Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/53760
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

O ativismo judicial: controle das políticas públicas pelo Poder Judiciário.

A questão do mínimo existencial em face da cláusula da reserva do possível

O ativismo judicial: controle das políticas públicas pelo Poder Judiciário. A questão do mínimo existencial em face da cláusula da reserva do possível

Publicado em . Elaborado em .

A Lei Maior aponta direitos basilares para a existência digna do ser humano. Ainda assim, é frequente o desrespeito a tais direitos por parte da Administração Pública. Esta situação exige atuação ativa e rígida do Poder Judiciário em prol do cidadão.

I - INTRODUÇÃO

Nos dizeres da Constituição Federal, são direitos sociais de todo cidadão a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição (Art. 6º). Além destes direitos, há tantos outros previstos no bojo da Lei Maior, sobretudo no Art. 5º.

Neste sentido, cabe ao Poder Público a implementação de políticas públicas para concretizar tais direitos. É sabido que, ao Judiciário, via de regra, não é dado intervir na discricionariedade administrativa. Ocorre que nem sempre o administrador dá a devida importância ao comando constitucional, prejudicando de sobremaneira a população. Desta forma, não resta outra alternativa: provocar o Poder Judiciário para que este determine ao gestor público a garantia do mínimo existencial ao cidadão brasileiro. Não se trata de indevida intervenção de um Poder em outro. Cuida-se do Ativismo Judicial, que vem ganhando força nas últimas décadas.

Sem pretender esgotar o tema, analisaremos as condições e os limites para que ocorra tal controle.


II - ATOS DISCRICIONÁRIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. POSSIBILIDADE DE CONTROLE JUDICIAL.

Por conduta vinculada entende-se aquela em que ao administrador não é dado fazer juízo de valor acerca da conveniência e oportunidade para agir. Em outras palavras, o gestor é obrigado a praticar o ato administrativo.  A conduta é discricionária quando há permissão ao administrador para que faça juízo de valor quanto à conveniência e oportunidade para prática do ato, nos limites da lei.

 Na conduta vinculada, os requisitos do ato administrativo (competência, forma, finalidade, motivo e objeto) serão disciplinados pela lei. Já na conduta discricionária, a mesma lei dá liberdade ao administrador para ponderar acerca do motivo e objeto, além da conveniência e oportunidade para praticar o ato. Podemos citar como exemplo a oportunidade e conveniência de um Município pavimentar uma rua.

Durante longo tempo, o controle do Poder Judiciário restringia-se aos atos vinculados. Os atos discricionários escapavam a este controle sob alegação de ofensa ao Princípio da Separação de Poderes (Teoria Checks and Balances, de Montesquieu) caso aquele poder interferisse na escolha do motivo e objeto / conveniência e oportunidade. No entanto, discricionariedade não é sinônimo de arbitrariedade, razão pela qual o juízo de oportunidade e conveniência deve observar a finalidade do ato administrativo, permitindo, por vezes, o controle pelo Judiciário.

Em interessante julgado envolvendo a demarcação de terras indígenas, o Superior Tribunal de Justiça esclareceu que a discricionariedade administrativa é um dever posto ao administrador para que, na multiplicidade das situações fáticas, seja encontrada, dentre as diversas soluções possíveis, a que melhor atenda à finalidade legal. O grau de liberdade inicialmente conferido em abstrato pela norma pode afunilar-se diante do caso concreto, ou até mesmo desaparecer, de modo que o ato administrativo, que inicialmente demandaria um juízo discricionário, pode se reverter em ato cuja atuação do administrador esteja vinculada. Neste caso, a interferência do Poder Judiciário não resultará em ofensa ao princípio da separação dos Poderes, mas restauração da ordem jurídica. (REsp 879.188/RS, 2ª Turma, Rel. Min. Humberto Martins, DJe de 2.6.2009)


III – O ATIVISMO JUDICIAL E AS POLÍTICAS PÚBLICAS

 Cleber Masson e Adriano Andrade, citando Oswaldo Canela Júnior, conceituam as Políticas Públicas como sendo o conjunto de atividades do Estado tendentes a seus fins, de acordo com as metas a serem atingidas[1]. Quando o poder público falha na efetivação das políticas públicas, abre a possibilidade de controle judicial.

Neste tipo de demanda, exige-se uma postura mais rígida e ativa do magistrado, impondo à administração obrigações de fazer e não fazer, de modo que os direitos saiam do plano abstrato e passem ao plano da concretude. É o ativismo judicial.

Eduardo Cambi leciona que em termos operacionais e processuais, as declarações de direitos humanos e sociais, assimiladas pelas Constituições nacionais, dependem da regulamentação dos organismos estatais, a quem incumbe condicionar o exercício de suas funções voltadas à implementação desses direitos[2]

E continua:

“A ausência de comprometimento do Poder Público com a efetivação dos direitos fundamentais inviabiliza as transformações sociais. Não tendo o Executivo e o Legislativo atuado, adequadamente, para a proteção desses direitos, a Constituição Federal, no art. 5º, XXXV, assegura acesso ao Poder Judiciário para, subsidiariamente, fazer valer os direitos constitucionais. Por isso, além da previsão formal dos direitos fundamentais, é indispensável devolver meios processuais que permitam que o Estado-juiz assegure, efetivamente, a tutela dos direitos. Para tanto, é preciso desenvolver, por intermédio da jurisdição constitucional e das técnicas processuais, o sentido republicano da política, para que a cidadania seja norteada pelo valor da solidariedade (realização do bem comum), concebido como contexto vital ético da sobrevivência da polis”. (grifo nosso)

No âmbito das ações individuais, exemplos bastante corriqueiros são os Mandados de Segurança, visando a obtenção de vagas para crianças em creches ou até mesmo a medicamentos por pacientes da rede pública de saúde. Já no plano coletivo, a inércia do Poder Público em viabilizar o exercício de determinados direitos fundamentais pelo cidadão (educação, saúde, etc.) pode dar ensejo ao ajuizamento de Ações Civis Públicas pelos legitimados ativos.

Consoante a Lei nº 7.347/89, o rol de legitimados para ajuizar a ACP:

Art. 5º Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar

 I - o Ministério Público; 

II - a Defensoria Pública;   

III - a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;      

IV - a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista;    

V - a associação que, concomitantemente:     

a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil;

b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao patrimônio público e social, ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, aos direitos de grupos raciais, étnicos ou religiosos ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.       

Desta forma, julgada procedente a ACP, a sentença fará coisa julgada erga omnes (direitos difusos e individuais homogêneos) ou ultra partes (direitos coletivos) nos limites da competência territorial do órgão prolator. A título de exemplo, suponhamos que o Ministério Público tenha ajuizado Ação Civil Pública em face de um Município para obrigá-lo a disponibilizar vagas em creches para crianças que residam na cidade. A sentença irradiará seus efeitos apenas no âmbito daquele município. Se ajuizada ACP em face de um estado para que respeite direito dos idoso, a decisão imporá a todo o estado o respeito a este direito.

A Ação Civil Pública é, desta forma, importante instrumento de que dispõem os legitimados ativos para beneficiar um número maior de pessoas, bem como evitar que casos semelhantes inundem o Poder Judiciário, sobrecarregando este órgão e prejudicando a razoável duração dos demais processos.


IV – O MÍNIMO EXISTENCIAL E A RESERVA DO POSSÍVEL

O argumento mais utilizado pelas Fazendas Públicas é a suposta interferência do Judiciário no campo na escolha da conveniência e oportunidade para a prática de um ato administrativo (Poder Discricionário), ferindo, ao menos em tese, o Princípio da Separação dos Poderes.

Tal alegação não merece prosperar.

É sabido que o interesse público subdivide-se em primário e secundário. Primário é o somatório dos interesses individuais dos seres considerados (como membros da sociedade), representando assim a vontade da maioria. É a vontade do povo. Já o interesse público secundário é a vontade do Estado enquanto pessoa jurídica. Não havendo coincidência entre os interesses primário e secundário, prevalece o interesse primário.

Neste sentido, O STJ:

“É imprescindível ponderar, também, a distinção entre interesse público primário e secundário. Este é meramente o interesse patrimonial da administração pública, que deve ser tutelado, mas não sobrepujando o interesse público primário, que é a razão de ser do Estado e sintetiza-se na promoção do bem-estar social. Nos dizeres de Celso Antônio Bandeira de Mello: "O Estado, concebido que é para a realização de interesses públicos (situação, pois, inteiramente diversa da dos particulares), só poderá defender seus próprios interesses privados quando, sobre não se chocarem com os interesses públicos propriamente ditos, coincidam com a realização deles." (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 19ª edição. Editora Malheiros. São Paulo, 2005, pág. 66.) [...] (REsp 1356260/SC, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 07/02/2013, DJe 19/02/2013, grifos nossos) (grifo nosso)

Compõem o rol do mínimo existencial o direito à saúde, saneamento básico, meio ambiente ecologicamente equilibrado, assistência social etc. Trata-se de um rol de direitos considerados como o mínimo necessário à existência digna do ser humano. Para tanto, exige-se ação do estado no sentido de elaborar políticas públicas para garantir estes direitos. Podemos citar como exemplo políticas públicas a distribuição gratuita de medicamentos, a construção de creches para crianças, construção de hospitais etc.

Outro argumento frequentemente utilizado pela Administração é a chamada Cláusula de Reserva do Possível. O Estado alega que não possui condições financeiras para arcar com determinada política pública e que, caso obrigado pelo Judiciário, terá que retirar recursos de outras áreas, prejudicando a coletividade como um todo. 

 Os Tribunais não aceitam esta tese, conforme se observa:

“A cláusula da ?reserva do possível? - ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se, dolosamente, do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. Tratando-se de típico direito de prestação positiva, que se subsume ao conceito de liberdade real ou concreta, a proteção à criança e ao adolescente ? que compreende todas as prerrogativas, individuais ou coletivas, referidas na Constituição da República (notadamente em seu art. 227) ? tem por fundamento regra constitucional cuja densidade normativa não permite que, em torno da efetiva realização de tal comando, o Poder Público, especialmente o Município, disponha de um amplo espaço de discricionariedade que lhe enseje maior grau de liberdade de conformação, e de cujo exercício possa resultar, paradoxalmente, com base em simples alegação de mera conveniência e/ou oportunidade, a nulificação mesma dessa prerrogativa essencial. (STF, RE 482611 SC, Rel. Min. Celso de Mello, DJE 23.03.2010). (grifo nosso)

“a realização dos Direitos Fundamentais não é opção do governante, não é resultado de um juízo discricionário nem pode ser encarada como tema que depende unicamente da vontade política. Aqueles direitos que estão intimamente ligados à dignidade humana não podem ser limitados em razão da escassez quando esta é fruto das escolhas do administrador. Não é por outra razão que se afirma que a reserva do possível não é oponível à realização do mínimo existencial.” (STJ, REsp 1185474/SC, Rel. Min. Humberto Martins, DJE 29.04.2010).

Aplicando tal entendimento, Cleber Masson e Adriano Andrade (op. Cit. p. 116), citam diversos exemplos na jurisprudência em que há a incidência do Ativismo Judicial, obrigando-se a administração a implementar políticas públicas visando:

  1. a suprir a carência de professores em unidades de ensino público (STF, RE 594.018 Agr, 2.ª Turma, rel. Min. Eros Grau, DJe 07.08.2009);
  2. a assegurar vagas em creches e pré-escolas da rede pública para crianças até determinada idade (STF: AI 664.053 AgR, 1.ª Turma, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 03.03.2009, DJe 27.03.2009; RE 463.210 AgR/SP, 2.ª Turma, rel. Min. Carlos Velloso, j. 06.12.2005, DJ 03.02.2005; STJ: REsp 511.645/SP, 2.ª Turma, rel. Min. Herman Benjamin, j. 18.08.2009, DJe 27.08.2009; REsp 510.598/SP, 2.ª Turma, rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 17.04.2007, DJe 13.02.2008
  3.  a prestar assistência médica (consultas e cirurgias) satisfatória e prioritária às crianças e aos adolescentes, com imposição de cronograma para conferir celeridade aos atendimentos (STJ: REsp 577.836/SC, 1.ª Turma, rel. Min. Luiz Fux, j. 21.10.2004, DJ 28.02.2005).
  4.  a restabelecer a regularidade do serviço de coleta de lixo, por se tratar de serviço público relevante, regido pelo princípio da continuidade, e por ser imprescindível à garantia dos direitos à saúde e ao meio ambiente hígido (STJ: REsp 575.998/MG, 1.ª Turma, rel. Min. Luiz Fux, j. 07.10.2004, DJ 16.11.2004)
  5.  a realizar obras de recuperação do solo, imprescindíveis ao meio ambiente (STJ: REsp 429.570/GO, 2.ª Turma, rel. Eliana Calmon, j. 11.11.2003, DJ 22.03.2004)
  6.  a regularizar, às expensas do implantador, loteamentos clandestinos e irregulares, para respeito dos padrões urbanísticos e o bem-estar da população (STJ, REsp 448.216/SP, 1.ª Turma, rel. Min. Luiz Fux, j. 14.10.2003, DJ 17.11.2003.

Percebemos, portanto, que os direitos que estejam ligados ao mínimo existencial não poderão ser limitados em face da reserva do possível.

Mas e os direitos que não compõem o mínimo existencial (direitos não relacionados à existência humana)?

Cleber Masson e Adriano Andrade (op. Cit., p. 117), citando Ada Pelegrini Grinover, entendem que, nestes casos, o poder público poderá alegar insuficiência de recursos e falta de previsão orçamentária. Chamam a atenção, no entanto, para o fato de que a mera alegação de falta de recursos não será o bastante. A administração deverá fazer prova de que não possui condições financeiras para tanto, operando-se verdadeira inversão do ônus da prova (Art. 6º, VII, CDC).

E continuam:

“O acolhimento da alegação de falta de recursos não conduziria à rejeição do pedido de tutela jurisdicional, e sim apenas ao seu deferimento, disso resultando a condenação da Administração a duas obrigações de fazer: (i) a de fazer a inclusão no orçamento da verba necessária para o adimplemento da obrigação; e (ii) a obrigação de aplicar a verba para a implementação da política pública.  A invocação da “reserva do possível” – restrita aos direitos fundamentais que não integram o núcleo básico da dignidade da pessoa humana – pode levar o Judiciário à condenação da Administração a uma obrigação de fazer em duas etapas: primeiro, a inclusão no orçamento da verba necessária à implementação da política pública; e, em seguida à inclusão, a obrigação de aplicar a verba para o adimplemento da obrigação. (grifo nosso)


V – CONCLUSÃO

Em face do Princípio da Separação dos Poderes, vigora no Brasil a não intervenção de um poder sobre o outro. Nesta esteira, via de regra, não é permitido ao Poder Judiciário interferir nos atos e decisões da Administração quando esta estiver agindo ou decidindo lastreada em seu poder discricionário (conveniência e oportunidade / escolha dos motivos e objeto de um ato administrativo).

A situação muda quando estão em jogo os interesses da administração versus direitos fundamentais mínimos do cidadão, tais como vida, saúde, assistência social, proteção à infância, maternidade etc. Muitas vezes, o exercício destes direitos exige uma atuação positiva do Estado. São as chamadas Políticas Públicas (p.ex. construção de hospital, creche, distribuição de medicamentos, etc.).

Nesta situação, o interesse do cidadão deverá prevalecer. Quando acionado, o Poder Judiciário poderá determinar que o gestor público implemente políticas públicas, sem que isso configure intervenção indevida. É que o interesse público primário do povo, razão de ser do Estado, deve prevalecer sobre o mero interesse da máquina estatal.  Nestes casos, o magistrado pode e deve agir determinando à Administração que pratique o ato necessário. Tal ação poderá dar-se tanto em ações individuais quanto ações coletivas, notadamente a Ação Civil Pública.

A Administração não poderá invocar a cláusula da reserva do possível para eximir-se de sua obrigação. Assim, não poderá alegar carência de recursos, devendo prontamente obedecer a ordem judicial.

Mesmo nos direitos igualmente previstos na Lei Maior que não integrem o rol do mínimo existencial, embora a Fazenda Pública possa invocar a reserva do possível, a procedência da ação determinará uma obrigação de fazer, consistente na inclusão no orçamento de verba necessária, e vinculação dessa mesma verba à implementação da política pública.


Notas

[1] Interesses Difusos e Coletivos Esquematizado, 5ª Edição, Ed. Método, p.100

[2] Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo: direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 371.


Autor


Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelo autor. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi.