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A anistia em debate ADPF 153 e a Corte Interamericana de Direitos Humanos

A anistia em debate ADPF 153 e a Corte Interamericana de Direitos Humanos

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A revisão da lei de anistia traria benefícios imensuráveis, oportunizando um avanço significativo no desenvolvimento dos direitos humanos e consolidação de um autêntico Estado de Direito no Brasil, mas isso só será possível com a mudança de posição do STF e cumprimento integral do que dispõe a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Resumo: Entre os anos de 1964 e 1985 o Brasil vivenciou sérias e sistemáticas violações aos direitos humanos, a exemplo do que ocorreu na chamada Guerrilha do Araguaia, na qual dezenas de civis desapareceram após o enfrentamento com os militares. O Estado brasileiro renunciou ao direito de punir esses e outros delitos por meio da anistia ampla e geral, concedida em 1979 por um Congresso ainda controlado pelos agentes da ditadura. Em abril de 2010 o Supremo Tribunal Federal entendeu, em sede de controle concentrado de constitucionalidade (ADPF 153), que a Lei de Anistia é formalmente válida, todavia, oito meses depois sobreveio decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em ação proposta pelos familiares das vítimas no Araguaia, determinando a revogação da norma por ela promover a impunidade e estar em desacordo com a Convenção Americana de Direitos Humanos. Não obstante a obrigatoriedade do cumprimento dos Tratados internacionais firmados, garantida inclusive pela Convenção de Viena de 1969, o Estado brasileiro ainda não cumpriu inteiramente a sentença da Corte. Passados quase três anos da condenação, criou-se a Lei de Acesso à Informação e a Comissão Nacional da Verdade, mas pouco se avançou no efetivo cumprimento das obrigações de cunho penal. O STF resiste em reconhecer a obrigatoriedade do cumprimento da decisão. Com efeito, mediante pesquisa doutrinária e jurisprudencial, o presente trabalho procura demonstrar que a desobediência aos compromissos assumidos prejudica a imagem do país perante a comunidade internacional e alimenta o sentimento de impunidade em território nacional, contribuindo para a manutenção do legado autoritário deixado pela ditadura civil-militar no país.

Palavras-chave: Direitos humanos - Tratados – Anistia – Ditadura


1. INTRODUÇÃO

Na segunda metade do século XX, surgiram diversos regimes autoritários na América Latina, justificados pelo receio da expansão comunista e influência capitalista. No Brasil não foi diferente. O Golpe de 1964, insuflado pelos Estados Unidos, instalou no país uma ditadura civil-militar que perdurou por quase vinte anos (GASPARI, 2002, p. 220), na qual ocorreram graves e sistemáticas violações aos direitos humanos em nome da prevalência da ordem e da segurança nacional.

Já no ano de 1966 alguns militantes do Partido Comunista do Brasil, sujeitos à clandestinidade após a institucionalização do bipartidarismo, passaram a arquitetar uma luta armada contra o regime ditatorial (NOSSA, 2012, p. 44-45). Esse conflito desenvolveu-se entre os anos de 1972 e 1975, no Estado do Pará, e foi duramente dissolvido pelo governo, que mobilizou cerca de 10 mil homens altamente armados, resultando em um verdadeiro massacre de civis, em sua maioria estudantes e povo local (ARQUIVO NACIONAL, p. 1). Seus restos mortais ainda hoje estão desaparecidos, vitimas do que Leonencio Nossa (2012, p. 400) classificou como “operação limpeza”, iniciada em 1976 pelos militares para encobrir o que ocorrera na região. A Guerrilha do Araguaia, como ficou conhecida, foi deflagrada na administração Médici (1969-1974) e serviu de base para a recente condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

Não por acaso, o período em que ocorreu o conflito é considerado como o mais violento da ditadura brasileira, pois, pautado no Ato Institucional nº 5 (AI-5), o governo cerceou inúmeros direitos individuais (CAMPOS, 1999, p. 287) e institucionalizou o DOI-codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna) e os Dops (Departamentos de Ordem Política e Social), responsáveis por deter a iniciativa de seus opositores (WOJCIECHOWSKI, 2013. p. 138-139). Nesses órgãos, sob o treinamento de agentes norte-americanos, eram praticados atos de tortura e assassinato em série de civis.

Por intermédio da lei 6.683/79, conhecida como Lei de Anistia, os responsáveis por esses e outros crimes cometidos durante o regime autoritário, inclusive os perpetrados por ocasião da Guerrilha do Araguaia, foram beneficiados. A interpretação dada à norma promoveu o esquecimento jurídico de todos os crimes políticos e conexos praticados entre 1961 e 1979, e teve início uma política de perdão para se atingir a reconciliação nacional.

Esse foi o cenário por mais de trinta anos, até ocorrer o questionamento da constitucionalidade da Lei de Anistia no ano de 2010, pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Em sua decisão, o Supremo Tribunal Federal manifestou que a norma é válida, porém, logo em seguida, a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou sua revogação ao analisar o caso Gomes Lund e outros vs. Brasil (Guerrilha do Araguaia).

Algumas questões surgem a partir dessas determinações: Qual decisão deverá prevalecer? Quais as consequências para o Brasil? Para responder esses e outros questionamentos, este estudo procura se afastar da discussão meramente política e pautar-se numa análise preponderantemente jurídico-social. Para isso, utiliza-se pesquisa doutrinária e jurisprudencial da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do Supremo Tribunal Federal, bem como manifestações recentes de organismos vinculados à ONU.

Assim, a Lei de Anistia será analisada sob dois enfoques: um interno, sob o ponto de vista constitucional desenvolvido pelo Supremo Tribunal Federal, e outro externo, tomando por base as recorrentes manifestações de órgãos vinculados à ONU e o controle de convencionalidade exercido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Em seguida, torna-se imperioso abordar os impactos que a referida norma e as recentes decisões causam no meio social e jurídico, pois, passados quase três anos da decisão que impõe a revogação da Lei de Anistia brasileira, o país pouco fez para cumprir as determinações da Corte.


2. A LEI DE ANISTIA E O STF

A anistia brasileira constituiu-se a partir de um ato político por meio do qual o Poder Legislativo extinguiu a punibilidade de todos os atos praticados durante os anos de 1961 e 1979, tanto delitos políticos quanto os de qualquer natureza conexos com estes. A norma foi promulgada em agosto de 1979 sob o nº 6.683/79. Em seu artigo 1º assim constou:

Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política

Conforme assinala Fernando Capez (2009, p. 567), a Lei de Anistia representa um óbice à produção de consequências penais, porém não atinge os efeitos extrapenais dos delitos, o que permitiu que em alguns casos houvesse o reconhecimento de responsabilidade civil dos torturadores. Um exemplo disso é a condenação do ex-comandante do DOI-codi de São Paulo, Carlos Alberto Brilhante Ustra em outubro de 2008, cuja sentença manifestou que mesmo durante um regime de exceção havia normas de direito internacional que coibiam a prática da tortura, logo, entre o réu e os autores foi reconhecida a existência de “relação jurídica de responsabilidade civil, nascida da prática de ato ilícito, gerador de danos morais” (SÃO PAULO, 23ª Vara Cível, 2008).

Por outro lado, alguns dos atingidos pelo regime de exceção buscavam mais do que indenizações na esfera civil, visavam um esclarecimento do governo sobre o que de fato ocorria nos porões da ditadura, a averiguação do paradeiro dos restos mortais de algumas vítimas, bem como a investigação criminal dos seus executores. Nesse passo, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, por exercer uma espécie de mandato tácito em favor do povo, propôs a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153 (ADPF 153) perante o Supremo Tribunal Federal.

Os pontos levantados na petição que deu origem à ADPF 153 questionavam a recepção da Lei de Anistia pela Constituição de 88 e a interpretação ampla que lhe fora dada. Dessa forma, buscava afastar a mencionada norma da mera interpretação literal para possibilitar uma análise sob enfoque constitucional (COMPARATO; MONTEIRO, 2008, p. 17).

No julgamento, o relator, Ministro Eros Grau, teve seu voto acompanhado pelas ministras Ellen Gracie e Cármen Lúcia, e pelos ministros Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso. Seu relatório abordou basicamente dois aspectos fundamentais capazes de confirmar a validade da Lei de Anistia, a saber: (a) a norma resultou de um acordo político com a participação de diversos setores da sociedade, e (b) não há que se falar em não-recepção, pois a EC nº 26 encarregou-se de validar a Lei de Anistia no ordenamento jurídico vigente (STF. ADPF 153, 2010, p. 12-46).

Com efeito, a anistia defendida em recorrentes manifestações populares pressupunha o esquecimento jurídico de crimes de natureza política, e tinha por objetivos a volta dos exilados ao Brasil e a libertação dos presos políticos (REIS FILHO, 2001, p. 132). Contudo, na forma como foi concebida, a norma acabou beneficiando ambas as partes da relação, ou seja, os opositores do regime e também os seus algozes, porém estes últimos em maior escala. Logo, a norma não representou um acordo nacional recíproco, tendo em vista que essa característica pressupõe uma equivalência de benefícios entre as partes, o que não aconteceu.

Além disso, o Congresso Nacional passava momentos difíceis, pois havia sido institucionalizado o bipartidarismo no Brasil e boa parte dos parlamentares pertencia ao partido ARENA, base do governo. Não obstante, ainda foi criada a figura dos “senadores biônicos” para deter o avanço do MDB, partido de oposição. Logo, em meio a essa conjuntura política, o projeto da Lei de Anistia é votado e aprovado com 50,61% dos votos, ou seja, 206 votos do ARENA contra 201 do MDB. Nesse passo, mesmo tendo sido votada pelo Congresso Nacional, percebe-se a submissão do órgão a condições que comprometiam a sua legitimidade e atingem a validade da norma. (PIOVESAN, 2011, p. 82).

Ainda no julgamento, os Ministros do STF entenderam que a Lei de Anistia (1979) possui plena validade e é compatível com o ordenamento jurídico brasileiro, pois fora confirmada pelo § 1º, art. 4º da EC nº 26/85. De tal modo, a possibilidade de alteração da norma é de competência do Poder Legislativo, pois foi ele quem a editou e a ratificou posteriormente. A referida emenda, que convocou Assembléia Nacional Constituinte e autoinstaurou o poder constituinte originário, é adotada pelo Supremo Tribunal Federal como regra que confere legitimidade à nova ordem constitucional, estando, portanto, nela inserida (STF. ADPF 153, 2010).

Os Ministros Ricardo Lewandowski e Ayres Britto divergiram do voto da maioria e este último afirmou, inclusive, que a EC nº 26 foi tão somente o ato precário e efêmero que convocou a Assembleia Nacional Constituinte, não possuindo qualquer efeito que a vincule. Assim, se a Assembleia Nacional Constituinte queria estabelecer determinada regra, que o fizesse por deliberação própria, pois seu agir é inteiramente incondicional. Outrossim, o texto constitucional de 1988 não trouxe qualquer confirmação da anistia concedida em 1979, pelo contrário, ele dá especial importância à punição de violações aos direitos humanos e veda a concessão de anistia, graça ou fiança aos crimes hediondos e de tortura. Ao considerar esses fatos, o Min. Ayres Britto afirma que a Lei de Anistia brasileira colide com a Constituição e, portanto, não foi por ela recepcionada (STF. ADPF 153, 2010, p. 134-146).

Nesse ponto, sem a pretensão de esgotar o assunto, já que não é objeto do presente estudo, mas com ele guarda relação, torna-se oportuno referir a posição adotada pelo constitucionalista Pedro Lenza (2012, p. 185-186). O referido autor afirma que o poder constituinte originário é responsável por romper por completo com a ordem jurídica anterior e inaugurar a nova, firmando-se pela autonomia, soberania e incondicionalidade de suas decisões. Assim, pode-se inferir que o doutrinador entende que a Assembleia Nacional Constituinte não se submete a quaisquer manifestações prefixadas, o que corrobora o entendimento de grande parte da doutrina e alinha-se com a posição adotada pelo Ministro.

Ayres Britto sustentou, ainda, que a abrangência da Lei de Anistia para crimes como estupro, sequestro, tortura e homicídio não pode ser alvo de suposições. Pelo contrário, se o legislador quisesse estender o benefício a essas pessoas, deveria tê-lo feito expressamente, o que não ocorreu. Aliás, seria improvável que seu objetivo fosse perdoar os responsáveis por delitos tão cruéis, pois essas práticas eram restritas a uma minoria nas Forças Armadas e iam de encontro às próprias leis vigentes à época. Logo, torna-se necessária a (re) análise da Lei de Anistia, pois a interpretação que lhe foi conferida desde sua edição foi além do que previu o legislador e do que é aceitável pela sociedade (STF. ADPF 153, 2010, p. 134-146).

Não obstante os votos contrários no julgamento, prevaleceu a decisão por maioria do Supremo Tribunal Federal no sentido de julgar improcedente a ADPF 153 e manter a Lei de Anistia. O Tribunal examinou a questão segundo a competência que lhe é atribuída no § 1º, art. 102. da Constituição Federal, pelo qual exerce o controle de recepção das normas para prevenir lesão a um preceito fundamental (LENZA, 2012, p. 355-356).

Contudo, o que parece ter ocorrido na decisão final, que validou a Lei de Anistia, foi a prevalência de uma análise político-social e não jurídico-constitucional, conforme demonstrado. Essa concepção, segundo Conrado Hüber Mendes (2008, p. 225-226), é perfeitamente cabível, pois as posições adotadas pelo STF são, cada vez mais, resultados da interação com os outros Poderes, o que impossibilita uma análise puramente jurídica das questões a ele submetidas. No entanto, deve-se ressaltar que o Brasil não está submetido somente à legislação interna e o Supremo já não possui a última palavra nas questões atinentes aos direitos humanos. Ao contrário, o país aderiu voluntariamente a inúmeros tratados internacionais, e seus órgãos jurisdicionais vêm tratando a matéria de forma genuinamente jurídica, pautada nos ditames dos Sistemas Internacionais de Proteção aos Direitos Humanos.


3. A VALIDADE DA LEI DE ANISTIA DIANTE DOS SISTEMAS INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS

Os direitos humanos foram os principais atingidos durante a vigência dos regimes de exceção, e foi ao seu entorno que se construiu um gigantesco aparato protetivo, principalmente em âmbito internacional. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1848) foi um marco no seu processo de internacionalização e serviu de base para outros tantos pactos que compõem atualmente o Sistema Universal de Proteção aos Direitos Humanos. Em 1966 surgiu o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que corroboraram a enorme importância do tema para a comunidade internacional (COMPARATO, 2010, p. 68-81). A partir dessa época, o movimento mundial pela proteção aos direitos inerentes à pessoa humana ganhou força e passou a ser, também, tratado de forma regionalizada na Convenção Européia de Direitos Humanos (1950), na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969), e, finalmente, na Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos (1981).

Não obstante os inúmeros tratados de proteção ao ser humano que apareceram no cenário internacional no século XX, o Brasil manifestou avanços relativamente recentes na ratificação de tratados e reconhecimento dessas prerrogativas. Um exemplo disso é o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana de Direitos Humanos, dos quais o Estado passou a participar apenas no ano de 1992. Outrossim, o país está submetido desde 1998 à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgão contencioso, na qual discutem-se eventuais violações estatais aos direitos e liberdades previstos na Convenção (GOMES; MAZZUOLI, 2011, p. 05).

A ratificação, ainda que tardia, desses tratados proporcionou, segundo Luiz Flavio Gomes e Valerio de Oliveira Mazzuoli (2011, p. 05), o acesso de todos aos sistemas internacionais de direitos humanos e suas Cortes, ampliando as opções do cidadão e prestigiando a importância dos direitos humanos. Nesse diapasão, muitas ações sobrevieram no plano internacional contra o Brasil, intentadas inclusive pelas vítimas e familiares dos atingidos pela ditadura civil-militar entre os anos de 1964 e 1985, onde aconteceram as violações mais impactantes já ocorridas em território nacional.

Desde o ano de 1985, com a conclusão do relatório inicial sobre as leis de anistia, realizado por Louis Joinet, denominado Study on amnesty laws and their role in the safeguard and promotion of human rights, a Organização das Nações Unidas já demonstrava sua desaprovação quanto às leis de autoanistia editadas durante os regimes de exceção (WOJCIECHOWSKI. 2013. p 45). Da mesma forma, o Alto Comissariado para Direitos Humanos da ONU tem manifestado repúdio a essas normas por violarem o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (ONU, 2009, p. 11).

O Comitê de Direitos Humanos, outro órgão pertencente ao Sistema Universal de Proteção aos Direitos Humanos, manifestou-se através da Recomendação Geral nº 20, de 10 de abril de 1992, e, mais recentemente, da Recomendação Geral nº 31, de 26 de maio de 2004, considerando que as violações generalizadas e sistemáticas ao Pacto são crimes de lesa-humanidade e, assim sendo, seus autores não podem se eximir de responsabilidade. Na Recomendação nº 31, assim dispôs:

[...] quanto aos funcionários públicos ou agentes do Estado que cometeram violações dos direitos do Pacto que se refere o presente artigo, os Estados Parte interessados não podem eximir os autores de sua responsabilidade jurídica pessoal, como ocorreu com certas anistias (ver Comentário Geral 20 (44)) e anteriores imunidades e indenizações legais. Além disso, nenhum cargo oficial justifica a imunidade legal às pessoas que podem ser responsáveis por essas violações. (ONU, 2004)

Mais recentemente, nos anos de 2004 e de 2011, o Conselho de Segurança ONU publicou dois informes com o objetivo de analisar o Estado de Direito e a justiça de transição nas sociedades que sofrem ou sofreram conflitos. No documento, o Conselho reafirma a necessidade de rejeição às formas de perdão aos responsáveis por genocídios, crimes de guerra, crimes contra a humanidade ou graves violações dos direitos humanos, para garantir o pleno desenvolvimento de um Estado de Direito (ONU, 2011).

No Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, inaugurado pela Convenção Americana, a primeira decisão atinente ao assunto foi no caso Velásquez vs. Honduras, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no ano 1988, na qual o órgão reconhecia que o Estado hondurenho havia infringido os artigos 4º, 5º, e 7º da Convenção, ofendendo diretamente o direito à vida, integridade pessoal e liberdade de seu cidadão por meio da conduta criminosa de agentes relacionados ao governo ditatorial. Nesta ocasião, o órgão assegurou o direito à justiça, por meio da investigação e aplicação das sanções pertinentes, bem como declarou o direito dos familiares a receberem indenização e conhecerem a verdade sobre os fatos ocorridos (CIDH, 1988, §§ 174, 181 e 189).

Após esta determinação, o órgão manifestou-se inúmeras vezes em situações análogas sempre reafirmando seu posicionamento. Aliás, merece destaque o argumento utilizado na decisão que condenou o Estado peruano no caso Barrios Altos Vs. Peru em 2001, em que a Corte considera inadmissíveis as normas que impedem a responsabilização por crimes como tortura, execuções e desaparecimento forçado, por serem incompatíveis com a letra e o espírito da Convenção Americana e atingirem direitos inderrogáveis adotados no Direito Internacional dos Direitos Humanos (CIDH, 2001, §§ 41 e 43).

Outrossim, em um julgado no ano de 2010, a Corte (§ 140) afirma que o Estado que incentiva a impunidade de violações aos direitos humanos por meio de leis internas, está descumprindo seu dever de garantir às pessoas que se encontram sob sua jurisdição o livre exercício de seus direitos. Ademais, o respeito às liberdades e direitos individuais é obrigação de todos os Estados amparados pela Convenção, segundo dispõe o capítulo I em seu art. 1º:

1. Os Estados-Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.

No mesmo sentido, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, entidade de natureza consultiva, expôs seu posicionamento já no informe anual 1985-1986, conforme assinala Santiago Canton (2001. p. 270), secretário executivo do órgão. Todavia nessa época a Comissão ainda se posicionava de maneira comedida, propondo formas de processar e punir os responsáveis sem atingir o processo de redemocratização e reconciliação nacional. Foi somente a partir de 1992 que passou a consolidar seu entendimento no sentido de reconhecer a total incompatibilidade das leis de autoanistia com a Convenção Americana de Direitos Humanos. Igualmente, os informes relacionados à Argentina a ao Uruguai, editados no mesmo ano, admitiram que a aplicação do instrumento normativo no âmbito doméstico ofende os artigos 8º e 25 do Pacto, referentes ao direito à justiça das vítimas. Tais elementos decisórios foram de suma importância para os pareceres mais recentes da Comissão e para os julgamentos da Corte Interamericana.


4. O BRASIL PERANTE A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

Um dos casos de maior repercussão já levado às Cortes Internacionais contra o Estado brasileiro é o caso Gomes Lund e outros VS. Brasil, julgado em novembro de 2010 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Na decisão, o órgão declara a invalidade da Lei de Anistia, condenando o país a revogá-la, e determina a investigação da verdade e punição dos responsáveis pelos crimes de lesa-humanidade cometidos durante o período de ditadura militar, mais especificamente por ocasião da chamada Guerrilha do Araguaia.

A decisão foi recebida no Brasil com desconfiança. Os Ministros do STF, inclusive, declararam perante a mídia nacional que a decisão do órgão não prejudica a que foi tomada pouco antes pelo Tribunal. O Min. Marco Aurélio deixou claro que a sentença da Corte tem eficácia apenas no campo moral e na prática não surtirá efeitos. Ayres Britto, voto vencido no julgamento da ADPF 153, concorda que a decisão do STF prevalece, porém pontua que ela prejudica a imagem do Brasil perante os organismos internacionais, bem como frente aos demais Estados que cumpriram suas obrigações internacionais, revogando as leis de anistia (GOMES; MAZZUOLI, 2011, p. 51).

A sentença proferida não pode ser vista como imprevisível, tendo em vista que a jurisprudência da Corte e as manifestações dos órgãos vinculados à ONU há muito já expunham sua contrariedade ao perdão concedido aos crimes de lesa-humanidade. Logo, a decisão apenas retratou o pensamento já consolidado na comunidade internacional desde a efetiva materialização dos direitos humanos. O entendimento que prevalece é que nenhuma norma de direito interno pode evitar que o Estado puna os que cometeram crimes contra a humanidade, pois estes permanecem incólumes na consciência do indivíduo cujo direito foi violado e da própria sociedade.

Em uma breve análise, primeiramente é necessário enfatizar que a Corte jamais revogou a decisão do STF proferida na ADPF 153. Suas sentenças não têm o condão de substituir a atuação estatal interna, mas de apenas complementá-la quando esta for inexistente ou insuficiente para garantir a prevalência dos preceitos reconhecidos na Convenção Interamericana de Direitos Humanos. A própria Corte destaca que sua atuação tem caráter subsidiário e sua função não é reformar sentenças internas, mas verificar se elas estão de acordo com as diretrizes internacionais (CIDH, 2010, § 32). O órgão exerce, portanto, o chamado controle de convencionalidade, pelo qual analisa as leis e decisões de âmbito doméstico segundo os critérios determinados pela Convenção.

O processo no caso Gomes Lund e outro vs. Brasil (Guerrilha do Araguaia) iniciou ante a demora do judiciário brasileiro em dar uma resposta convincente às centenas de vítimas e seus familiares. Muitos processos foram instaurados no Brasil, porém, como a anistia concedida representou um óbice à produção de efeitos penais, os processos demoravam anos e ao final eram improcedentes. As famílias dos mortos no Araguaia e o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) apresentaram em agosto de 1995 à Comissão Interamericana de Direitos Humanos uma petição contra a República Federativa do Brasil, admitida em 2001, requerendo providências do Estado brasileiro. No ano de 2008, a Comissão expediu o Relatório de Mérito nº 91/08 prevendo algumas recomendações ao país, que, após sucessivas prorrogações de prazo, quedou-se inerte. O órgão então optou por submeter o caso à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos a fim de que fosse aplicada sua jurisprudência acerca das leis de anistia (CIDH, 2010, p. 03).

A decisão da Corte declarou que a Lei de Anistia brasileira contraria a Convenção Americana em seus artigos 3º, 4º, 5º e 7º (direito ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade, respectivamente), e não possui quaisquer efeitos jurídicos quando impede a persecução penal nos casos de graves violações dos direitos humanos. Também, determinou que o Estado brasileiro proceda na busca dos restos mortais das vítimas do Araguaia, conceda indenizações e tratamento psicológico para os familiares, organize cursos sobre direitos humanos dentro da Forças Armadas, tipifique o delito de desaparecimento forçado e incentive a propagação da informação sobre o ocorrido na Guerrilha e durante a ditadura militar no país. Além disso, o Brasil foi condenado a investigar e punir os autores dos delitos, conforme dispôs a Corte:

O Estado deve conduzir eficazmente, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos do presente caso a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei preveja, em conformidade com o estabelecido nos parágrafos 256 e 257 da presente Sentença (CIDH, 2010, p. 14. e 16).

A punição talvez seja a determinação mais dura imposta ao Brasil e, com certeza, a mais difícil de ser implementada. Depois de mais de 30 anos do fim da ditadura civil-militar no país, constata-se um óbice não só do ponto de vista jurisdicional de produção de provas e apuração da verdade, mas também uma resistência de parte da própria sociedade, que considera mais vantajoso simplesmente deixar de lado que ocorreu e olhar para frente. Segundo Daniel Aarão Reis Filho (2001, p. 135), a sociedade encontra na Lei de Anistia uma forma de esquecimento de sua própria responsabilidade pelos crimes da ditadura, pois, por meio das Marchas da Família com Deus e pela Liberdade, ela incentivou e legitimou o golpe de 1964. Para se alcançar a harmonia social muitas vezes é necessário perdoar o passado e deixar de exercitar a memória, porém os efeitos negativos disso permanecem incólumes no tempo e afetam muito a coletividade.

A prescrição é um argumento bastante utilizado no Brasil para defender a impossibilidade de punição pelos crimes cometidos durante o regime de exceção. Contudo, ainda que se possa extinguir a punibilidade de alguns desses delitos, permanecerá a responsabilidade de processar a julgar os inúmeros casos de desaparecimento forçado ocorridos no período. Esse crime possui natureza permanente, pois permanece em execução até que seja conhecido o paradeiro da vítima ou de seus restos mortais, o que impede a contagem do prazo prescricional. A Corte Interamericana manifestou-se quanto a isso na sentença do caso Araguaia, pois quase a totalidade das vítimas do conflito ainda está desaparecida. Nessa ocasião, o órgão confirmou que não cabe qualquer medida que impeça a punição dos autores do delito de desaparecimento forçado, dada sua gravidade (CIDH, 2010, § 257).

Quanto à extinção punitiva, o Tribunal ainda reforça o caráter imprescritível dos crimes de lesa-humanidade, como execução sumária e tortura sistematizada. A Constituição brasileira confere essa característica apenas ao racismo (art. 5º, XLII) e à ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (art. 5º, XLIV), porém, a imprescritibilidade atinge os crimes contra a humanidade por força da Convenção Sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade, adotada pela Assembleia Geral da ONU em 1968. A Corte preceitua que esse instrumento não é um pacto comum, submetido à ratificação pelos Estados, mas sim um mecanismo supranacional usado para consolidar um costume internacional, tornando-se, portanto, de observância obrigatória pelos Estados (CIDH, 2010, p. 08).

Outro ponto primordial da sentença foi tratado no § 177, no qual a Corte afirma que os Estados signatários de um tratado têm o compromisso de cumprir as obrigações convencionais internacionalmente adquiridas e isso deriva do princípio básico do pacta sunt servanda (CIDH, 2010, § 177). Além disso, o dever do Brasil cumprir a decisão da Corte Interamericana e adequar-se ao Direito Internacional dos Direitos Humanos encontra argumentos tanto externos, mediante a análise de obrigações internacionalmente assumidas, quanto no próprio ordenamento jurídico nacional, conforme será demonstrado.

Nesse sentido, Valerio Mazzuoli (2006. p. 138-139) esclarece que a Convenção de Viena de 1969, ratificada pelo Brasil em 2009, dispõe em seu art. 26. que “todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa fé”, fazendo uma clara referência ao princípio citado pela Corte, e completa no art. 27: “uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado [...]”. Tal mecanismo normativo impede que os Estados utilizem sua legislação interna como álibi no descumprimento de obrigações internacionais assumidas. Isso inviabiliza o descumprimento dos pactos de direitos humanos ratificados pelo Brasil. Além disso, não há qualquer vício na ratificação da Convenção Americana e sua adesão foi voluntária, o que torna obrigatória sua observância pela República Federativa do Brasil e por todos os seus Poderes.

A forma de o país isentar-se do cumprimento desse pacto é através da denúncia, que, segundo Valerio Mazzuoli (2006, p. 147), consiste numa manifestação unilateral de vontade, pela qual o país decide deixar de fazer parte do acordo. Isso representaria um retrocesso para o país, pois, o cumprimento das disposições internacionais não só prestigia os sistemas regionais e universais de proteção aos direitos humanos, como também contribui para a afirmação interna desses direitos.

Sob outra perspectiva, a obrigatoriedade de ajustamento do Brasil às reiteradas decisões internacionais é ainda mais evidente, pois a Constituição Federal de 1988 dá especial atenção aos tratados sobre direitos humanos ratificados pelo país. Exemplo disso é o texto do art. 4º, II, e o art. 5º, com as incorporações dos §§ 3º e 4º pela EC 45. É certo que de nada adiantaria a Constituição fazer referência aos tratados internacionais de direitos humanos se os tribunais nacionais fossem vinculados somente à aplicação da lei interna.


5. AS CONSEQUÊNCIAS DA MANUTENÇÃO DA LEI DE ANISTIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Países como Argentina, Chile e Uruguai, também signatários da Convenção Americana de Direitos Humanos, já reavaliaram suas leis de anistia segundo as diretrizes estabelecidas no âmbito da Corte Interamericana. Atualmente estes Estados trabalham no julgamento das violações ocorridas e no esclarecimento dos fatos para promoção da memória e da verdade, rompendo com seu passado autoritário e aproximando-se dos ditames consagrados no direito internacional (WOJCIECHOWSKI, 2013, p. 188). Agindo dessa forma, percebe-se que perante seus cidadãos os Estados ganham confiança e legitimidade, pois a investigação dos crimes e a busca da verdade são a materialização da verdadeira reconciliação nacional e contribuem para a estabilização do autêntico Estado de Direito.

Se em outros países latinoamericanos o processo transicional vem se desenvolvendo satisfatoriamente segundo os critérios internacionais, o Brasil, por sua vez, avança de forma tímida nessa direção. Apesar das diversas opiniões negativas que surgiram a partir da condenação do país pela CIDH em 2010, foram sancionadas pela Presidente da República duas leis no ano seguinte, que cumprem parcialmente com alguns aspectos dispostos na sentença: a Lei do Acesso à Informação, nº 12.527/11, e a lei que autoriza a Comissão Nacional da Verdade, nº 12.528/11. A primeira dá transparência aos dados e arquivos estatais, a segunda institui comissão responsável pela investigação dos abusos existentes durante o período de repressão. A Comissão Nacional da Verdade ainda prestigia o direito de todos a conhecer os fatos ocorridos durante o regime de exceção e incentiva o reconhecimento histórico da violência praticada no passado, para que ela não volte a ocorrer no futuro

O Brasil é um dos últimos países sul-americanos a instaurar a Comissão da Verdade para apurar as violações ocorridas durante a ditadura. Importante salientar que ela não foi resultado direto da condenação do país no caso Araguaia, pois o projeto de sua criação já estava em andamento no Congresso Nacional sob o nº 7.376/2010. A Corte propôs apenas meras recomendações, afirmando que, para cumprir seu fim, as Comissões da Verdade devem ser constituídas de forma idônea, possuir independência e neutralidade, além de contar com a colaboração dos órgãos públicos e privados (WEICHERT, 2011, p.234).

Atualmente no Brasil, a Comissão Nacional da Verdade enfrenta sérias críticas quanto a sua eficiência, produtividade e comprometimento com a divulgação da realidade vivenciada durante a ditadura. Seus membros, cuja escolha cabe à Presidente da República, já foram substituídos algumas vezes, comprometendo a sequência das pesquisas. Para Marlon Alberto Weichert (2011, p. 242), esses problemas devem ser corrigidos para que o país não perca a oportunidade de conhecer sua história, aprimorar suas instituições e diminuir as chances de reincidência dos abusos do passado. Outrossim, a Comissão da Verdade é um mecanismo oficial que não afasta a atividade judicial, pelo contrário, a obrigação de investigar e punir os casos de violações aos direitos humanos persiste (WEICHERT, 2011, p.234).

Haja vista esses poucos avanços, a realidade é que, passados quase três anos da decisão do Tribunal, muito pouco foi cumprido pelo Estado brasileiro. Esse fato deixa o país em situação delicada perante a comunidade internacional, pois o Brasil é signatário de quase todos os tratados internacionais sobre direitos humanos, tanto em âmbito global, quanto interamericano, os quais foram ratificados e estão atualmente em vigor no território nacional. No contexto do presente trabalho, poderiam ser usados como exemplo de tratados pertencentes ao sistema universal de direitos humanos o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966) e a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984) e, quanto aos pactos do sistema regional interamericano dos quais o país participa, podem ser citadas a Convenção Interamericana para Punir e Prevenir a Tortura (1985) e, talvez a mais importante, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969) (GOMES; MAZZUOLI, 2011, p. 60-61). Com a posição atual do Brasil perante a sua lei de anistia, tem-se que esses pactos constituem-se em mera retórica, pois na prática são ignorados pelo Estado.

Por certo, a desobediência aos preceitos internacionais coloca o Brasil em posição de desigualdade em relação aos países que revogaram suas leis de anistia e prejudica sua imagem internacional, porém isso causa sérios problemas internos também. Um país que não rompe com seu passado autoritário, acaba por contribuir para que os abusos perpetrados voltem a ocorrer. Nesse sentido, em visita ao Brasil no ano de 2012, o Subcomitê de Prevenção da Tortura (SPT), órgão vinculado à ONU, realizou relatório afirmando que a tortura e os maus-tratos nas dependências do Estado são generalizados. Logo, embora existam leis para inibir tratamentos cruéis e degradantes, elas são ignoradas na prática e esses atos são recorrentes nas delegacias de polícia, penitenciárias e instituições para crianças e adolescentes (ONU, 2012, p. 6-8). Trata-se de crimes já conhecidos dos brasileiros, largamente empreendidos pelos agentes do DOI-codi e dos Dops durante a ditadura civil-militar no país.

O órgão confirma, ainda, a existência de um sentimento de conformação entre as pessoas sob custódia do Estado e entre os próprios agentes estatais, que ao descobrir casos de tortura e maus-tratos pouco fazem para impedi-los. Isso se deve à cultura de impunidade difundida no país, que estimula novas transgressões e resulta num circulo vicioso extremamente prejudicial para a sociedade. Merece destaque o trecho que segue do relatório:

A impunidade por atos de tortura está disseminada e se evidencia pelo fracasso generalizado em levar-se os criminosos à justiça, bem como pela persistência de uma cultura que aceita os abusos cometidos pelos funcionários públicos. Em muitas de suas reuniões, o SPT solicitou acesso ao número de indivíduos sentenciados pelo crime de tortura, mas o dado não foi fornecido. Os indivíduos entrevistados pelo SPT não demonstraram esperança de que justiça fosse feita ou de que sua situação particular fosse considerada pelas instituições estatais (ONU, 2012, p. 11).

Segundo o que sugere o STP, a política de aceitação das atuais violações cometidas pelos funcionários públicos pode estar atrelada à herança autoritária que o Brasil cultiva desde a época da ditadura. O sentimento de impunidade e de descrença na justiça tornou-se parte da cultura brasileira.


6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A imensa importância que os direitos humanos adquiriram internacionalmente a partir do século XX é inegável, porém ainda há muito que se avançar no âmbito de cada Estado. Segundo a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e as reiteradas manifestações dos órgãos vinculados à ONU, as leis de autoanistia representam uma afronta direta a esses direitos, pois incentiva a impunidade de graves crimes praticados durante os regimes de exceção. Alheio a isso, o Brasil reconheceu a validade da sua norma anistiadora, contrariando os diversos os tratados ratificados sobre a matéria, principalmente a Convenção Americana e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.

A condenação do país pela Corte Interamericana no caso Guerrilha do Araguaia reconhece o direito à verdade, à memória e à justiça para as vítimas, porém esse último só será alcançado quando a Lei de Anistia for revista. O direito à verdade dos fatos e a promoção da memória foram prestigiados com a criação da Lei de Acesso à Informação e a instituição de uma Comissão Nacional da Verdade. Ambas possuem o papel de reconstituição histórica e contribuem significativamente para a divulgação do que ocorreu durante a ditadura brasileira, porém não são suficientes para cumprir integralmente as determinações da Corte, pois outros deveres permanecem.

Do ponto de vista internacional a imagem do país fica seriamente prejudicada, tendo em vista que os demais Estados sul-americanos já revisaram suas leis de anistia e, mesmo sendo signatário de quase todos os tratados sobre direitos humanos, o Brasil ainda atribui validade à norma. Sob a perspectiva interna, no entanto, o descumprimento da decisão da Corte é ainda mais sério, pois contribui para a afirmação do sentimento de impunidade que permeia a sociedade brasileira. A tortura e os maus-tratos são amplamente aplicados nas dependências do Estado e poucos são processados e punidos por isso, um claro reflexo do legado autoritário deixado pela ditadura.

Não obstante, o Brasil tem o dever de dar cumprimento integral a decisão da Corte por ter aderido voluntariamente à Convenção Americana de Direitos Humanos em 1992. O STF ignorou essa realidade ao fazer a análise da Lei de Anistia na ADPF 153, invocando argumentos históricos e legais, porém com nítida intenção de conter a iniciativa de revisão da norma e consolidar uma política de esquecimento.

Outrossim, é preocupante um Tribunal, cuja função é guardar uma Constituição reconhecida por seu caráter humanístico, adotar essa posição em um tema de suma importância para o país. Aliás, a revisão da lei de anistia traria benefícios imensuráveis, oportunizando um avanço significativo no desenvolvimento dos direitos humanos e consolidação de um autêntico Estado de Direito no Brasil, mas isso só será possível com a mudança de posição do STF e cumprimento integral do que dispõe a Corte Interamericana de Direitos Humanos.


REFERÊNCIAS

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Resumen: Entre los años de 1964 y 1985 Brasil tuvo serias y sistemáticas vivencias relacionadas a los derechos humanos, como ejemplo lo ocurrido en la llamada Guerricha de la Araguaia, en la cual decenas de civiles desaparecieron después del enfrentamiento con militares. El Estado Brasileño renunció al derecho de punir ese y otros delitos por medio de la arnistia amplia y general, editada en 1979 por un Congreso todavia controlado por los agentes de la dictadura. En Abril de 2010 el Supremo Tribunal Federal entendió, en sede de control concentrado de constitucionalidad (ADPF 153), que la Ley de Arnistia es formalmente válida, ocho meses después sobrevino la decisión de la Corte Interamericana de los Derechos Humanos, en acción propuesta por los familiares de las victimas de la Araguaia, determinando la revogación de la norma, por ella promover la impunidad y estar en desacuerdo con la Convención de Viena de 1969, el Estado Brasileño no cumplió aun por entera la sentencia de la Corte. Se pasaron casi tres años de la condenación, y se creo la Ley de Aceso a la Información y la Comisión Nacional de la Verdad, pero poco fue el avanzo en cuanto al efetivo cumplimiento de las obligaciones de caracter penal. El STF se resiste en reconocer la obligatoriedad del cumplimiento de la decisión, desconsiderando su própria decisión en el RE 466.343/SP, en el cual reconoce que prevalece los Tratados Internacionales de Derechos Humanos sobre la ley. Con el efecto, mediante investigación doctrinaria y jurisprudencial, el presente trabajo busca demostrar que la desobediencia a los compromisos asumidos perjudican la imagen del país frente a la comunidad internacional y alimenta el sentimiento de impugnidad en el território nacional, contribuyendo para un legado autoritário dejado por la Dictadura civil-militar en el país.

Palabras-llaves: Derechos Humanos – Tratados- Arnistia- Dictadura


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BATISTA, Daiane Tavares. A anistia em debate ADPF 153 e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4008, 22 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29616. Acesso em: 26 abr. 2024.