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Inseminação assistida heteróloga.

O conflito jurídico entre o direito ao conhecimento de paternidade e a garantia ao sigilo de identidade nas doações de material genético

Inseminação assistida heteróloga. O conflito jurídico entre o direito ao conhecimento de paternidade e a garantia ao sigilo de identidade nas doações de material genético

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Os filhos gerados por meio de inseminação assistida heteróloga têm direito ao conhecimento da paternidade mais do que o doador de sêmen tem direito ao sigilo de sua identidade, conforme assegurado contratualmente?

Sumário: 1 Introdução; 2 Notas a respeito da fertilização artificial: método da inseminação assistida heteróloga; 2.1 A disciplina (infra)legal do processo de inseminação artificial; 2.1.1 Os direitos do doador e suas obrigações; 3 A (im)possibilidade de relativização do sigilo de identidade do doador frente ao direito de conhecer a própria filiação; 3.1 Posições doutrinárias e entendimentos Jurisprudenciais; 4 Conclusão.

RESUMO: O que se objetiva é analisar o debate que orbita entre, de um lado, o direito de conhecer a própria paternidade e, do outro, a garantia do sigilo do doador de sêmen na inseminação assistida heteróloga. Isso, de modo que, ponderando as discussões jurídico-doutrinárias a esse respeito, se demonstre que, não obstante a lacuna normativa na legislação ordinária, por uma aplicação direta de princípios constitucionais, é possível relativizar a garantia de anonimato que gozam os doadores de material genético – nas inseminações assistidas heteróloga – em prol do direito de se apurar a verdadeira filiação biológica.

Palavras-chave: Inseminação assistida heteróloga. Dignidade da pessoa humana. Reconhecimento paterno-biológico. Sigilo de identidade.


1 INTRODUÇÃO

No procedimento de inseminação assistida heteróloga, disciplinado na Resolução nº. 1.358 do Conselho Federal de Medicina (CFM), o casal opta pela obtenção de gametas de um terceiro anônimo (doador), os quais serão usados para fertilizar a parceira do relacionamento, conferindo um filho ao casal. Todavia, não há legislação específica para garantir o direito de sigilo de identidade do terceiro doador (presente apenas na mencionada Res. n°. 1.358/CFM). Assim como também não há lei específica a respeito do direito de o filho requerer o reconhecimento da sua paternidade biológica (nestas hipóteses de inseminação assistida), ficando ele resguardado pelos seus direitos constitucionais, como o da própria dignidade humana.

 Devido a isso, existe grande discussão jurídico-doutrinária quanto ao conflito entre o direito do filho, provido de inseminação assistida heteróloga, baseado na dignidade da pessoa humana de buscar o reconhecimento paterno-biológico do sujeito que doou o gameta, em detrimento do direito deste último (o doador), de manter o sigilo de sua identidade.

Com os avanços da medicina moderna e da igualdade de direitos, constitucionalmente assegurados, em relação às decisões referentes ao planejamento familiar, existe uma maior autonomia e liberdade de direitos para um homem, mulher ou casal homoafetivo, decidirem por ter filhos ou não. Em casos que envolvem sujeitos que encontram problemas de infertilidade, é totalmente permitida a escolha de procedimentos artificiais para permitir que o casal tenha um filho, como é o caso da inseminação assistida (GASPAROTO; RIBEIRO, 2008).

Existem casos nos quais não há possibilidades de o marido ou parceiro(a) fornecer gametas capazes de fertilizar sua companheira, sendo necessário recorrer ao método da inseminação assistida heteróloga. Neste método, um terceiro anônimo, doa seus gametas para que sejam utilizados de modo fertilizar o útero feminino e prover um filho ao casal. Tal procedimento tem sua previsão no artigo 1.597, V do Código Civil e é regulamentado pela Resolução nº. 1.358 do Conselho Federal de Medicina (GASPAROTO; RIBEIRO, 2008).

Contudo, não há legislação específica que regule essa prática, gerando, dessa forma, uma grande discussão doutrinária, evolvendo aspectos jurídicos, morais e étnicos em relação ao direito do doador e do filho. Segundo a Resolução n°. 1.358 do CFM, o terceiro doador tem o direito ao sigilo de sua identidade (RIBAS, 2008).

Isso, por sua vez, como bem colocam GASPAROTO e RIBEIRO (2008), pode entrar em conflito com os direitos que o ordenamento garante ao filho que, mesmo havido de uma mãe e um pai socioafetivos, poderá, em respeito ao princípio da dignidade humana - e acompanhando determinadas linhas de entendimento doutrinárias e jurisprudencias – exigir o conhecimento do seu pai biológico e, até mesmo, requisitar direitos sucessórios.

Neste contexto, é inevitável que surja a seguinte questão: quais são os limites e extensões do direito que filho tem a conhecer a sua própria filiação, nestas hipótese de inseminação assistida heteróloga? E mais: é, de fato, possível falar em sigilo absoluto dos doadores de material genético, para fins de fertilização? É possível falar em algum direito fundamental nestes casos?

Em se tratando de um evidente conflito jurídico entre: de um lado, o direito de conhecer a própria filiação (garantido pelo ordenamento); e de outro, o sigilo de identidade dos doadores de material genético, é imperativo desincumbirmo-nos do ônus argumentativo necessário para construção da melhor tese. O que é, sem margem para dúvidas, aquela tese que melhor se amolda as ideias e preceitos fundamentais que animam a ordem jurídico-constitucional ora vigente, qual seja: a de que o sigilo garantido ao doador de material genético não é absoluto.

Diante do escasso conteúdo jurídico-dogmático envolvendo o tema proposto, busca-se, por meio deste trabalho, a elaboração de um paper de pesquisa englobando uma discussão doutrinária que estabelece, em a maior ou menor grau, um diálogo entre os o direito e os avanços científicos – no caso específico da garantia ao sigilo de identidade dos doadores e material genético e o direito de conhecer a própria filiação.

À luz de um paradigma acadêmico, a efetivação da pesquisa se fundamenta pela aproximação do tema a demais pesquisadores interessados, além de trazer um estudo mais aprofundado dos institutos jurídicos relacionados a este tema, buscando, também, fazer uma aproximação entre o biodireito e as relações familiares.

Partindo de uma perspectiva profissional a produção do artigo pode garantir uma base sólida de conhecimento a respeito da temática, sanando obscuridades, omissões ou dúvidas que advenham de quem esteja na busca por informações.

Quanto aos objetivos, a pesquisa é classificada como exploratória, uma vez que tentará dissecar o tema em prol dos objetivos listados. Em relação a seus procedimentos, abrange a natureza bibliográfica, recorrendo a teóricos e suas respectivas obras a respeito da temática.


2 NOTAS A RESPEITO DA FERTILIZAÇÃO ARTIFICIAL: MÉTODO DA INSEMINAÇÃO ASSISTIDA HETERÓLOGA

Como bem aponta Castanho (2008), a partir dos avanços alcançados pela técnica científica, o homem foi capaz de dominar um campo que antes pertencia unicamente aos processos naturais: a fertilização.

Primeiramente, deve-se conceituar o que exatamente seria a reprodução assistida, o que, de acordo com Ribas (2007), trata-se de um mecanismo ou conjunto de técnicas que permitem a realização de uma reprodução assexuada, em razão, essencialmente, de uma esterilidade do parceiro(a), dando justificativa para tais sujeitos recorrerem à estas técnicas. Entre diversas técnicas, existe a chamada inseminação intrauterina, na qual “os espermatozoides, previamente recolhidos e congelados, são reaquecidos a 37ºC e transferidos, por meio de uma cânula, para o interior do aparelho genital feminino (fundo do útero), onde se dá a fecundação” (RIBAS, 2007). Tal procedimento médico de inseminação assistida pode ocorrer de forma homóloga ou heteróloga. Explicando melhor:

Nas técnicas de inseminação artificial, os gametas (óvulo e espermatozóide) podem provir do casal, caso em que a RMA será homóloga, ou não, quando será heteróloga. Este último tipo de RMA ocorre na hipótese de um ou ambos os gametas do casal não serem viáveis, havendo a necessidade de se recorrer a um doador de espermatozóides ou de óvulos. A inseminação homóloga é indicada para casos de incompatibilidade ou hostilidade do muco cervical, oligospermia (quando é baixo o número de espermatozóides ou reduzida sua mobilidade) e retroejaculação (quando os espermatozóides ficam retidos na bexiga). A inseminação heteróloga é utilizada, por exemplo, nos casos de absoluta esterilidade masculina (causada por azzospermias ou oligospermias), incompatibilidade do fator RH e havendo doenças hereditárias graves do marido. (RIBAS, 2007).

Dessa forma, pode-se segmentar em dois os grupos de métodos de procriação assistida para melhor introduzir a técnica de inseminação assistida heteróloga, em que: diz-se ‘homóloga’, ou ‘auto-inseminação’ a inseminação artificial quando realizada com sêmen proveniente do próprio marido, e ‘heteróloga’, ou ‘hetero-inseminação’, quando feita em mulher casada com sêmen originário de terceira pessoa ou, ainda, quando a mulher não é casada. (LEITE Apud CASTANHO 1995, p.32)

A utilização da técnica de reprodução assistida na modalidade heteróloga proporciona o envolvimento de outras pessoas estranhas à situação, e, com isso, provoca uma expansão do núcleo familiar, ou seja, “em casos de inseminação heteróloga com doação de gametas há a chamada multiparentalidade, que consiste na existência de mais de um pai ou de uma mãe para o sujeito resultante de uma reprodução medicamente assistida”, o que gera uma dupla relação com a criança, onde há uma relação de pais biológicos e pais sócio-afetivos (RIBAS,2007). Neste contexto, adverte Gama Apud Castanho (2003, p. 675):

A pluralidade de pessoas envolvidas no contexto das técnicas de reprodução assistida é impressionante, o que gerou a cogitação, no plano teórico, da [sic] criança eventualmente ter três pais e três mães, o quer representaria uma completa reformulação nos vínculos de parentesco – com aumento significativo das relações familiares e seus efeitos, provocando não mais a retração do núcleo familiar, mas sua expansão.

Além disso, nesse método de inseminação artificial, como afirma Souza (2006), para haver a criação de uma relação parental sócio-afetiva, mostra-se necessário o expresso consentimento do cônjugue ou companheiro que, por algum problema de infertilidade, não pode fornecer gametas férteis. Dessa forma, “o consentimento manifestado não constitui ato ilícito; o filho concebido não pode se sujeitar à alteração de ânimo do declarante; à pessoa que pretendesse se retratar da vontade anteriormente manifestada agiria com má-fé” (SOUSA, 2006), ou seja, a relação criada entre a criança e o pai ou mãe estéril, que consentiu a inseminação assistida heteróloga, deve ser a mais sólida possível indicando que “o consentimento representa o reconhecimento voluntário que é irrevogável” (SOUSA, 2006).

2.1 A disciplina (infra)legal do processo de inseminação artificial

No Brasil, parafraseando Ribas (2007), não há previsão legal ordinária quanto ao uso e restrições das técnicas de reprodução assistida. Contudo, a Resolução nº 1358/92 do Conselho Federal de Medicina que estabelece normas e padrões éticos aos profissionais médicos, para que possam utilizar dessas técnicas de inseminação. Prevê, inclusive, que a mulher solteira pode utilizar-se de qualquer técnica, desde que maior e civilmente capaz. Vejamos o teor do texto normativo:

I - PRINCÍPIOS GERAIS

[...]

2 - As técnicas de reprodução assistida (RA) podem ser utilizadas desde que exista probabilidade efetiva de sucesso e não se incorra em risco grave de saúde para a paciente ou o possível descendente.

5 - É proibido a fecundação de ócitos humanos, com qualquer outra finalidade que não seja a procriação humana.

7 - Em caso de gravidez múltipla, decorrente do uso de técnicas de RA, é proibida a utilização de procedimentos que visem a redução embrionária.

II - USUÁRIOS DAS TÉCNICAS DE RA

1 - Toda mulher, capaz nos termos da lei, que tenha solicitado e cuja indicação não se afaste dos limites desta Resolução, pode ser receptora das técnicas de RA, desde que tenha concordado de maneira livre e consciente em documento de consentimento informado.

[...]

IV - DOAÇÃO DE GAMETAS OU PRÉ-EMBRIÕES

1 - A doação nunca terá caráter lucrativa ou comercial.

2 - Os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa.

3 - Obrigatoriamente será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e pré-embriões, assim como dos receptores. Em situações especiais, as informações sobre doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a identidade civil do doador.

VII - SOBRE A GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO

(DOAÇÃO TEMPORÁRIA DO ÚTERO)

[...]

1 - As doadoras temporárias do útero devem pertencer à família da doadora genética, num parentesco até o segundo grau, sendo os demais casos sujeitos à autorização do Conselho Regional de Medicina.

2 - A doação temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 1998)

Souza (2006), afirma que as técnicas de reprodução assistidas permitiram uma reinterpretação do ordenamento jurídico no estágio atual da evolução jurídica em matérias de interpretação e aplicação do direito, em que, não se pode alegar lacuna da lei para solucionar todas as questões que se apresentem”. Dessa forma, deve-se entender que o incremento dessas novas técnicas médicas que proporcionam o provimento de um filho à um casal, impedido por alguma infertilidade, optar por uma inseminação assistida, necessariamente precisa de uma normatização clara, transparente, coerente e cumpridora dos princípios e normas constitucionais (SOUSA, 2006, p. 10). Por conta disso, elucida o autor que:

O Direito Brasileiro, no parágrafo único do art. 9° da Lei n° 9.263/96, prevê que qualquer método ou técnica conceptiva ou contraceptiva somente poderá ser prescrita após avaliação e acompanhamento clínico, com prévia informação sobre os riscos, vantagens, desvantagens e eficácia da medida, o que pressupõe a existência da infertilidade da mulher, do homem ou do casal, daí o recurso do auxílio médico. Nesse sentido, deve-se considerar que, no Direito Brasileiro, à luz da Constituição Federal e da Lei n° 9.263/96, o recurso às técnicas conceptivas não é ilimitado ou absoluto, devendo preencher determinados requisitos, como o diagnóstico da esterilidade, para que seja possível o acesso à reprodução assistida. (SOUSA, 2006, p. 11).

Nesse sentido, Souza (2006, p. 10-11), afirma-se que, embora não haja uma legislação específica para os procedimentos de inseminação assistida, por meio de outros institutos infraconstitucionais, da própria Constituição Federal e da Resolução do Conselho Federal de Medicina, é possível estabelecer os parâmetros básicos para se proceder com tais técnicas no cenário da medicina contemporânea.

2.1.1 Os direitos do doador e suas obrigações

A lacuna na legislação ordinária nos remete, necessariamente, ao princípio da legalidade, stritu sensu. No sentido de que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, de modo que aquilo que não nos é vedado nos é permitido. Isso, portanto, abre um largo espaço para o debate a respeito da reprodução assistida. (RIBAS, 2007, p. 1-2).

Não obstante, bem elucida Barbosa Apud Castanho (2008, p. 148-149):

No Brasil, diante do silêncio da lei, a única regulamentação existente a respeito é a Resolução n º 1358/926 do Conselho Federal de Medicina, que prevê o anonimato ao doador; e nesse sentido Heloísa Helena Barbosa (2001, p.121) assegura que “o diploma deontológico do CFM, prescreve a preservação do anonimato como uma obrigação do estabelecimento que explora a reprodução assistida”. Porém, é omissa quanto aos requisitos a serem exigidos do doador, ou seja, “não há exigência a respeito de certos requisitos vinculados à pessoa do doador.

Nesse sentido, por conta de não haver previsão de uma pluralidade de pais ou mães ao sujeito que fora concebido por uma inseminação assistida heteróloga, a paternidade conferida ao filho deve ser a sócio-afeitva, havendo a desconsideração da biológica. Dessa forma, justifica-se a necessidade de haver anonimato, pois ao terceiro doador dos gametas cabe a sua abdicação à paternidade “incluindo quaisquer direitos e deveres a ela inerentes” (RIBAS, 2007).

Todavia, questiona-se até que ponto esse direito ao anonimato do terceiro doador estaria assegurado, já que, o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente prevê a possibilidade do filho investigar a sua paternidade a qualquer tempo (RIBAS, 2007).


3 A (IM)POSSIBILIDADE DE RELATIVIZAÇÃO DO SIGILO DE IDENTIDADE DO DOADOR FRENTE AO DIREITO DE CONHECER A PRÓPRIA FILIAÇÃO

A questão que traz o envolvimento do filho em busca de conhecer sua identidade genética é bastante frágil. Isto, pois, mesmo que o sujeito já tenha uma relação sócio-afetiva com o pai ou a mãe que consentiu uma inseminação heteróloga, por conta de uma infertilidade, ainda assim poderá ter o desejo, ou mesmo uma necessidade, em descobrir suas origens, para investigar e reconhecer sua paternidade biológica (SOUSA, 2006, p. 21). Todavia, parte da doutrina defende o direito ao sigilo do terceiro doador, alegando ser esta procura pela identidade biológica uma convenção ultrapassada no Direito Civil contemporâneo. Afirma o autor:

A pretendida alegação de que a criança tem ‘direito’ a conhecer sua origem genética realça expressivamente a paternidade biológica (matéria já ultrapassada no direito de filiação mais moderno) quando é sabido que, atualmente, a paternidade afetiva vem se impondo de maneira indiscutível". Além do referido argumento, outros são citados pelo autor, na defesa do sigilo do doador: a) Pode haver maior respeito à dignidade humana no não conhecimento da origem genética de alguém, do que neste conhecimento. b) Defender o direito à ação de investigação de paternidade contra o doador do sêmen seria defender que todas as crianças adotadas tenham direito à buscar sua origem genética. c) O caos se instauraria, pois tendo um pai registral e conhecendo o pai biológico, de quem a criança herdaria? Poderia demandar alimentos contra qual dos pais? Adotaria o nome do pai biológico ou do afetivo? d) O anonimato evita que, tanto o doador como a criança, procure estabelecer relações com vistas à obtenção de meras vantagens pecuniárias. (LEITE apud SOUSA, 2006, p. 21-22).

Na doutrina do Direito de Família atual, tem-se firmado “suas diretrizes com fundamento na “desbiologização” da filiação, situação em que há que ser preservado o anonimato do doador do material genético, devendo o guardião dos dados do doador fornecê-los em segredo de justiça”, ou seja, mantendo em sigilo contra qualquer publicidade “indesejada ou desnecessária” (GASPAROTO; RIBEIRO, 2008, p. 18).

As aludidas autoras afirmam, também, que a quebra do direito do sigilo fere o princípio da dignidade da pessoa humana em relação ao doador dos gametas, fazendo analogia à casos envolvendo crianças adotivas que, porventura, queiram descobrir sua origem genética o que poderia acarretar em situações conflitantes “tais como: direitos sucessórios, direito a alimentos e uso do nome, e ainda antevê a possibilidade de pai ou filho consanguíneo estreitarem laços de afeto apenas com intuito de obterem proveito econômico” (LEITE apud GASPAROTO; RIBEIRO, 2008, p. 18).

3.1 Posições doutrinárias e entendimentos Jurisprudenciais

Todavia, o direito do filho provido de inseminação heteróloga descobrir sua verdadeira origem genética se trata de um direito de personalidade à identidade (CHINALETO apud GASPAROTO; RIBEIRO, 2008, p. 18). Dessa forma, dizem ainda as autoras, que este direito é garantia constitucional para a criança adotiva ou filho de pais sócio-afetivos que consentiram a inseminação assistida:

Pode-se entender também o direito ao conhecimento da origem genética como decorrente do disposto no art. 227, § 6º da Constituição Federal de 1988, que indica que todos os filhos terão os mesmos direitos e qualificações, assim sendo, deve-se dar à criança gerada por reprodução assistida heteróloga o direito de saber sua origem da mesma forma que outro indivíduo nascido de relações sexuais tem conhecimento. (CHINALETO apud GASPAROTO; RIBEIRO, 2008, p. 18-19).

Nesse sentido, para a posição majoritária, entende-se que existe, como garantia constitucional, a “possibilidade de investigar a verdade biológica do filho socioafetivo, pois o direito à identidade genética não significa a desconstituição da paternidade dos pais sócio afetivos”. Esse entendimento é pautado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da proporcionalidade e adequação os quais asseguram o direito de personalidade ao filho que deseja conhecer sua origem biológica (GASPAROTO; RIBEIRO, 2008).

A esse respeito, existe jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no seguinte sentido:

APELAÇÃO CÍVEL. INVESTIGATÓRIA DE PATERNIDADE CUMULADA COM PETIÇÃO DE HERANÇA. SENTENÇA DESCONSTITUÍDA.

O direito à apuração do verdadeiro estado de filiação biológico torna imprescritível a investigatória de paternidade, permitindo o conhecimento da real origem da pessoa, sem que isso guarde relação com sua idade. A certeza, porém de filiação socio-afetiva entre o investigante e seu pai registral afasta a possibilidade de alteração do assento de nascimento do apelante, bem como qualquer pretensão de cunho patrimonial. A instrução deverá prosseguir unicamente com o fito de esclarecer a questão da origem biológica. (RIO GRANDE DO SUL, 2005)

Em outras palavras, a Corte de Justiça acompanha a corrente doutrinária de que este direito assegura apenas conhecer sua paternidade biológica, não desconstituindo sua filiação com seus pais sócio-afetivos, ou seja, havendo impedimento tanto judicial quanto jurisprudencial de exigir quaisquer direitos sucessórios do pai biológico (GASPAROTO; RIBEIRO, 2008, p. 18-19).


4 CONCLUSÃO

Partindo do pressuposto que o direito à própria identidade é garantia constitucional, demonstra-se necessário uma ponderação a seu respeito, em face da garantia de sigilo do doador, na melhor interpretação da Constituição Federal e no Direito Civil vigente. Com a inclusão e centralidade dos direitos fundamentais presentes na CF/88, é assegurado a igualdade sobre o direito de filiação, em que o filho, seja ele gerido de qualquer forma, ou mesmo adotivo, pode investigar sua paternidade reconhecendo sua filiação biológica ou, simplesmente, aceitar sua filiação sócio-afetiva.

Porém, a doutrina majoritária já firmou seu entendimento no sentido de que são as relações de afeto e sentimentos que unirão pais e filhos, não desconsiderando a opção do próprio filho em escolher buscar por uma verdade biológica ou não.

Nesse contexto, o Direito Civil contemporâneo firma seu entendimento no sentido de que o direito de filiação não se trata mais apenas de relações provindas de uma união biológica; havendo uma evolução para o reconhecimento das mais variadas formas de relações de afeto. Isso significa que, assegurado constitucionalmente, a afetividade não está associada ao sangue, mas se trata da relação de convivência que une uma família, sendo que, em muitos casos, uma relação sócio-afetiva, entre pais e filhos, demonstra-se muito mais sólida e pacífica do que muitos relacionamentos entre famílias que constituem filiação biológica.

 Isso significa que, citando mais uma vez Gasparoto e Ribeiro (2008), o afeto pode surgir da convivência familiar, da realidade social da pessoa servindo como objetivo de garantir a felicidade, não somente na integração da família, mas englobando todas as pessoas que estão em sua volta.

Dessa forma, conclui-se que um filho gerado de uma inseminação assistida heteróloga não descaracteriza a constituição de uma relação parental sócio-afetiva, em que o pai sócio-afetivo já é considerado por lei sendo o único pai da criança.

Tal direito tem sua base nos princípios da afetividade além, é claro, do melhor interesse do menor e que, havendo este reconhecimento sócio-afetivo, qualquer vínculo biológico, por analogia, é excluído. Ainda assim, deve ser garantido ao filho de uma inseminação assistida heteróloga, o direito constitucional de investigar sua paternidade biológica, mesmo havendo uma proibição de identificação do doador.

Tendo em vista a dignidade da pessoa humana, como um dos fundamentos da República, a conclusão é a de que deve ser garantido ao filho o conhecimento de sua própria filiação, tomando apenas como relativa à garantia ao anonimato assegurada aos doadores de material genético.  


REFERÊNCIAS

CASTANHO, Maria Amélia Belomo. O planejamento familiar, o biodireito e a exclusão social - uma análise acerca da produção independente. Revista Eletrônica da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Paraná n. 1 – Jan/Jul 2008. Disponível em: <https://pesquisandojuridicamente.files.wordpress.com/2010/09/o-planejamento-familiar-o-biodireito-e-a-exclusao-social-uma-analise-acerca-da-producao-independente.pdf> acesso em: 07 set. 2015.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução n° 1358/98. Adota normas éticas para utilização das técnicas de reprodução assistida. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/1992/1358_1992.htm> Acesso em: 06 Set. 2015

GASPAROTTO; RIBEIRO, Beatriz Rodrigues. Filiação e biodireito: uma análise da reprodução humana assistida heteróloga sob a ótica do código civil. Disponível em: , http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/brasilia/04_819.pdf> acesso em: 07 set. 2015.

RIBAS. Ângela Mara Piekarski.  Aspectos contemporâneos da reprodução assistida. Âmbito jurídico, 2007. Online. Disponível em: < http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=2985> Acesso em: 04 Set. 2015

RIO GRANDE DO SUL.Acórdão nº 70009550500. Tribunal de Justiça do RS. Sétima Câmara Cível.  Publicado e disponibilizado em 23 de Fevereiro de 2005. Disponível em: < http://tjrs.vlex.com.br/vid/-42109048> Acesso em: 07 Set. 2015

SOUZA, Janice B. Santos. A reprodução humana assistida frente ao direito de família e sucessão. 2006, 32 f. Trabalho Monográfico de Bacharelado (Graduação)- Faculdade de Direito, Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, 2006. Disponível em:<http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao/tcc/tcc2/trabalhos2006_2/janice.pdf> acesso em: 27 de out. 2015.


Anna Valéria de M. A. Cabral Marques- Professora, Ma. Orientadora.


Autores


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Wenderson da Silva; SANTOS, Alexander Barbosa F. dos. Inseminação assistida heteróloga. O conflito jurídico entre o direito ao conhecimento de paternidade e a garantia ao sigilo de identidade nas doações de material genético. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4977, 15 fev. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55829. Acesso em: 24 abr. 2024.