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A anistia em debate ADPF 153 e a Corte Interamericana de Direitos Humanos

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22/06/2014 às 13:40

Resumo:


  • O Brasil vivenciou graves violações aos direitos humanos entre 1964 e 1985, destacando-se a Guerrilha do Araguaia, com desaparecimentos de civis após confrontos com militares.

  • O Estado brasileiro concedeu anistia ampla e geral em 1979, renunciando ao direito de punir os delitos cometidos durante a ditadura, mas enfrentou decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos e resistência do STF em cumprir integralmente as obrigações penais.

  • A não revogação da Lei de Anistia prejudica a imagem do Brasil internacionalmente, contribui para a impunidade no país e mantém um legado autoritário da ditadura civil-militar, apesar de avanços como a Lei de Acesso à Informação e a Comissão Nacional da Verdade.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

4. O BRASIL PERANTE A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

Um dos casos de maior repercussão já levado às Cortes Internacionais contra o Estado brasileiro é o caso Gomes Lund e outros VS. Brasil, julgado em novembro de 2010 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Na decisão, o órgão declara a invalidade da Lei de Anistia, condenando o país a revogá-la, e determina a investigação da verdade e punição dos responsáveis pelos crimes de lesa-humanidade cometidos durante o período de ditadura militar, mais especificamente por ocasião da chamada Guerrilha do Araguaia.

A decisão foi recebida no Brasil com desconfiança. Os Ministros do STF, inclusive, declararam perante a mídia nacional que a decisão do órgão não prejudica a que foi tomada pouco antes pelo Tribunal. O Min. Marco Aurélio deixou claro que a sentença da Corte tem eficácia apenas no campo moral e na prática não surtirá efeitos. Ayres Britto, voto vencido no julgamento da ADPF 153, concorda que a decisão do STF prevalece, porém pontua que ela prejudica a imagem do Brasil perante os organismos internacionais, bem como frente aos demais Estados que cumpriram suas obrigações internacionais, revogando as leis de anistia (GOMES; MAZZUOLI, 2011, p. 51).

A sentença proferida não pode ser vista como imprevisível, tendo em vista que a jurisprudência da Corte e as manifestações dos órgãos vinculados à ONU há muito já expunham sua contrariedade ao perdão concedido aos crimes de lesa-humanidade. Logo, a decisão apenas retratou o pensamento já consolidado na comunidade internacional desde a efetiva materialização dos direitos humanos. O entendimento que prevalece é que nenhuma norma de direito interno pode evitar que o Estado puna os que cometeram crimes contra a humanidade, pois estes permanecem incólumes na consciência do indivíduo cujo direito foi violado e da própria sociedade.

Em uma breve análise, primeiramente é necessário enfatizar que a Corte jamais revogou a decisão do STF proferida na ADPF 153. Suas sentenças não têm o condão de substituir a atuação estatal interna, mas de apenas complementá-la quando esta for inexistente ou insuficiente para garantir a prevalência dos preceitos reconhecidos na Convenção Interamericana de Direitos Humanos. A própria Corte destaca que sua atuação tem caráter subsidiário e sua função não é reformar sentenças internas, mas verificar se elas estão de acordo com as diretrizes internacionais (CIDH, 2010, § 32). O órgão exerce, portanto, o chamado controle de convencionalidade, pelo qual analisa as leis e decisões de âmbito doméstico segundo os critérios determinados pela Convenção.

O processo no caso Gomes Lund e outro vs. Brasil (Guerrilha do Araguaia) iniciou ante a demora do judiciário brasileiro em dar uma resposta convincente às centenas de vítimas e seus familiares. Muitos processos foram instaurados no Brasil, porém, como a anistia concedida representou um óbice à produção de efeitos penais, os processos demoravam anos e ao final eram improcedentes. As famílias dos mortos no Araguaia e o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) apresentaram em agosto de 1995 à Comissão Interamericana de Direitos Humanos uma petição contra a República Federativa do Brasil, admitida em 2001, requerendo providências do Estado brasileiro. No ano de 2008, a Comissão expediu o Relatório de Mérito nº 91/08 prevendo algumas recomendações ao país, que, após sucessivas prorrogações de prazo, quedou-se inerte. O órgão então optou por submeter o caso à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos a fim de que fosse aplicada sua jurisprudência acerca das leis de anistia (CIDH, 2010, p. 03).

A decisão da Corte declarou que a Lei de Anistia brasileira contraria a Convenção Americana em seus artigos 3º, 4º, 5º e 7º (direito ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade, respectivamente), e não possui quaisquer efeitos jurídicos quando impede a persecução penal nos casos de graves violações dos direitos humanos. Também, determinou que o Estado brasileiro proceda na busca dos restos mortais das vítimas do Araguaia, conceda indenizações e tratamento psicológico para os familiares, organize cursos sobre direitos humanos dentro da Forças Armadas, tipifique o delito de desaparecimento forçado e incentive a propagação da informação sobre o ocorrido na Guerrilha e durante a ditadura militar no país. Além disso, o Brasil foi condenado a investigar e punir os autores dos delitos, conforme dispôs a Corte:

O Estado deve conduzir eficazmente, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos do presente caso a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei preveja, em conformidade com o estabelecido nos parágrafos 256 e 257 da presente Sentença (CIDH, 2010, p. 14. e 16).

A punição talvez seja a determinação mais dura imposta ao Brasil e, com certeza, a mais difícil de ser implementada. Depois de mais de 30 anos do fim da ditadura civil-militar no país, constata-se um óbice não só do ponto de vista jurisdicional de produção de provas e apuração da verdade, mas também uma resistência de parte da própria sociedade, que considera mais vantajoso simplesmente deixar de lado que ocorreu e olhar para frente. Segundo Daniel Aarão Reis Filho (2001, p. 135), a sociedade encontra na Lei de Anistia uma forma de esquecimento de sua própria responsabilidade pelos crimes da ditadura, pois, por meio das Marchas da Família com Deus e pela Liberdade, ela incentivou e legitimou o golpe de 1964. Para se alcançar a harmonia social muitas vezes é necessário perdoar o passado e deixar de exercitar a memória, porém os efeitos negativos disso permanecem incólumes no tempo e afetam muito a coletividade.

A prescrição é um argumento bastante utilizado no Brasil para defender a impossibilidade de punição pelos crimes cometidos durante o regime de exceção. Contudo, ainda que se possa extinguir a punibilidade de alguns desses delitos, permanecerá a responsabilidade de processar a julgar os inúmeros casos de desaparecimento forçado ocorridos no período. Esse crime possui natureza permanente, pois permanece em execução até que seja conhecido o paradeiro da vítima ou de seus restos mortais, o que impede a contagem do prazo prescricional. A Corte Interamericana manifestou-se quanto a isso na sentença do caso Araguaia, pois quase a totalidade das vítimas do conflito ainda está desaparecida. Nessa ocasião, o órgão confirmou que não cabe qualquer medida que impeça a punição dos autores do delito de desaparecimento forçado, dada sua gravidade (CIDH, 2010, § 257).

Quanto à extinção punitiva, o Tribunal ainda reforça o caráter imprescritível dos crimes de lesa-humanidade, como execução sumária e tortura sistematizada. A Constituição brasileira confere essa característica apenas ao racismo (art. 5º, XLII) e à ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (art. 5º, XLIV), porém, a imprescritibilidade atinge os crimes contra a humanidade por força da Convenção Sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade, adotada pela Assembleia Geral da ONU em 1968. A Corte preceitua que esse instrumento não é um pacto comum, submetido à ratificação pelos Estados, mas sim um mecanismo supranacional usado para consolidar um costume internacional, tornando-se, portanto, de observância obrigatória pelos Estados (CIDH, 2010, p. 08).

Outro ponto primordial da sentença foi tratado no § 177, no qual a Corte afirma que os Estados signatários de um tratado têm o compromisso de cumprir as obrigações convencionais internacionalmente adquiridas e isso deriva do princípio básico do pacta sunt servanda (CIDH, 2010, § 177). Além disso, o dever do Brasil cumprir a decisão da Corte Interamericana e adequar-se ao Direito Internacional dos Direitos Humanos encontra argumentos tanto externos, mediante a análise de obrigações internacionalmente assumidas, quanto no próprio ordenamento jurídico nacional, conforme será demonstrado.

Nesse sentido, Valerio Mazzuoli (2006. p. 138-139) esclarece que a Convenção de Viena de 1969, ratificada pelo Brasil em 2009, dispõe em seu art. 26. que “todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa fé”, fazendo uma clara referência ao princípio citado pela Corte, e completa no art. 27: “uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado [...]”. Tal mecanismo normativo impede que os Estados utilizem sua legislação interna como álibi no descumprimento de obrigações internacionais assumidas. Isso inviabiliza o descumprimento dos pactos de direitos humanos ratificados pelo Brasil. Além disso, não há qualquer vício na ratificação da Convenção Americana e sua adesão foi voluntária, o que torna obrigatória sua observância pela República Federativa do Brasil e por todos os seus Poderes.

A forma de o país isentar-se do cumprimento desse pacto é através da denúncia, que, segundo Valerio Mazzuoli (2006, p. 147), consiste numa manifestação unilateral de vontade, pela qual o país decide deixar de fazer parte do acordo. Isso representaria um retrocesso para o país, pois, o cumprimento das disposições internacionais não só prestigia os sistemas regionais e universais de proteção aos direitos humanos, como também contribui para a afirmação interna desses direitos.

Sob outra perspectiva, a obrigatoriedade de ajustamento do Brasil às reiteradas decisões internacionais é ainda mais evidente, pois a Constituição Federal de 1988 dá especial atenção aos tratados sobre direitos humanos ratificados pelo país. Exemplo disso é o texto do art. 4º, II, e o art. 5º, com as incorporações dos §§ 3º e 4º pela EC 45. É certo que de nada adiantaria a Constituição fazer referência aos tratados internacionais de direitos humanos se os tribunais nacionais fossem vinculados somente à aplicação da lei interna.


5. AS CONSEQUÊNCIAS DA MANUTENÇÃO DA LEI DE ANISTIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Países como Argentina, Chile e Uruguai, também signatários da Convenção Americana de Direitos Humanos, já reavaliaram suas leis de anistia segundo as diretrizes estabelecidas no âmbito da Corte Interamericana. Atualmente estes Estados trabalham no julgamento das violações ocorridas e no esclarecimento dos fatos para promoção da memória e da verdade, rompendo com seu passado autoritário e aproximando-se dos ditames consagrados no direito internacional (WOJCIECHOWSKI, 2013, p. 188). Agindo dessa forma, percebe-se que perante seus cidadãos os Estados ganham confiança e legitimidade, pois a investigação dos crimes e a busca da verdade são a materialização da verdadeira reconciliação nacional e contribuem para a estabilização do autêntico Estado de Direito.

Se em outros países latinoamericanos o processo transicional vem se desenvolvendo satisfatoriamente segundo os critérios internacionais, o Brasil, por sua vez, avança de forma tímida nessa direção. Apesar das diversas opiniões negativas que surgiram a partir da condenação do país pela CIDH em 2010, foram sancionadas pela Presidente da República duas leis no ano seguinte, que cumprem parcialmente com alguns aspectos dispostos na sentença: a Lei do Acesso à Informação, nº 12.527/11, e a lei que autoriza a Comissão Nacional da Verdade, nº 12.528/11. A primeira dá transparência aos dados e arquivos estatais, a segunda institui comissão responsável pela investigação dos abusos existentes durante o período de repressão. A Comissão Nacional da Verdade ainda prestigia o direito de todos a conhecer os fatos ocorridos durante o regime de exceção e incentiva o reconhecimento histórico da violência praticada no passado, para que ela não volte a ocorrer no futuro

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O Brasil é um dos últimos países sul-americanos a instaurar a Comissão da Verdade para apurar as violações ocorridas durante a ditadura. Importante salientar que ela não foi resultado direto da condenação do país no caso Araguaia, pois o projeto de sua criação já estava em andamento no Congresso Nacional sob o nº 7.376/2010. A Corte propôs apenas meras recomendações, afirmando que, para cumprir seu fim, as Comissões da Verdade devem ser constituídas de forma idônea, possuir independência e neutralidade, além de contar com a colaboração dos órgãos públicos e privados (WEICHERT, 2011, p.234).

Atualmente no Brasil, a Comissão Nacional da Verdade enfrenta sérias críticas quanto a sua eficiência, produtividade e comprometimento com a divulgação da realidade vivenciada durante a ditadura. Seus membros, cuja escolha cabe à Presidente da República, já foram substituídos algumas vezes, comprometendo a sequência das pesquisas. Para Marlon Alberto Weichert (2011, p. 242), esses problemas devem ser corrigidos para que o país não perca a oportunidade de conhecer sua história, aprimorar suas instituições e diminuir as chances de reincidência dos abusos do passado. Outrossim, a Comissão da Verdade é um mecanismo oficial que não afasta a atividade judicial, pelo contrário, a obrigação de investigar e punir os casos de violações aos direitos humanos persiste (WEICHERT, 2011, p.234).

Haja vista esses poucos avanços, a realidade é que, passados quase três anos da decisão do Tribunal, muito pouco foi cumprido pelo Estado brasileiro. Esse fato deixa o país em situação delicada perante a comunidade internacional, pois o Brasil é signatário de quase todos os tratados internacionais sobre direitos humanos, tanto em âmbito global, quanto interamericano, os quais foram ratificados e estão atualmente em vigor no território nacional. No contexto do presente trabalho, poderiam ser usados como exemplo de tratados pertencentes ao sistema universal de direitos humanos o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966) e a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984) e, quanto aos pactos do sistema regional interamericano dos quais o país participa, podem ser citadas a Convenção Interamericana para Punir e Prevenir a Tortura (1985) e, talvez a mais importante, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969) (GOMES; MAZZUOLI, 2011, p. 60-61). Com a posição atual do Brasil perante a sua lei de anistia, tem-se que esses pactos constituem-se em mera retórica, pois na prática são ignorados pelo Estado.

Por certo, a desobediência aos preceitos internacionais coloca o Brasil em posição de desigualdade em relação aos países que revogaram suas leis de anistia e prejudica sua imagem internacional, porém isso causa sérios problemas internos também. Um país que não rompe com seu passado autoritário, acaba por contribuir para que os abusos perpetrados voltem a ocorrer. Nesse sentido, em visita ao Brasil no ano de 2012, o Subcomitê de Prevenção da Tortura (SPT), órgão vinculado à ONU, realizou relatório afirmando que a tortura e os maus-tratos nas dependências do Estado são generalizados. Logo, embora existam leis para inibir tratamentos cruéis e degradantes, elas são ignoradas na prática e esses atos são recorrentes nas delegacias de polícia, penitenciárias e instituições para crianças e adolescentes (ONU, 2012, p. 6-8). Trata-se de crimes já conhecidos dos brasileiros, largamente empreendidos pelos agentes do DOI-codi e dos Dops durante a ditadura civil-militar no país.

O órgão confirma, ainda, a existência de um sentimento de conformação entre as pessoas sob custódia do Estado e entre os próprios agentes estatais, que ao descobrir casos de tortura e maus-tratos pouco fazem para impedi-los. Isso se deve à cultura de impunidade difundida no país, que estimula novas transgressões e resulta num circulo vicioso extremamente prejudicial para a sociedade. Merece destaque o trecho que segue do relatório:

A impunidade por atos de tortura está disseminada e se evidencia pelo fracasso generalizado em levar-se os criminosos à justiça, bem como pela persistência de uma cultura que aceita os abusos cometidos pelos funcionários públicos. Em muitas de suas reuniões, o SPT solicitou acesso ao número de indivíduos sentenciados pelo crime de tortura, mas o dado não foi fornecido. Os indivíduos entrevistados pelo SPT não demonstraram esperança de que justiça fosse feita ou de que sua situação particular fosse considerada pelas instituições estatais (ONU, 2012, p. 11).

Segundo o que sugere o STP, a política de aceitação das atuais violações cometidas pelos funcionários públicos pode estar atrelada à herança autoritária que o Brasil cultiva desde a época da ditadura. O sentimento de impunidade e de descrença na justiça tornou-se parte da cultura brasileira.

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Sobre a autora
Daiane Tavares Batista

Acadêmica de Direito pela Universidade da região da Campanha, cursando o 10º semestre. Estagiária da Justiça Federal de 2011 a 2013, Estagiária, atualmente, do Ministério Público Federal, PRM Santana do Livramento - RS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BATISTA, Daiane Tavares. A anistia em debate ADPF 153 e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4008, 22 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29616. Acesso em: 22 dez. 2024.

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