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Iniciativa probatória do juiz no processo penal.

Uma análise à luz da Constituição Federal de 1988

Iniciativa probatória do juiz no processo penal. Uma análise à luz da Constituição Federal de 1988

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Reflexões sobre a possibilidade da inciativa probatória do magistrado no processo penal, à luz da Constituição, e o flagrante inconformismo com a legislação vigente: faz-se urgente o surgimento de um processo penal democrático.

1.    INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como objetivo abordar a iniciativa probatória do juiz no processo penal, destacando a intangibilidade da verdade real, vez que ela se inicia e termina ao momento do crime e as provas são meras reproduções, de pontos de vistas distintos, do que ocorreu, sem demonstrar a sua integralidade.

Desse modo, o objeto de estudo conduz a uma discussão jurídica em torno das práticas abusivas por parte dos magistrados que através da aplicação do princípio da verdade real possa demandar provas por conta própria. Como questões norteadoras no debate, propõe-se questionar se há respaldo no ordenamento jurídico para tal prática e se violam as garantias previstas na Constituição Federal de 1988.

Deste modo, a pesquisa tem como objetivo geral compreender a iniciativa probatória do juiz no processo penal, analisando se o princípio da verdade real seria legitimador de arbitrariedades por parte do magistrado quanto à produção da prova. Aponta-se como objetivos específicos que definem a estrutura metodológica do texto: analisar a possibilidade de produção de prova pelo magistrado e exigir a impossibilidade de se atingir a verdade real no processo penal e como a sua busca pode interferir na imparcialidade do magistrado, ferindo as garantias constitucionais.

Para a construção dessa discussão utilizou-se como proposta uma abordagem acerca do instituto da prova e a sua importância para o processo penal. Sendo empregado no campo teórico a pesquisa bibliográfica com base nos posicionamentos de doutrinadores como Nucci, Aury Lopes Júnior e Salah Khaled Júnior. Bem como a pesquisa documental, tendo como principais fontes a analise teleológica, axiológica e principiológica da norma.

A primeira parte, intitulada Prova no Processo Penal: Conceito, Função e Ônus, trata asseverações de fatos passados que buscam afirmações das hipóteses levantadas para a aplicação da norma jurídica. Desse modo, as provas são fundamentais para o convencimento do magistrado de escolha da melhor hipótese para a solução justa do conflito.

A segunda parte designada em Análise dos Sistemas Processuais, disserta sobre as formas como o Estada trata a persecução penal, uma vez que é possível compreender o regime adotado por uma nação tendo como ponto de partida o modo em que é desenvolvida a persecução penal a distribuição das suas funções.

A terceira parte denominada de Sistema Processual Brasileiro e a Iniciativa Probatória do Juiz, alude sobre a busca por uma verdade real é legitimadora de atitudes arbitrárias de magistrados nos sistemas processuais adotados ao longo dos anos, apesar de o Brasil possuir uma tradição inquisitorial.

A quarta e última parte cognominado de A Verdade Real e as Garantias Constitucionais, explana inicialmente sobre o princípio da verdade real, que é um resquício do sistema inquisitivo, no qual o inquisidor, antes de analisar o caso, já tinha consigo um “julgamento”, assim, estaria apenas buscando fatos que comprovassem os seus pensamentos pré-definidos sobre a autoria e/ou materialidade do delito.


2.    PROVA NO PROCESSO PENAL: CONCEITO, FUNÇÃO E ÔNUS.

O processo penal é um ritual de reconstrução de maneira mais próxima possível, determinado acontecimento. O processo é formado por intermédio de provas para que o julgador possa tomar conhecimento dos fatos e teses levantadas, buscando, assim, a melhor solução para a situação apresentada.

Como revela COUTINHO (2015, p. 21):

“[...]todo conhecimento é histórico e dialético. Histórico porque é sempre fruto de determinado momento de uma certa sociedade. Dialético porque, além de ser reflexo das condições materiais de seu tempo, atua sobre esta materialidade, alterando-a. Em outras palavras: todo saber é condicionado e condicionante”

Na mesma esteira, LOPES JR. (2016, p. 356) afirma que:

“O processo penal, inserido na complexidade do ritual judiciário, busca fazer uma reconstrução (aproximativa) de um fato passado. Através – essencialmente – das provas, o processo pretende criar condições para que o juiz exerça sua atividade recognitiva, a partir da qual se produzirá o convencimento externado na sentença. ”

As provas são sempre declarações de fatos passados que buscam afirmações das hipóteses levantadas para a aplicação da norma jurídica. Desse modo, as provas são fundamentais para o convencimento do magistrado de escolha da melhor hipótese para a solução justa do conflito.

Para uma melhor conceituação de prova, é necessário que se faça uma análise de seu significado. Conforme LIMA (2016, p. 573), “a palavra prova apresenta origem etimológica pariforme de probo (do latim probatio e probus) e traz a ideia de confirmação ou verificação”. Carnelutti (2001. p. 72-73), para melhor entendimento, afirma que “a prova, em sentido jurídico, é demonstrar a verdade formal dos fatos, mediante procedimentos exigidos por lei. ” Nessa mesma linha LOPES JR (2016. p. 355.) define prova como “os meios através dos quais se fará essa reconstrução do fato passado (crime).”

Deve-se salientar que para ser chamada de “prova” dentro do processo penal é necessário que passe pelo crivo do princípio do contraditório, com algumas exceções, como as provas cautelares (quando há o risco do desaparecimento da prova pelo decurso do tempo) provas não repetíveis (quando não podem ser realizadas novamente) e as provas antecipadas (aquela realizada em momento diverso ao que prevê a legislação). Caso não seja submetido ao contraditório, não poderá o juiz basear seu convencimento nas mesmas.

A função da prova é demonstrar as hipóteses levantadas pelas partes para que o seu pedido seja julgado procedente. Nesse seguimento, CORDERO (2000 apud COUTINHO 2015) salienta que “cabe às partes formularem hipóteses e ao juiz acolher a mais provável, conforme a atividade probatória desenvolvida ao longo do processo.”

Há de se falar acerca do princípio iura novit curia, segundo o qual o juiz conhece as normas jurídicas aplicáveis para diversas situações, entretanto, não tem ciência do ocorrido, o que está sendo objeto do processo, assim, se faz mister que, além das alegações das partes, sejam geradas provas para a adequação do caso concreto à norma jurídica.

O art.156 do Código de Processo Penal (CPP) determina que o ônus de produção da prova pertence a quem faz a alegação, ou seja, cabe à acusação gerar provas acerca de um delito para que seja deflagrada a ação penal e a defesa teria o ônus de provar causas excludentes de ilicitude, por exemplo.

É cediço que é há uma discussão acerca da distribuição do ônus da prova entre duas correntes: a primeira, sendo majoritária, à exemplo de Nucci, reconhece que há uma concreta distribuição do ônus entre a acusação e a defesa; a segunda, sendo minoritária, com autores como Aury Lopes Jr., trabalha que o ônus da prova, no processo penal, cabe inteiramente à acusação em virtude do princípio da presunção de inocência. Porém, tal discussão não é de grande relevância ao assunto aqui abordado.


3.    ANÁLISE DOS SISTEMAS PROCESSUAIS

Os sistemas processuais são as formas como o Estado trata a persecução penal, uma vez que é possível compreender o regime adotado por uma nação tendo como ponto de partida o modo em que é desenvolvida a persecução penal a distribuição das suas funções.

Ao se falar de uma nação que respeita a condição humana de seus cidadãos, assim como suas garantias, pode-se depreender que é adotado o sistema acusatório em sua persecução penal, por se tratar de um sistema que consolida a igualdade e a dignidade da pessoa humana. Já um Estado que é estruturado no autoritarismo, normalmente, o sistema adotado é o inquisitório, uma vez que permite a atuação estatal com acúmulo das funções de acusar e julgar. Como bem pondera Goldshmidt (2010. p. 778 apud KALHED JR, 2013. p. 14.), “a estrutura do processo penal de uma nação é o termômetro dos elementos democráticos ou autoritários de sua Constituição. ”

Salah Khaled Jr., em seu livro, A Busca da Verdade no Processo Penal (2013), demonstra o surgimento dos sistemas processuais e revela que, o sistema inquisitivo, ao contrário do que se propaga, teve sua primeira aparição na Roma Antiga, no período da República, contudo, era denominada de “cognitio”. Toda a função processual encontrava-se em poderes do magistrado, onde não havia regras processuais que limitassem a decisão ou a instrução processual. Ao contrário do que conhecemos como “princípio da inércia da jurisdição”, quando o judiciário deve ser provocado para fazer a prestação jurisdicional, o magistrado podia agir de ofício.

Como bem aponta KHALED JR. (2013. p. 22):

Na cognitio encontramos a nefasta concentração das funções de acusar e julgar, sobretudo o elemento que a nosso ver conforma a configuração inquisitória: a possibilidade de produção de prova pelo julgador, em nome de uma desmedida ambição de verdade.

Assim, KHALED JR. (2013) demonstra que sistema inquisitório ressurgiu ainda na Roma Antiga, porém, no período do Império, após a derrocada da República, quando era necessário reafirmar o poder do imperador hostilizando quaisquer ameaças ao governo. Desse modo, não havendo limites para o poder estatal, foi adotado o modelo inquisitório com as mesmas características supramencionadas.

Ao final do período imperial romano, a Igreja foi a primeira instituição que abandonou o sistema acusatório aderindo ao sistema inquisitivo. A Igreja tinha como objetivo o combate às heresias e o Estado, em virtude da expansão econômica, combater o avanço da criminalidade. A partir desse momento surgiu a verdade como legitimadora da persecução penal desmedida. Em razão da influência eclesiástica, a Igreja tornou-se legítima para investigar, julgar e punir qualquer tipo de conduta que, mesmo de forma indireta, fosse contra os preceitos clericais, conforme ensinamentos de KHALED JR. (2013).

Conforme PRADO (2006. p. 81):

A igreja passa a enxergar no crime não só uma questão de interesse privado, mas, principalmente, um problema de salvação da alma, requisitando-se o magistério punitivo como forma de expiação de culpas. O arrependimento não é mais suficiente. É necessária a penitência, motivo por que cumpre à Igreja investigar um significativo número de infrações, ratificando-se assim, politicamente sua autoridade.

Cumpre ressalvar, conforme KHALED JR (2013), que a verdade real era obtida através de provas, as quais eram produzidas pelo próprio inquisidor que tinha o papel de, após a atividade probatória, analisar esses indícios e dizer se correspondiam à verdade que se estava acusando o indivíduo. Caso tais manifestações ainda não estivessem claras, de modo a determinar a verdade fim, o inquisidor tinha dever e direito de violentar o inquirido para que esse objetivo fosse auferido.

O autor também revela que, a “Santa” Inquisição, forma de instrumentalizar o sistema inquisitivo, não tinha o intento de combater a criminalidade, mas sim as heresias declaradas por alguns indivíduos que confrontavam os dogmas eclesiásticos, ameaçando o poder da Igreja Católica. Contudo, os Estados absolutistas, após a sua laicização, a partir do século XII, utilizando-se das características do sistema inquisitivo, acossavam seus inimigos com o discurso de paz social embuçado pelo seu verdadeiro significado: a manutenção do poder. No século XIII, o Estado retoma, aos poucos, o poder sobre a persecução penal, no entanto, as características permanecem as mesmas do período da Santa Inquisição, nas lições de KHALED JR (2013).

MONTESQUIEU (1996. p. 510-511) admoestava a inquisição ao dizer:

O tribunal da Inquisição, formado por monges cristãos com base na ideia do tribunal da penitência, é contrário a toda boa ordem. Encontrou em todo lugar uma revolta geral, e teria cedido antes das contradições se aqueles que queriam estabelecê-lo não tivessem tirado vantagem destas mesmas contradições. Esse tribunal é insuportável em todos os governos. Na Monarquia, só consegue criar delatores e traidores, nas repúblicas, só pode formar pessoas desonestas no Estado despótico, é tão destruidor quanto ele. (...) É um dos abusos desse tribunal que, de duas pessoas que são acusadas do mesmo crime, aquela que nega é condenada à morte e aquela que confessa evita o suplício. Isto foi tirado das ideias monásticas, onde aquele que nega parece ser impenitente e danado, e aquela que confessa parece estar arrependida e salvo. Mas semelhante distinção não pode envolver os tribunais humanos. A justiça humana, que vê apenas as ações, tem apenas um pacto com os homens, que é o da inocência; a justiça divina, que vê os pensamentos, tem os dois, o da inocência e o do arrependimento.

Como preceitua KHALED JR (2013), o sistema acusatório teve seu embrião no período da Grécia antes de Cristo. Qualquer cidadão de Atenas poderia formular sua acusação perante o órgão oficial competente, porém a tarefa de acusar gerava custos para o acusador que tinha obrigação de depositar um valor no caso de indenização por falsa acusação. O julgador não tinha interferência sobre a função probatória e a instrução ocorria em praça pública por meio da retórica entre acusado e acusador, cabendo ao juiz apenas a função de julgar. O retorno do sistema acusatório se deu no período da República Romana quando o poder de acusar, em delitos privados ainda se encontrava nas mãos do povo que levava os fatos ao juiz que era responsável a resolver o conflito.

No direito germânico também esteve presente o sistema acusatório, ainda que com características bastante peculiares, conforme doutrina FERRAJOLI (2002). Os crimes eram tidos como violações privadas de direitos que eram resolvidas em um duelo que consistia em desafios entre as partes que os aceitavam e se submetiam, não se destinando a formar convicções, era apenas um meio de luta, por meio da qual uma delas demonstrava a maior força de suas afirmações sobre o direito que invocava, afirma MAIER (2006. p. 266. apud KHALED JR. 2013. p. 36). Como revela KHALED JR (2013), no direito germânico havia provas de caráter social, provas de caráter verbal e provas físicas. Um dos meios de prova mais eficazes para o esclarecimento de culpa no sistema germânico era utilizando-se de água quente ou fogo (chamadas de ordálias - provas cruéis e até mesmo trágicas que as partes se submetiam para provar suas alegações). Tais artifícios eram utilizados no corpo do acusado e, caso não ocorresse os meios efeitos habituais, a sua inocência era provada.

As principais características do sistema processual germânico, conforme KHALED JR. (2013), eram: tribunal popular; persecução penal privada nas mãos do ofendido e seus parentes; publicidade e oralidade do juízo em que se enfrentavam acusador e acusado; sistema de provas dado a dirimir subjetivamente a disputa, pois elegia um vencedor através de três alternativas: com base em testemunhos de sua maior honra pessoal, vitória em combate judicial, desafios e métodos mediante os quais a divindade mostrava, por signos físicos facilmente comprováveis, a justiça do caso; a decisão não era recorrível. Nesse diapasão, o autor afirma que essas características são nitidamente do sistema processual acusatório, como a “separação das funções de acusar e julgar, juiz alheio à gestão da prova, publicidade e oralidade

Enquanto a Europa Continental era jugulada pelo sistema inquisitório, na Inglaterra, a partir do rei Henrique II, surgiu o julgamento perante um júri. Com o advento da Magna Charta Libertatum, limitou-se os poderes do rei, implementando um ideal de cidadania, consagrando o habeas corpus, a reserva da jurisdição da matéria penal e a presunção de inocência. Surge, então, o inquérito com o objetivo de apurar se houve crime, qual foi ele e quem o cometeu, conforme KHALED JR. (2013)

Após a Revolução Francesa e a laicização do Estado, foram abalizados os fundamentos do direito penal que admitimos hoje, identificado por uma atuação limitada e restrita (ultima ratio), assim como ressaltou o direito e defesa das liberdades individuais perante um Estado inclinado a transgredir tais alvedrios. Documento importante para tal acontecimento foi a Declaração dos Direitos do Homem, de 1789, que sagrou a presunção de inocência e o princípio da jurisdicionalidade, o que, segundo KHALED JR. (2013), deu início ao sistema penal misto.

Ainda segundo KHALED JR (2013), apesar de o Estado querer romper com o sistema inquisitivo, com o Plano de Legislação Criminal, de Marat, ainda havia forte influência da Ordenação Criminal de 1670. Por conseguinte, em 1808, com o Código de Instrução Criminal, durante o reinado Napoleônico, foram retomadas praticas inquisitivas, excetuando-se a tortura, pois o processo penal ainda era tratado como uma persecução penal pública, não interessando às pessoas no poder permitir que os transgressores de normas não forem julgados por eles ou, no caso, seus representantes. Desse modo, a metodologia processual foi dividida em duas fases, a saber: “instrutória” como a primeira fase, e “debate” como a segunda fase.

Acerca das fases, KHALED JR. (2013) explica que, na fase instrutória, mais conhecida como “inquérito” atualmente, era o gestor da prova, devendo leva-las a juízo e, essas evidências colhidas - secretamente, escrita e privada do contraditório - eram utilizadas como provas ao momento da próxima fase, sendo, inclusive, permitida a fundamentação nas mesmas, ainda que não devessem ter uma consideração decisiva. No entanto, em caso de mudança dos testemunhos ou ausência dos atestantes, a leitura das declarações era inevitável. Na fase de debate, ao acusado era garantida a presença do defensor e contraditório, não obstante, ao decorrer do procedimento o julgador não tivesse convencido das provas que foram produzidas por si ou a defesa levantasse dúvidas, o processo era suspenso para novas diligências que, geralmente, eram para confirmar a acusação e fundamentar a condenação.

KHALED JR. (2013, p. 127-128) faz uma crítica ao sistema misto adotado:

[...] a manutenção de uma estrutura inquisitória na primeira fase fazia da segunda fase um espetáculo pseudoacusatório, no qual o que contava era a satisfação da ambição da verdade preconizada na etapa preliminar. Em última análise, a hipótese acusatória já vinha dada para o juiz, que partia da expectativa de preenchimento dessa “verdade”. Se os elementos colhidos na primeira etapa fossem postos em questão, ainda restava a opção de solicitação de novas diligências, conformando novamente uma sobreposição dos papéis de acusar e julgar.

O grande problema do sistema misto, como retrata CORDERO (2000 p. 147. apud KHALED JR. 2013. p. 129) é que “o sistema misto permite a utilização de elementos colhidos na primeira etapa, enquanto o sistema acusatório não admite provas não estabelecidas no processo. ” 

Como se percebe, os sistemas processuais, ao longo da história chegaram a se manifestar da maneira mais pura, porém, em razão das mudanças históricas e momentos políticos, os dois sistemas foram unidos para, como sempre, atender aos interesses punitivistas do Estado, sem importar-se com os direitos do cidadão, permitindo, ao Estado, cometer arbitrariedades que, felizmente, hoje, são criticadas com o objetivo de impedi-las.

Em sua brilhante obra acerca do ônus da prova no processo penal, BADARÓ (2003), aduz que o cerne do debate é de predominância política a técnica, em virtude da escolha do sistema processual ser uma consequência do modelo que o Estado adota e das suas relações com seus cidadãos. Em virtude disso, até hoje não é abandonada a estrutura inquisitiva, uma vez que afirma o poder do Estado em dizer a “verdade” e punir quem viola suas regras preestabelecidas.

Na prática, o apego à estrutura inquisitiva torna perceptível as arbitrariedades cometidas pelos magistrados com fundamento na verdade real, desde a tortura, na “Santa Inquisição”, para descobrir as heresias eventualmente cometidas, até à atual apreensão de computadores e mídias, determinada na atualidade, com o objetivo de descobrir a fonte de informações de um jornalista. Todas essas atitudes dos magistrados estavam camufladas pela “proteção” da sociedade contra os ditos criminosos.


4.    SISTEMA PROCESSUAL BRASILEIRO E A INICIATIVA PROBATÓRIA DO JUIZ

Há um grande desentendimento na doutrina a respeito da classificação do sistema processual penal adotado no Brasil. Autores asseveram que, após o advento da Constituição Federal de 1988, o sistema adotado ajusta-se com o acusatório. Outros doutrinadores discordam desse entendimento levando em consideração que, em consequência da legislação infraconstitucional, o sistema processual brasileiro é inquisitório garantista. Nessa linha é o entendimento do professor NUCCI (2007. p. 104-105) e de grande parte da doutrina nacional:

[...] o sistema adotado no Brasil, embora não oficialmente, é o misto. Registemos desde logo que há dois enfoques: o constitucional e o processual. Em outras palavras, se fôssemos seguir exclusivamente o disposto na Constituição Federal poderíamos até dizer que nosso sistema é acusatório (no texto constitucional encontramos os princípios que regem o sistema acusatório). Ocorre que nosso processo penal (procedimentos, recursos, provas, etc.) é regido por Código específico, que data de 1941, elaborado em nítida ótica inquisitiva (encontramos no CPP muitos princípios regentes do sistema inquisitivo (...)).

Corroborando com a afirmação de NUCCI (2007), vejamos o que se encontra na exposição de motivos do Código de Processo Penal brasileiro, datado do ano de 1941:

As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidência das provas, um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela social. Não se pode continuar a contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum.

A partir da leitura de um trecho da exposição de motivos do Código de Processo Penal, verifica-se que a forte influência do inquisitivismo permaneceu entranhada na legislação pátria, uma vez que o transgressor da lei é considerado um inimigo do bem comum, devendo ser segregado do convívio social e seus direitos previstos na Constituição são apenas empecilhos de uma descoberta da verdade. Percebe-se, portanto, que Estado, para manter sua autoridade perante à coletividade, deve corrigir qualquer conduta que recalcitra o padrão social imposto de maneira ágil.

Nesse contexto, é necessário elucidar que a jurisdição é um poder-função do Estado em resolver litígios, aplicando a lei ao caso concreto. Essa função estatal é exercida pelo Poder Judiciário. Contudo, para o seu exercício, é importante que seja observada a lei maior, ou seja, a Constituição Federal, haja vista ser o ponto de partida de toda interpretação legislativa, devendo ser primordial a solução de qualquer contenda judicial.

Partindo desse pressuposto, é pacífico que a Carta Magna é um importante instrumento de efetivação da democracia através da observância, sobretudo, do princípio da dignidade da pessoa humana e da isonomia, uma vez que deixa de tratar o indivíduo a partir de uma “coisificação” e passa a aceitá-lo como um ser dotado de direitos inerentes a sua condição humana. Com isso, é imprescindível que se desvincule o processo penal de uma acepção de poder e o vincule à democratização, um espaço em que as partes desenvolvam seus argumentos e provas, possibilitando que o juiz exerça a jurisdição de maneira imparcial, dessa forma o poder de punir do Estado é regrado e não permite a arbitrariedade estatal.

O grande problema que deve ser enfrentado é que muitos autores, como Jorge Figueiredo Dias e Antônio Magalhães Gomes Filho, apesar de criticarem o sistema inquisitório, aceitem a permanência da busca pela verdade real no processo penal pátrio, desconsiderando que isso remonta ao discurso primordial do processo inquisitivo. Nesse pensar, KHALED JR. (2013. p. 154.) alerta que “mesmo que a verdade correspondente pareça maquiada com alegorias de “relativa” ou “aproximada” nos autores que admitem sua busca pelo juiz, ela permanece legitimando a deformação inquisitória do processo contemporâneo.”

A busca por uma verdade real é legitimadora da iniciativa probatória do magistrado tanto no processo inquisitório, quanto no Brasil. Desse modo, na linha de Jacinto Coutinho, Aury Lopes Jr. e Salah Khaled Jr. o processo penal brasileiro é (neo) inquisitório, sendo, portanto, contrário aos preceitos do Estado Democrático de Direito que a Constituição Federal admite que sejamos. A afirmação encontra suporte nas afirmações de KHALED JR (2013) de que a definição do sistema processual é analisada a partir da gestão da prova, e o Brasil tem total tradição inquisitorial.

No sistema acusatório, percebe-se que há uma verdadeira tecnicidade, pois o que importa é a regra, sendo um absurdo desvirtuá-la e isso faz que que esse sistema seja neutro, visto que observa formalidades e não permite ao magistrado reconhecer provas que foram obtidas fora do ritual preestabelecido. Contudo, no sistema inquisitório, a prova é tudo aquilo que revela o que supostamente aconteceu e deve ser levado aos autos de qualquer forma; independentemente à existência de regras, as mesmas podem ser burladas para que a verdade real seja alcançada nos autos.

Um processo acusatório, como deveria ser o brasileiro, baseado na Constituição Federal, seguindo a tecnicidade que lhe é imposto para evitar abusos, não significa que a verdade não é importante ou desconsiderada, porém, como revela KHALED JR. (2013. p. 159.), “ela não ocupa um lugar hegemônico no sistema, o que permite afastar a característica patológica resultante de sua elevação a cânone no processo inquisitório, enfatizando seu caráter de contenção regrada do poder punitivo. ” 

Para LOPES JR. (2010. p. 73), os dispositivos que revelam a ambição pela verdade real, como o art. 156, I e II do CPP:

Externam a adoção do princípio inquisitivo, que funda um sistema inquisitório, pois representam uma quebra da igualdade, do contraditório, da própria estrutura dialética do processo. Como decorrência, fulminam a principal garantia da jurisdição, que é a imparcialidade do julgador. Está desenhado um processo inquisitório.

Essa ambição pela verdade real, legitimada no Código de Processo Penal é tão evidente que é possível observar arbitrariedades cometidas pelos magistrados quando, por exemplo, nos crimes de ação pública, o julgador tenha o arbítrio de proferir sentença condenatória mesmo que o Ministério Público tenha pedido a absolvição do acusado, também quando há a possibilidade de o magistrado reconhecer agravantes sem que o órgão acusador tenha suscitado. Em posição acertada, LOPES JR (2010) afirma que os artigos 5º, 127, 156, 209, 234, 311, etc., são inconstitucionais, uma vez que violam o sistema acusatório constitucional.

KHALED JR. (2013. p. 165.) revela que:

[...] é preciso fazer uma clara opção entre um processo acusatório e democrático, fundado na dignidade da pessoa humana – e, logo, na presunção de inocência – e um processo de inspiração inquisitória, fundado na lógica de persecução do inimigo. Em um processo o juiz ingressa predisposto a absolver, ciente de que a posição que lhe cabe é receptiva e que é a acusação que deve derrubar a presunção de inocência; em outro processo, o juiz entra movido por insaciável ambição de verdade e pratica ato de parte, o que só pode expressar um irrefreável desejo de condenação [...].

É evidente que o artigo 156 do Código de Processo Penal legitima práticas arbitrárias do magistrado, alegando que a busca pela verdade ontológica se faz necessária para a melhor aplicação das leis, evitando, assim, erros judiciais capazes de prejudicar o indivíduo. Entretanto, mais a frente, será demonstrado o equívoco quanto a esse posicionamento, pois, uma vez que a legislação permite que o representante do Estado pratique arbitrariedades mínimas que sejam, ela pode permitir atrocidades.

Alguns doutrinadores, como Fernando Capez e Aury Lopes Júnior, entenderem que o sistema processual pátrio é misto, por ser usado o Código de Processo Penal com uma matriz de persecução ao inimigo e devendo respeitar garantias impostas pela Constituição Federal de 1988, contudo, nos alinhamos à corrente deste, de que o processo penal brasileiro deve ser o acusatório, em todas as suas fases, tendo um vista que a Carta Magna de um país é fonte precípua das demais leis, devendo ser respeitada em todas as suas formas e tudo que lhe for contrário deve ser repensado de forma a garantir os direitos de todos os cidadãos. Ou seja, toda norma infraconstitucional, como o Código de Processo Penal, não pode atentar contra a divisão de funções, a imparcialidade do julgador e à presunção de inocência.  


5.    A VERDADE REAL E AS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS

Inicialmente faz-se mister ressaltar que a ideia de verdade surgiu na Grécia Antiga como um instrumento de controle do poder punitivo. A verdade surgiu ligada à ideia de prova, de elucidação dos acontecimentos por meio da dialética. Como bem retrata KHALED JR. (2013. p. 17.):

[...] a verdade surgiu não como uma justificativa e/ou meio para a incidência do poder punitivo, mas sim, como limite a ele, como a exigência de um núcleo probatório consistente, para somente então haver punição: era um método de conhecimento estruturado em torno do convencimento da verdade.

Apesar de surgir com esse propósito e ser deturpada pelo sistema inquisitório, a verdade ainda é tratada como crucial e palpável por um juiz através das provas, sejam elas trazidas pelas partes ou por iniciativa probatória do magistrado.

A grande problemática acerca do alcance da verdade ontológica pelo juiz reside no fato de torná-la científica, ou seja, capaz de alcançá-la por meio de observação e experimentação. Ocorre que, atualmente, sabemos que algo considerado cientificamente comprovado não significa dizer que, necessariamente, que é assim que sempre ocorrerá.

Para Trujillo (1974), ciência consiste numa sistematização de conhecimentos, um conjunto de proposições logicamente correlacionadas sobre o comportamento de certos fenômenos que se deseja estudar. Um conjunto de atitudes e atividades racionais dirigidas ao sistemático conhecimento com objetivo limitado, capaz de ser submetido à verificação. No entanto, como percebido, ela só passou por determinado método, não sabendo como se comportaria perante outro método. Isso significa dizer que é necessário um cuidado ao afirmar que algo cientificamente comprovado é inteiramente verdadeiro, devendo ser analisadas as demais hipóteses.

Portanto, ao se falar em “verdade” no processo penal, remete-se à ideia de verificação de fatos passados, como o crime, trata-se de ações que já se finalizaram no tempo. Não é possível que se tenha conhecimento pleno das ações; esse conhecimento se dá através de uma metodologia processual, a qual é realizada por pessoas, sujeitos de emoções.

É de conhecimento universal que qualquer ato finalizado não é passível de sua reprodução idêntica, pois uma vez que foram concluídos, não podem mais ser vivenciados. Cabe, então, analisar não só o crime em si, mas todas as questões que o rodeiam. Entretanto, o máximo que se pode obter são indícios, por intermédio de pessoas e objetos, desse modo são construídas as provas.

Assim, reconstruir qualquer fato é falível e imperfeito, pois o mesmo se perdeu no tempo, desse modo, fica atrelado apenas à narração das pessoas que o viram e, portanto, é retratado da forma que convém. No entanto, camuflado pela verdade real, o magistrado, em dúvida, insiste, por mera arbitrariedade, ordenar a produção de provas, como a oitiva de inúmeras testemunhas referidas, por exemplo, para sanar ponto que ache relevante no processo que, contudo, somente serve para confirmar o seu pré-julgamento.

Mesmo estando ciente dessa falibilidade na reconstrução fática por qualquer pessoa, o legislador brasileiro insiste em colocar em posição superior o magistrado, de modo a pensar que a reconstrução fática produzida por ele é mais segura, podendo, assim, prolatar uma decisão sem qualquer tipo de equívoco na reconstrução dos fatos. No entanto, é evidente que o magistrado comete arbitrariedades, como apreensões e conduções coercitivas, na proteção da busca da verdade real.

É necessário, então, que se elucide o princípio da verdade real constante no processo penal pátrio e legitimador do arbítrio do magistrado quanto à gestão da prova. O princípio da verdade real consiste na busca dos eventos tais como aconteceram, uma reprodução sem claudicações, pontos de vista ou intercessões humanas. O Estado-Juiz não deve aceitar apenas os fatos e provas trazidos pelas partes.

Nesse sentido, GOMES (2011) destaca:

Diferentemente do que pode acontecer em outros ramos do Direito, nos quais o Estado se satisfaz com os fatos trazidos nos autos pelas partes, no processo penal (que regula o andamento processual do Direito penal, orientado pelo princípio da intervenção mínima, cuidando dos bens jurídicos mais importantes), o Estado não pode se satisfazer com a realidade formal dos fatos, mas deve buscar que o ius puniendi seja concretizado com a maior eficácia possível.

Nessa mesma toada afirma BETTIOL (1973. p. 250 apud KHALED JR. 2013. p. 168-169.):

[...] o fim de todo processo é a busca da verdade. No processo penal isso só se torna mais dramático em função de sua natureza. Em razão da intensidade com que se anseia pela busca da verdade no processo penal, podemos dizer que um princípio fundamental do processo penal é o da investigação da verdade material ou substancial dos fatos em torno dos quais se discute, para que sejam provados em sua subsistência histórica, sem obstáculos e deformações. Isso faz com que o legislador tenha que eliminar do código toda limitação à prova e que o juiz tenha que ser deixado livre para formar o seu próprio convencimento.

O pensamento de Luiz Flavio Gomes e Bettiol não coaduna com a ideia do surgimento da verdade, no sentido de regrar o poder punitivo estatal, apenas revela uma linha inquisitiva. Ambos acreditam que para se alcançar a verdade real, o juiz não deve se acomodar na sua posição de mero julgador e receptor das provas, deve ter postura mais ativa, produzindo-as, só assim, se chegará a verdade dos fatos. Além disso, essa postura ativa deve ser protegida pelo legislador de modo que não haja limites à persecução da verdade.

Percebe-se que tal posicionamento apenas remonta ao sistema de ideias inquisitoriais que devemos superar. Como bem salienta KHALED JR. (2013. p. 170) “a estrutura processual que tem como núcleo fundante a epistemologia inquisitória por excelência objetifica o acusado ou, quando não o faz por excelência, o trata como inimigo a ser perseguido a qualquer custo para a satisfação de uma inesgotável ambição de verdade. ”

Além do mais, a aspiração pelo alcance da verdade real encontra entraves na própria Constituição, haja vista que a utilização de provas ilícitas não deve ser admitida no processo, desse modo, impossibilita a ação desregrada de um juiz inquisidor moderno. Diante disso, não deve ser admitido um juiz com postura ativista no processo penal, no sentido de determinar apreensões, conduções coercitivas, expedir mandados genéricos, como ocorre atualmente, pois, assim, os magistrados sentem-se livres para praticar arbitrariedades, as quais o grande prejudicado é o réu.

Para FERRAJOLI (2002. p. 488.), a verdade processual “pode ser concebida como uma verdade aproximada a respeito do ideal iluminista de perfeita correspondência”, ou seja, não é possível o alcance dessa da verdade real, somente é possível o alcance do que Ferrajoli denomina de “verdade processual”, pois ela é alcançada através das provas constantes nos autos, é são nelas que o magistrado deve fundamentar a sua decisão.

Há autores, como Guilherme Nucci, que acastelam essa atuação do magistrado de modo complementar à atuação das partes, não devendo ser açodada a qualquer custo. No entanto, como revela KHALED JR. (2013. p. 184) “dizer que a verdade não deve ser perseguida a qualquer custo ainda é dizer que a verdade deve ser perseguida e que esse deve ser tido como um fim no processo penal. ”

Essa ambição pela verdade consistente e sem a devida contenção do poder punitivo estatal causa enormes transtornos à sociedade, como bem assevera LOPES JR.  (2016. p. 285):

Historicamente, está demonstrado empiricamente que o processo penal, sempre que buscou uma ‘verdade mais material e consistente’ e com menos limites na atividade de busca, produziu uma ‘verdade’ de menor qualidade e com pior trato para o imputado. Esse processo, que não conhecia a ideia de limites – admitindo inclusive a tortura -, levou mais gente a confessar não só os delitos não cometidos, mas também alguns impossíveis de serem realizados

É inconcebível se falar em princípio da verdade real quando se está perante um Estado Democrático de Direito, assim como perfilhar as circunscrições do direito, como ciência propriamente dita, quando atuante eremítico, devendo reconhecer a importância de um trato com as demais ciências para o aprimoramento da vida em sociedade.

Deve haver interação entre as demais ciências, funcionando como auxiliares do direito, como a importante filosofia, sociologia, a criminologia, como suporte para melhor inteligência do fato delituoso, pois não há ferramentas que possibilitem a obtenção de uma verdade que corresponda fielmente à real. Nesse mesmo sentido CALAMANDREI (1999. p. 178-179) faz uma acertada análise:

[...] o pecado mais grave da ciência processual destes últimos cinquenta anos tem sido, no meu entender, precisamente este: haver separado o processo de sua finalidade social; haver estudado o processo como território fechado. Como um mundo por si mesmo, haver pensado que se podia criar em torno do mesmo uma espécie de soberbo isolamento separando-o cada vez de maneira mais profunda de todos os vínculos com o direito substancial, de todos os contatos com os problemas de substância; da justiça, em suma

Percebe-se, portanto, que a ciência processual não deve ser pensada de forma isolada, pois o contato com os demais ramos do direito e de outras ciências revelam outras vertentes do fato delituoso. Uma visão fechada e delimitada da ciência processual penal resulta na legitimação de atitudes arbitrárias na produção da prova por parte do magistrado, vez que abaliza a atuação do julgador a simples persecução ao inimigo, extraída da análise da exposição de motivos do Código de Processo Penal.

O processo penal, como supracitado, é uma forma de reconstrução dos fatos, através das provas, que buscam o convencimento do juiz. Contudo, as provas sofrem um limite para a sua obtenção, tanto é verdade que há a previsão constitucional acerca da inadmissibilidade de provas ilícitas no processo. Entende-se como prova ilícita aquela que, de algum modo, violou direito material ou formal das partes.

A legislação processual pátria, apesar de ser datada de 1941 e ter sua estrutura montada no facismo italiano, deve se adequar às estruturas democráticas da Constituição Federal de 1988, que garante inúmeros direitos e garantias, fundamentais para a prevalência da dignidade da pessoa humana, o que não era pensando anteriormente ao iniciar-se o procedimento de apuração.

É cediço que, para se iniciar a ação penal, o juiz recebe a peça inaugural, em sua maioria, a “denúncia”, formulada pelo Ministério Público, que descreve todos os fatos e condutas que estão sendo imputadas ao agente, ora acusado, assim como acosta as provas que entendem necessárias para elucidar o delito. Ato contínuo, verificando-se os pressupostos de admissibilidade, entre eles a “justa causa”, o juiz autoriza o início da ação penal com a consequente citação do acusado para responder à acusação. Após, é iniciada a instrução do processo com a produção de provas, as quais, quando requeridas pelo magistrado, tem como fundamento a “verdade real”.

A verdade real, como se compreende, é um resquício do sistema inquisitivo, no qual o inquisidor, antes de analisar o caso, já tinha consigo uma avaliação, assim, estaria apenas buscando fatos que comprovassem os seus pensamentos pré-definidos sobre a autoria e/ou materialidade do delito. Essa busca de comprovação dos pensamentos pré-definidos Franco Cordero (2000 apud COUTINHO 2015) denomina de “primado da hipótese sobre os fatos”.

O primado da hipótese sobres os fatos, teoria de Franco Cordero (2000 apud COUTINHO 2015), consiste na possibilidade de o magistrado formar quadros mentais paranoicos que o impeçam de conhecer as outras verdades do acontecimento. Ocorre quando o julgador toma para si a denúncia como única verdade do processo e o guia para comprovar esse fim. Os argumentos levantados pela defesa não são levados em consideração, pois, o juiz, a partir dos quadros mentais paranoicos, fecha seus olhos para as outras hipóteses. Isso significa um prejuízo enorme para o acusado, haja vista que, como bem pondera Franco Cordero (2000 apud COUTINHO 2015), isso é um problema de sistemas tipicamente inquisitórios.  

Como bem retrata KHALED JR (2013. p. 185.), “desta forma, justapondo ‘amostras’ algumas utilizadas, outras deixadas de lado, valendo-se de suas impressões, que podem prefigurar algo que não estava lá, o juiz integra subsídios de acordo com suas predileções e, assim, de fato, inventa. ”

Isso ocorre, pois, o primeiro contato do magistrado com a ação penal se dá por intermédio da denúncia oferecida pelo Ministério Público e, em virtude do Órgão funcionar como fiscalizador da ordem social, o juiz toma os fatos afirmados como verdadeiros e, muitas das vezes, deixado de lado as hipóteses trazidas pela defesa.

A teoria de Franco Cordero (2000 apud COUTINHO 2015), se encaixa perfeitamente em nosso ordenamento jurídico uma vez que revela o descaso com as garantias previstas na Constituição Federal. Isso é um grande transtorno para a efetivação de um processo penal acusatório, que deve ser fundado nas garantias individuais do cidadão previstas na Lei Maior.

Com a forte influência dos direitos humanos, de todas as gerações, a Constituição estabelece regras de tratamento e obrigações do Estado para com o cidadão, entre elas a de ser tratado igualmente aos outros perante a lei, assim como a obrigação de garantir o acesso à justiça e o direito a um devido processo legal.

Assim, resta evidente que a teoria do “primado da hipótese sobres os fatos” viola frontalmente dois princípios basilares do direito processual penal, a presunção de inocência e o juiz natural. A violação da presunção de inocência se dá ao fato de que a mesma nunca deve ser provada, como a própria morfologia da palavra, e sim presumida desde o início até o trânsito em julgado. É incabível “condenar” um indivíduo com fundamento em uma peça acusatória, por exemplo.

Ademais, a violação ao princípio do juiz natural decorre do fato de que, ao tomar como única verdade a peça acusatória, por exemplo, o julgador não é mais imparcial, uma garantia básica do processo. Nesse sentido, o juiz deixa de exercer sua função predefinida para ocupar o mister das partes, em especial, do órgão acusador. Isso ocorre, pois, o Ministério Público, por ter como objetivo agir na defesa da ordem jurídica, detém, não só importante papel para a atividade jurisdicional, como também credibilidade em seu discurso, tanto é que o órgão é responsável por emitir pareceres que auxiliam o magistrado no julgamento dos feitos. Nessa toada, o magistrado prefere aderir a tese levantada pelo Parquet a tese levantada pela defesa.

Percebe-se que o processo penal deve ser regido pelos princípios constitucionais inerentes à dignidade da pessoa humana pois, como bem alerta CARNELUTTI (2004. p. 36.):

[...] o castigo, infelizmente, não começa com a condenação, senão que começou muito antes, com o debate, a instrução, os atos preliminares, inclusive com a primeira suspeita que recai sobre o imputado; tanto o julgamento penal é desde logo castigo que muitas vezes o acusado fica sujeito a ele in vinculis, como se já houvesse sido condenado; o drama é que ele é castigado para saber se deve ser castigado.

Como demonstrado, percebe-se que a verdade, buscada como ponto hegemônico, objetivo central, legitima o poder do juiz quanto à produção da prova. Pois, conforme citado princípio, a verdade deve sempre ser buscada para o melhor convencimento do magistrado que deve ser o interlocutor da justiça, devendo aplicar a pena, de modo a ensejar um exemplo para os demais cidadãos, evitando, assim, novos desvios das regras sociais impostas.

É nítido que o processo penal brasileiro, historicamente, legitima legislações persecutórias, como a aqui apresentada, gestão de provas pelo magistrado. Isso fica claro quando da leitura da exposição de motivos do Código de Processo Penal de 1941. A legislação penal sempre apresentou um sistema político-criminal com o escopo de manutenção do poder, não objetivando a efetivação da democracia e direitos dos indivíduos, muito menos da limitação do poder punitivo estatal.

As arbitrariedades cometidas pelos magistrados, legitimadas em nosso ordenamento jurídico pelo princípio da verdade real, ocorrem, pois, desde os primórdios, a sistemática punitiva gira em torno da moralidade, entre o “bem e o mal”. Põe-se, portanto, a sociedade, representada pelo juiz, ao lado do “bem” e o indivíduo que teve uma conduta social desviada dos padrões impostos do lado do “mal”, devendo, portanto, ser limado do convívio social sem ter seus direitos garantidos, entre eles o de ser julgado por um juiz imparcial.

Nesse sentido, é evidente que o aludido princípio representa, para os seus defensores, a repressão efetiva de um desvio à moralidade social, o que permite a utilização de medidas capazes de violar direitos individuais, pois o Direito Penal deve proteger os direitos da coletividade, quando estes se encontram em conflito com o de apenas um indivíduo, no caso, o acusado. Desse modo, o magistrado deveria aplicar quaisquer medidas coercitivas, legitimado pela verdade real, para aplicar a jurisdição de maneira integral, diminuindo, ao máximo, a ocorrência de claudicações e responder aos bel-prazeres sociais

No entanto, conforme explicitado, deve-se buscar compreender o objetivo do processo penal pátrio como um instrumento de efetivação da democracia, com o fim de regular o convívio social baseado no respeito à dignidade da pessoa humana. Com o respeito às regras processuais, baseadas em um processo democrático, é nítida a necessidade de afastar a possibilidade de produção da prova pelo magistrado, uma vez que representa um retrocesso à democracia e desrespeito aos direitos humanos que a Constituição Federal de 1988 estabelece.

É necessário, portanto, que haja a escolha pelo devido processo legal, respeitando a função designada de cada parte, não havendo confusão entre os encargos. A função do juiz é fazer parte da triangulação processual propenso a absolver o acusado, com base no princípio da presunção de inocência, a par de que sua função é receptiva e a acusação deve exercer o seu ofício de desmantelar o referido princípio.

Um processo penal que permite, com a verdade real como legitimadora de arbitrariedades do magistrado, uma busca indomável pela verdade ontológica, só demonstra uma irreprimível avidez pela condenação. Somente a partir de uma sistemática que não permita a hegemonia da obtenção da verdade como legitimador do magistrado quanto à gestão da prova, é possível haver uma ruptura com sistema inquisitorial e uma verdadeira limitação ao poder punitivo estatal, fazendo jus ao objetivo da criação da verdade da Grécia Antiga, reforçada pelas ideologias contemporâneas de respeito à dignidade da pessoa humana.


6.    CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo do presente artigo foi trazer à baila a contradição existente no Processo Penal Brasileiro, a saber, a busca de uma verdade, denominada real, que é antagônica ao sistema processual acusatório. Realizando uma análise do aludido princípio para além da superficialidade que os manuais de direito processual penal apresentam, resta evidente que o mesmo é utilizado como recurso técnico-processual para práticas inquisitivas.

O respeito às regras constitucionais deveria ser uma obrigação à todas as partes do processo, a fim de se concretizar um processo penal equalizado. As armas processuais outorgadas a uma parte devem ser igualmente concedidas a outra parte, com o objetivo de equilibrar a triangulação processual.

O sistema acusatório, ou majoritariamente acusatório, como auferem alguns estudiosos do tema, aduz que há funções distintas para as partes, ou seja, o magistrado deve manter uma postura supra para com as partes, enquanto o órgão ministerial é responsável pela titularidade da ação penal, bem como o ônus probatório dos fatos articulados na inicial acusatória. Em contrapartida, é da defesa o ônus de resguardar-se das cargas processuais que lhe foram imputadas pelo Parquet. Desse modo deve ser realizada a instrução processual.

É cediço que os pré-conceitos pessoais do juiz não devem interferir na sua apreciação do feito. A imparcialidade e o alheamento judicial são condições fundamentais para que o processo penal, alcance, no máximo possível o seu desígnio básico, a saber, atribuir a responsabilidade penal, se houver ou absolver, seja pela ausência probatória, seja pela dúvida da prática delituosa, u qualquer outra prevista no Código de processo Penal

Desse modo, o magistrado não deve se agarrar à verdade real com o objetivo de participar do processo em uma função que não é sua. Esse princípio deve ser posto fora do direito processual penal, haja vista ser um resquício que muito abala a democracia e as garantias fundamentais do acusado com o advento da nova ordem constitucional.

O que cabe ao magistrado é um papel compromissado com a verdade processual, originada das provas carreadas nos autos pelas partes. Com isso, impede-se que ocorra um julgamento prévio e, em seguida, uma busca para a sua confirmação. Em outras palavras, isso impediria a prática da teoria de Franco Cordero (2000 apud COUTINHO 2015), “o primado da hipótese sobre os fatos”.

A busca por um convencimento motivado do magistrado, com base na apreciação das provas constantes nos autos, é respeito ao sistema processual acusatório. Portanto, a busca pela verdade real, como demonstrado ao longo do presente estudo, é um mito originado no sistema inquisitivo, ou qual já foi, ou deveria ter sido extinto do direito processual penal. No atual sistema processual penal, o compromisso das partes e do Estado-juiz deve ser unicamente com os fatos constantes nos autos.

A negativa de validade dos direitos fundamentais, assim como negar validade às garantias processuais ao réu é o mesmo que negar seus direitos advindos da ordem constitucional contemporânea, o que constitui uma violação à Constituição Federal, bem como à sua condição de ser humano.

Portanto, o que se necessita é de um Processo Penal democrático, interpretado à luz da Constituição Federal, onde as garantias individuais do acusado sejam respeitadas, com o objetivo de evitar arbitrariedades que, por ventura, possam ser cometidas pelos magistrados quanto à gestão da prova.

Percebe-se, portanto, que uma interpretação constitucional do processo penal não deve ocorrer simplesmente pelo fato de a Constituição estar no topo da hierarquia das normas, mas sim em virtude da mesma ser originada de lutas históricas para a consagração de direitos e garantias fundamentais a todos.


REFERÊNCIAS

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TRUJILLO, F.A. Metodologia da Ciência. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Kennedy, 1974.



Informações sobre o texto

O presente artigo irá realizar uma análise da inciativa probatória do magistrado no Processo Penal, à luz da Constituição Federal, do flagrante inconformismo com a legislação vigente e a necessidade social. Abrangerá um estudo histórico dos sistemas processuais e o vigente me nosso país, com o enfoque nas suas perspectivas e aplicabilidade traçadas. Busca-se demonstrar que caracteriza uma grande regressão a possibilidade instrutória do julgador.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GIFONI, Hender Claudio Souza. Iniciativa probatória do juiz no processo penal. Uma análise à luz da Constituição Federal de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5389, 3 abr. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61796. Acesso em: 20 abr. 2024.