinidade de doutrinadores, o que se pretende fundamentalmente e situar dogmaticamente o contexto constitucional brasileiro atual.

Palavras-chave: Positivismo, pós-positivismo, neoconstitucionalismo.


Na virada do século XIX, o jusnaturalismo pré-Hegeliano havia sido superado pela doutrina positivista, de forma hipostasiada, expressa nas idéias da Teoria Pura do Direito de Kelsen, na qual o sistema jurídico era entendido sob uma perspectiva científica, cujo objeto é a norma jurídica. As demandas sociais e econômicas à época exigiam da teoria do direito uma maior clareza, previsibilidade e estabilidade, consolidadas no imperativo da segurança jurídica, que justificava o sucesso da teoria positivista, assim descrito por Kaufmann[1]:

As sociedades complexas com uma economia desenvolvida exigem um elevado grau de segurança jurídica; esta não pode, porém ser assegurada pelos sistemas de direito natural tradicionalmente por serem necessárias leis gerais e abstractas.

(...) a nova concepção do Estado implica que o portador da vontade do Estado emita leis como soberano. Mas a lei assim legitimada é tão incontestável como o próprio soberano, de cujo poder decorre sua validade. (...) O aspecto fulcral desta distinção reside no facto de a validade de uma lei apenas depender da observação do procedimento legislativo formal, da existência de um autêntico acto de vontade do soberano, não do conteúdo da lei. A positividade torna-se a <<natureza>> do direito.

A separação entre conteúdo formal e material da lei, sendo este desprezado na aferição de sua validade, representava um dos pontos centrais da teoria positivista, conferindo, além de segurança, pretensa racionalidade e método científico ao direito, uma vez resumido à teoria da norma jurídica. Além do “esvaziamento material” do estudo do direito, apresenta-se como ponto central do positivismo a completude e fechamento do sistema. Sob esse enfoque, o sistema é fechado, suficiente em si mesmo para tutelar todas as condutas humanas. Assim, todo comportamento estaria previsto positivamente ou negativamente, de acordo com a regra de calibragem “tudo o que não está proibido está permitido”.

Nesse contexto a Constituição possui o papel limitado de disciplinar a produção de normas, estabelecer a tripartição dos poderes e conferir fundamento de validade formal às normas infraconstitucional. A unidade do sistema, por sua vez, é conferida pela norma hipotética fundamental, metodologicamente necessária apenas como prius lógico que confere fundamento de validade à Constituição, sem qualquer conteúdo axiológico, assim explicada nas palavras de Gilberto Becovici[2]:

Segundo Kelsen, a estrutura hierárquica do processo de criação do direito termina em uma norma que fundamenta a unidade do ordenamento jurídico. A norma fundamental é hipotética, não positivada, portanto, não é determinada por nenhuma norma superior do direito positivo. Esta norma fundamental é a “Constituição em sentido lógico-jurídico”, que institui um órgão criador do direito, um grau inferior que estabelece as normas que regulam a elaboração da legislação. Este órgão é a Constituição propriamente dita, ou “Constituição em sentido jurídico-positivo”

A noção de falsa pureza científica, neutralidade do direito e total completude do sistema, são criticadas em todos os enfoques expostos. Quando o direito passa a ser entendido como fenômeno lingüístico, em meados do século XX, e há a separação entre linguagem (das normas) e metalinguagem (ciência do direito), a regra de fechamento do sistema “tudo o que não está proibido está permitido” é exposta e se mostra deficiente ao referir-se à metalinguagem e não à linguagem jurídica, conforme sintetiza Maria Helena Diniz[3],

Assim, se considerarmos a questão sob o ângulo da linguagem, veremos que o direito ou norma é linguagem-objeto, uma vez que não fala sobre si mesmo; as normas são proposições deônticas prescritivas ou normativas, elaboradas pelo legislador, juiz ou órgão competente, sendo um fator de controle social, prescrevendo condutas, demonstrando com isso sua natureza sintética, já que estatuem sobre o mundo dos fatos. Já o princípio da plenitude, revela um conhecimento sobre o direito, é uma metalinguagem, porquanto se dirige à linguagem-objeto, sendo, nesse sentido, uma proposição descritiva, formal ou lógica, isto é, analítica, posto que não se refere ao mundo fático, o que vem a comprovar, uma vez mais, a falta de normatividade do referido dogma.

Não só na crítica à regra de fechamento assentam-se os questionamentos ao modelo positivista. Outro ponto de suma importância é a incapacidade de atribuir juízo valorativo à norma e, de certa forma, mantê-la estagnada no dado momento social em que foi projetada, ou seja, a aplicação da norma por simples subsunção não acompanha os constantes e necessários movimentos dialéticos da sociedade. O sistema jurídico passa a ser visto como dotado de “textura aberta”, nas palavras de Hart. O positivismo se revela incompleto para exprimir as relações jurídicas frente à complexidade das condutas sociais tuteladas pelas normas jurídicas.

Somado a isso, com o fim da II Grande Guerra, o mundo, não apenas o jurídico, passou por uma série de mudanças significativas, dentre as quais se destaca a teoria constitucional pós-positivista e o florescimento dos direitos e garantias fundamentais. Nos regimes totalitários idealizados, sobretudo na Alemanha e na Itália atrocidades foram cometidas sob o manto da legalidade, sem que qualquer análise axiológica fosse tomada na verificação de legitimação dessas ações. Essa situação foi retratada por Hannah Arendt[4] ao relatar a “banalidade do mal” de um oficial nazista julgado que, ao se defender, evoca o estrito cumprimento da lei esvaziada de reflexão moral sobre suas atitudes.

A verificação da norma por seus aspectos formais mostrou-se insuficiente em conflito direto com o sentimento moral e de equidade, a “pureza” do direito deixou de servir aos propósitos do próprio direito, estabilizar relações sociais.

Após esse nebuloso período da história, segundo Kaufman[5], os tribunais reagiram à crise do direito positivo com “argumentos de direito natural”, ao afastarem leis por eles consideradas injustas, com fundamento em um “direito essencial suprapositivo”. No entanto, o retorno ao jusnaturalismo “não foi fruto da racionalidade e da razoabilidade, mas a acusação deve, na verdade, ser dirigida à ciência, em especial à filosofia do direito, que não preparou a jurisprudência para o fenômeno da injustiça legal.” Desse fenômeno episódico, subsistiu a idéia de valores supralegais, dos quais, por meio do “raciocínio de subsunção substantivo-ontológico” extraem-se conclusões lógicas e concretas. No movimento pós-positivista, repudia-se a fonte supralegal jusnaturalista, mas utiliza-se o mesmo raciocínio.

O pêndulo dialético que oscilava entre jusnaturalismo e positivismo, nesse dado momento histórico em que deveria ter se inclinado para o jusnaturalismo, estacionou em parte da trajetória, justamente no ponto referente à teoria e metodologia do direito, pois ambas as correntes extraem as decisões concretas unicamente por meio da dedução estritamente lógica da norma, opondo-se somente quanto à fonte do direito, princípios ético-jurídicos (jusnaturalismo) e vontade móvel do legislador (positivismo).

Em que pese a semelhança quanto ao método de aplicação do direito, os modelos se opõe frontalmente em diversos aspectos. O sistema entendido como incompleto, carece de outros sistemas para a resolução de conflitos, pois, a solução dada pode não ser “justa”. Os critérios para conhecimento desses demais sistemas devem ser juridicamente reconhecidos e integrados ao sistema normativo.

A tradição positivista já não se mostrava mais adequada, pois a pressuposta completude do sistema e o emprego da subsunção do fato à norma deram lugar à ponderação e à teoria da argumentação. O sistema jurídico passa a ser entendido como aberto, integrando outros sistemas (moral, economia, sociologia, etc.) ao discurso argumentativo, composto por regras e princípio jurídicos, carregados de valos axiológico, contemplados pelo texto constitucional, que assume tais valores como delimitadores da atividade legislativa infraconstitucional.

A denominada constituição do Estado Constitucional, definida por Josep Aguiló[6], não apenas limita o poder político do Estado e apresenta garantias aos direitos dos cidadãos, mas também “assume valores e fins do constitucionalismo como ideologia”, sob duas perspectivas, “os desenhos institucionais idôneos para a garantia desses valores e fins” e “o caráter regulador desses valores e fins”, trata-se, portanto, de uma constituição “constitutiva e regulativa”.

Dessa forma, a constituição pós-positivista encampa uma série de valores caros à existência humana, como direito a vida, dignidade, etc., de forma a condicionar a validade das normas infraconstitucionais à adequação com esses valores. Ademais de limitarem a atuação estatal, os valores constitucionalizados representam verdadeiro projeto a ser seguido pelo legislador na sua proteção e efetivação, conforme acrescenta Canotilho[7]:

“(...) os direitos, liberdades e garantias são regras e princípios jurídicos, imediatamente eficazes e actuais, por via direta da Constituição e não através da actoritas interpositio do legislador. Não são simples norma normarum mas norma normata , isto é, não são meras normas para a produção de normas, mas sim normas diretamente reguladoras de relações jurídico-materiais.

Além de estarem previstos e limitarem a atuação do Poder Legislativo, os direitos constitucionais (direitos fundamentais), como se verá, são dotados de executoriedade própria, exigíveis e concretizáveis sem o necessário intermédio da lei.

Outras características também permeiam o texto constitucional pós-positivista, didaticamente sintetizadas por Daniel Sarmento[8]:

(a) Reconhecimento da força normativa dos princípios jurídicos e valorização da sua importância no processo de aplicação do Direito; (b) rejeição ao formalismo e recurso mais frequente a métodos ou “estilos” mais abertos de raciocínio jurídico: ponderação, tópica, teoria da argumentação etc.; (c) constitucionalização do Direito, com a irradiação das normas e valores constitucionais, sobretudo os relacionados aos direitos fundamentais, para todos os ramos do ordenamento; (d) reaproximação entre o Direito e a Moral, com a penetração cada vez maior da Filosofia nos debates jurídicos; e (e) judicialização da política e das relações sociais, com um significativo deslocamento de poder da esfera do Legislativo e do Executivo para o Poder Judiciário.

Como já assinalado, o texto constitucional passa a ser composto por princípios e regras, sem adentrar no mérito da discussão sobre as distinções mais profundas entre essas espécies normativas, impende ainda destacar uma distinção entre elas. Enquanto na aplicação das regras verifica-se o “tudo ou nada”, ou seja, ou a regra é aplicada (vale), ou não é (não vale ou lhe é imposta uma exceção), aos princípios é aplicada a lei de colisão[9], na qual os princípios, tidos como mandamentos de máxima otimização, em sua aplicação colidem, sem representar uma situação de invalidez ou exceção, amoldando-se ao caso concreto. Essa característica remete à segunda característica destacada por Sarmento, na qual a subsunção, antes empregada na aplicação de regras, cede espaço para a ponderação e demais técnicas como a tópica e a interpretação argumentativa[10]:

(...) a interpretação tem significado decisivo para a consolidação e preservação da força normativa da Constituição. A interpretação constitucional está submetida ao princípio da ótima concretização da norma (Gebot optimaler Verwirklichung der Norm). Evidentemente, esse princípio não pode ser aplicado com base nos meios fornecidos pela subsunção lógica e pela construção conceitual. (...) A interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada situação.

Assim, tendo os valores constitucionais como fins a serem atingidos, o sistema jurídico passa a incorporar também o sistema moral, entretanto, não entendido pela valoração cultural do homem médio, mas extraído racionalmente da própria existência política humana, retomando a noção de imperativo categórico preconizada por Kant.

Nesse sentido, como última característica a ser destacada, sem entrarmos na discussão sobre eventual existência de um núcleo essencial dos princípios constitucionais ou do próprio texto, cabe pontuar que os princípios além de suscetíveis à lei de colisão, possuem um conteúdo no mais das vezes impreciso e mutável, carecedor de delimitação por parte de seus aplicadores, os guardiões da Constituição, o que desemboca no problema que será a seguir analisado sob a perspectiva do constitucionalismo brasileiro, o ativismo judicial, porquanto, sendo o texto constitucional dotado de princípios axiologicamente relevantes e de conteúdo elástico, resta aos Tribunais o papel não restrito a aplicar o direito, mas muitas vezes de legislar.

No contexto brasileiro, a teoria pós-positivista foi encampada sob a roupagem do termo neoconstitucionalismo, afora toda a discussão sobre a distinção entre as duas correntes, tema que foge ao objetivo do presente trabalho, os dois signos serão tidos como similares, sob o enfoque das características aqui apresentadas.

No contexto brasileiro, o Estado do bem-estar social não deixou de ser um mero projeto, além disso, o próprio processo de redemocratização ao término da ditadura militar não foi revolucionário, nem preponderantemente popular, conforme Francis Hagopian[11], deu-se por impulso e vontade do próprio corpo militar, que já prevera sua saída do poder. Talvez, segue o Autor, os movimentos sociais e a pressão popular tenham somente apressado um pouco o fim do regime, mas certamente não a sua causa.

Mesmo assim, o texto constitucional aprovado em 1988 representa uma grande vitória da democracia, ao apresentar um extenso rol de direitos e garantias fundamentais, dotados de normatividade e aplicabilidade[12]. Além disso, outras características do texto conferem à Constituição seu aspecto neoconstitucionalista, dentre as quais se destacam a rigidez do texto, a previsão de controle de constitucionalidade das normas infraconstitucionais, supremacia da Constituição, entre outros, como acrescenta José Afonso da Silva[13]:

É a primeira vez que uma constituição assinala, especificamente, objetivos do Estado brasileiro, não todos, que seria despropositado, mas os fundamentais, e, entre eles, uns que valem como base das prestações positivas que venham a concretizar a democracia econômica, social e cultural, a fim de efetivar na prática a dignidade da pessoa humana.

Com as benesses de um texto neoconstitucionalista, a Constituição de 1988, também padece de seus males, críticas assinaladas pela doutrina de forma concentrada sobre o fenômeno da judicialização da política, como resultado do produto da somatória de diversos fatores, tais como a prolixidade do texto constitucional no tema de direitos fundamentais, inércia e descrédito dos Poderes Legislativo e Executivo, deturpação do conceito de freios e contrapesos, etc.

Exemplos não faltam exemplos para ilustrar a interferência do judiciário em outro Poderes, em voto proferido na ADI 1351- DF, sobre a cláusula de barreira, o Ministro Gilmar Ferreira Mendes na disse:

(...) é possível antever que o Supremo Tribunal Federal acabe por se livrar do vetusto dogma do legislador negativo e se alie à mais progressiva linha jurisprudencial das decisões interpretativas com eficácia aditiva, já adotadas pelas principais Cortes Constitucionais européias. A assunção de uma atuação criativa pelo Tribunal poderá ser determinante para a solução de antigos problemas relacionados à inconstitucionalidade por omissão, que muitas vezes causam entraves para a efetivação de direitos e garantias fundamentais assegurados pelo texto constitucional. (MENDES, ADI n° 1351-DF, p. 53).

Em diversos outros episódios, no campo do controle concentrado o ativismo do tribunal fica mais claro e produz resultados mais expressivos. Por essa via foram apreciados temas políticos importantes como aqueles ligados à Lei de Biossegurança (Ação Direita de Inconstitucionalidade n. 3.510), à reforma partidária (Ações Diretas de Inconstitucionalidade n. 1.354, além da ADI 1351, acima referida), e à verticalização das candidaturas para a eleição de 2006 (Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.685), com a declaração de inconstitucionalidade, pelo Supremo Tribunal Federal, nos dois últimos casos.

Há ainda exemplos paradigmáticos, como a questão da contribuição previdenciária dos inativos, o direito de greve dos servidores públicos, MI 670/ES, no qual o STF adotou posicionamento concretista na efetivação de normas constitucionais de eficácia limitada[14] greve dos servidores públicos, ao aplicar analogamente o regramento dos trabalhadores comuns.

Além da interferência do Poder Judiciário em outras esferas, suprindo eventuais ausências normativas, verifica-se outro fenômeno protagonizado pelo STF, a transcendência dos motivos determinantes da sentença, exemplificado no julgamento da Representação n. 4.335-5, a qual tem origem no julgamento do habeas corpus n. 82.959, em que se decidiu incidentalmente (por via de controle difuso, portanto), ser inconstitucional o art. 2°, § 1°, da lei de crimes hediondos (Lei n. 8.072/90), que estabelecia a proibição de progressão de regime aos condenados, determinando o cumprimento de toda a pena imposta a crimes hediondos em regime fechado. Com base nessa decisão incidental, a Defensoria Pública da União ajuizou a reclamação, sustentando que a decisão do STF, proferida neste caso, estaria sendo descumprida pela Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco, ao continuar com a aplicação do artigo em questão, ainda a outros condenados, distintos daqueles que haviam sido beneficiados diretamente pelo HC n. 82.959.

Em voto proferido sobre o assunto, o Ministro Gilmar Mendes discorre sobre a ocorrência de mutação constitucional, cujo efeito teria sido o de equiparar os efeitos da decisão de inconstitucionalidade por via de controle difuso com o controle por via concentrada:

[...] a natureza idêntica do controle de constitucionalidade, quanto às suas finalidades e aos procedimentos comuns dominantes para os modelos difuso e concentrado, não mais parece legitimar a distinção quanto aos efeitos das decisões proferidas no controle direto e no controle incidental. Somente essa nova compreensão parece apta a explicar o fato de o Tribunal ter passado a reconhecer efeitos gerais à decisão proferida em sede de controle incidental, independentemente da intervenção do Senado. O mesmo há de se dizer das várias decisões legislativas que reconhecem o efeito transcendente às decisões do STF tomadas em sede de controle difuso. Esse conjunto de decisões judiciais e legislativas revela, em verdade, uma nova compreensão do texto constitucional no âmbito da Constituição de 1988.

Depreende-se da observação dos fenômenos expostos, em que pese os grandes avanços trazidos pelo texto constitucional na proteção e efetivação dos direitos fundamentais, o percurso centralizador da atividade jurisdicional do Supremo Tribunal Federal - órgão cuja composição passa ao largo de preceitos democráticos – desvirtua sua real necessidade de aplicar critérios de reconhecimento do Direito na persecução da justiça constitucional. Como expõe Daniel Sarmento[15]:

O neoconstitucionalismo brasileiro tem pecado por excesso, depositando no Judiciário expectativas que ele nem sempre terá como atender de forma satisfatória. Um dos efeitos colaterais deste fenômeno é a disseminação de um discurso muito perigoso, de que o voto e política não são tão importante, pois relevante mesmo é a interpretação dos princípios constitucionais realizada pelo STF. Daí a dizer que o povo não sabe votar é um pulo, e a ditadura de toga pode não ser muito melhor do que a ditadura de farda...

Em suma, passado todo o percurso da teoria constitucional desenvolvido ao longo do século, a discussão segue com pontos não superados, a necessidade de segurança jurídica e de estabilização das relações sociais, em contraponto às demandas democráticas e de proteção a direitos invioláveis por parte do Estado.

Da mesma forma, a tentação por soluções aparentemente mágicas, imediatas e fáceis para problemas sistêmicos e complexos. Desde a formulação, na República de Platão, do governo comandado pela figura do filósofo-rei, essa idéia seguramente não foi superada na mente de alguns magistrados. Ferramentas e elementos não faltam para a construção de uma teoria constitucional baseada na decisão, em critérios racionais, juridicamente conhecidos e logicamente teorizados, na busca pela formulação de um dos mais caros predicados da teoria jurídica, a prudência.


Notas

[1] KAUFMANN, A.; HASSEMER, W, (org.). Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas. 2 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009, p. 114-115.

[2] BERCOVICI, G. Constituição e política: Uma relação difícil. Lua Nova, n. 61, p. 5-24, 2004, p. 7.

[3]DINIZ, M. H. As lacunas no direito. 9 ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 65-66.

[4] ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém. Tradução José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

[5] KAUFMANN, A.; ob. cit. p. 125-126.

[6]REGLA, J. A. Sobre la constitución del estado constitucional. In: LA PORTA, F. A. (org.). Constitución: Problemas filosóficos. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2003, p. 135-162.

[7] CANOTILHO, J. J. G. Direito Constitucional. 6 ed. rev. Coimbra: Livraria Almeida, 1993, p. 578.

[8]SARMENTO, D. O Neoconstitucionalismo no Brasil: Riscos e Possibilidades. In: QUARESMA, R.; OLIVEIRA, M. L.; OLIVEIRA, F. (Org.). Neoconstitucionalismo. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 267-268.

[9] ALEXY, R. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.

[10]HESSE, K. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991, p. 22-23.

[11] HAGOPIAN, F. The compromised consolidation: the political class in the Brazilian transition. In. MAINWARING, S. O’DONNEL, G. e VALENZUELA, J. S. (org. ). Inssues in democratic consolidation: the new South American democracies in comparative perspective. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1992.

[13] DA SILVA, J. A. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005, pg. 105-106.

[14] SILVA, J. A. Aplicabilidade de normas constitucionais. 2 ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982.

[15] SARMENTO, D. Ob. cit. p. 294-295.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, João Paulo Schwandner. Ponderações sobre o neoconstitucionalismo brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3552, 23 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23970. Acesso em: 25 abr. 2024.