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29 anos da Constituição Federal

29 anos da Constituição Federal

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A oportunidade é de levantar reflexões sobre o “direito de propriedade” e seus dilemas no estado de Mato Grosso do Sul, diante de alguns recentes acontecimentos no Judiciário relacionados ao processo de demarcação de áreas indígenas.

Neste 5 de outubro, nossa Lei Maior, quase trintenária, ainda traz muitas incoerências, seriamente afetas às cláusulas pétreas provenientes de direitos e garantias individuais, onde o respaldo estatal deveria ser absoluto e o exercício de tais garantias deveriam ser sagrados, pela manutenção do estado democrático de direito.

A oportunidade é de levantar reflexões sobre o “direito de propriedade” e seus dilemas no estado de Mato Grosso do Sul, diante de alguns recentes acontecimentos no Judiciário relacionados ao processo de demarcação de áreas indígenas, cito, de maneira recente o Habeas Corpus nº 137956, relatoria do Ministro Marco Aurélio, redigido acórdão pelo Ministro Luís Roberto Barroso.

A pretensão deste debate não deve ficar restrita às ideologias ou opiniões sem fundamento legal, sequer deve se limitar ao número ou identidade das pessoas envolvidas, mas estritamente a ciência jurídica relacionada a três pontos: devido processo legal, processo de demarcação de terras e legítima defesa da posse e da propriedade.

Em rápida contextualização sobre o caso, trata de uma situação ocorrida em junho de 2016 quando aproximadamente 300 (trezentos) brasileiros declarados indígenas mobilizaram-se pela invasão da área de produtores rurais da região pautados na publicação de um “relatório” antropológico que indicou que a área total de 55,5 mil hectares nos municípios de Amambai, Caarapó e Laguna Carapã, teria pertencido aos indígenas em épocas anteriores à Guerra do Paraguai em 1864 a 1870, portanto, anterior à Constituição Federal de 1988, atualmente vigente.

A investigação policial do caso aponta que, no local, houve, pelos indígenas, agressão aos policiais, queima de uma viatura e que o número de indígenas no local era efetivamente muito maior, aproximadamente 200 pessoas bloqueavam acessos à propriedade rural que fazia divisa com uma aldeia abrigando mais de 4 mil índios, confrontados por 40 produtores rurais na defesa da posse de uma área ainda não demarcada e sob discussão de um processo judicial.

Porém, como dito, a questão não é esta, se é ou não terra tradicional, titulada ou não, defendida, invadida, ocupada etc. Vamos à ciência jurídica.

O primeiro ponto, o devido processo legal.

A trintenária Constituição Federal é nitidamente expressa ao dizer, no art. 5º, LIV que: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Já basta esta simples afirmativa para saber que, sem a conclusão de um processo de demarcação não há que se falar na ocupação de uma área supostamente tradicional. E qual é o tal “devido processo legal do caso”?

O segundo ponto, então.

Na Lei Maior dos brancos e índios, ambos brasileiros, submissos à Constituição Federal, o art. 231 garante que “São reconhecidos aos índios [...] os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las [...]”. Inquestionável a competência da União para a demarcação das referidas terras. Mas, qual o processo de demarcação a ser seguido?

Aquele que a própria “Lei do Índio” (Lei Federal nº 6.001/1973) garante, no art. 19: “As terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio, serão administrativamente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto do Poder Executivo”, e que só termina “homologada pelo Presidente da República” (§1º). E qual o processo estabelecido por decreto homologado pelo Chefe do Executivo?

O Decreto nº 1.775/1996, informação acessível a todos. Tal decreto fala que “as terras indígenas, de que tratam o art. 17, I (terras ocupadas), da Lei n° 6001, de 19 de dezembro de 1973, e o art. 231 da Constituição, serão administrativamente demarcadas por iniciativa e sob a orientação do órgão federal de assistência ao índio” (Funai). Resolvidos dois pontos, o devido processo legal e o processo de demarcação.

E, o terceiro ponto, a legítima defesa da propriedade? Simples. Sem esse processo todo concluído, nada feito, para índios ou não índios. Vivemos em um estado democrático de direito e não em terra sem lei. E o que o Habeas Corpus nº 137956 tem a ver com isso? Ora, se as terras têm dono e tem processo que as discuta, como você defenderia sua casa se fosse invadida por um grupo de pessoas não legitimadas pela lei, fazendo justiça pelas próprias mãos?

Isso também é respondido pela lei, seja na cidade ou no campo, já que é um DIREITO legitimado, em que não cabe interpretações, conforme o art. 1.210, §1º, Código Civil: “poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse”. Se na cidade o bandido é punido por invadir uma residência, no campo, da mesma maneira. Não se pode “humanizar” invasões por alegações de direitos (art. 1.210, §2º, Código Civil) e não se pode permitir a CRIMINALIZAÇÃO de um direito legítimo.

Foi instaurada uma insolúvel desordem neste território sul-mato-grossense nestes últimos anos e um tamanho desrespeito às autoridades e à lei. Não é possível que nos aproximemos de trinta anos da maior lei brasileira em meio a esta situação. Chega de violência, insegurança jurídica, fundiária, econômica, ambiental e social! A Constituição Federal clama por respeito e a luta por direitos deve ser feita, de ambos os lados, de maneira LEGÍTIMA, pois somos todos cidadãos brasileiros!


Autor

  • Pedro Puttini Mendes

    Advogado, Consultor Jurídico (OAB/MS 16.518, OAB/SC nº 57.644). Professor em Direito Agrário, Ambiental e Imobiliário. Sócio da P&M Advocacia Agrária, Ambiental e Imobiliária (OAB/MS nº 741). Comentarista de Direito Agrário para o Canal Rural. Colunista de direito aplicado ao agronegócio para a Scot Consultoria. Organizador e coautor de livros em direito agrário, ambiental e aplicado ao agronegócio. Membro fundador da União Brasileira da Advocacia Ambiental (UBAA), Membro Consultivo da Comissão de Direito Ambiental e da Comissão de Direito Agrário e do Agronegócio da OAB/SC. Foi Presidente da Comissão de Assuntos Agrários e Agronegócio da OAB/MS e membro da Comissão do Meio Ambiente da OAB/MS entre 2013/2015.

    Doutorando em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socioambiental pela Universidade do Estado de Santa Catarina, Mestre em Desenvolvimento Local (2019) e Graduado em Direito (2008) pela Universidade Católica Dom Bosco. Pós-graduação em Direito Civil e Processo Civil pela Anhanguera (2011). Cursos de Extensão em Direito Agrário, Licenciamento Ambiental e Gestão Rural.

    PRODUÇÃO BIBLIOGRÁFICA: "Pantanal Sul-Mato-Grossense, legislação e desenvolvimento local" (Editora Dialética, 2021), "Agronegócio: direito e a interdisciplinaridade do setor" (Editora Thoth, 2019, 2ª ed / Editora Contemplar, 2018 1ª ed) e "O direito agrário nos 30 anos da Constituição de 1988" (Editora Thoth, 2018). Livros em coautoria: "Direito Ambiental e os 30 anos da Constituição de 1988" (editora Thoth, 2018); "Direito Aplicado ao Agronegócio: uma abordagem multidisciplinar" (Editora Thoth, 2018); "Constituição Estadual de Mato Grosso do Sul - explicada e comentada" (Editora do Senado, 2017).

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