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Combate ao trabalho análogo ao de escravo na Bahia: a experiência da força-tarefa

Combate ao trabalho análogo ao de escravo na Bahia: a experiência da força-tarefa

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Os diferenciais da força-tarefa de combate ao trabalho escravo na Bahia foram o seu caráter preventivo, o menor tempo de atuação, o foco no trabalho escravo e o maior número de parceiros institucionais presentes, aliado ao fortalecimento radical da rede.

As condições degradantes de trabalho, assim como qualquer outro elemento caracterizador do trabalho análogo à escravidão, não estão condicionadas pela anuência ou intenção do trabalhador. É a coerção coletiva do capital, através do mercado de trabalho, que viabiliza e está sempre presente na submissão de trabalhadores ao consumo de água envenenada por agrotóxicos, aos baixos salários pagos com atraso, aos alojamentos de lona preta, à ausência de banheiros, à inexistência de locais para refeição, ao fornecimento de comida estragada, a jornadas intermináveis, enfim, submetendo trabalhadores a condições que seriam próprias do que poderíamos chamar de escravismo típico (SALES, FILGUEIRAS, 2013).

No Brasil, a escravidão demorou séculos para deixar de ser um direito de propriedade do empregador sobre um ser humano para se tornar um crime (HADDAD, 2017, p. 130) e mesmo superando dificuldades normativas, a criminalização da escravidão enfrenta desafios substanciais. O Código Penal tipifica em seu artigo 149[1] o trabalho análogo ao de escravo no ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, a simples previsão legal da conduta ilícita a uma pena de reclusão de 2 a 8 anos por si só não foi suficiente para que a escravidão contemporânea deixasse de existir. Há dificuldades acadêmico-conceituais [alguns intelectuais temem que o uso indiscriminado da categoria escravidão venha a prejudicar a campanha propriamente dita contra a escravidão (BARBOSA, 2017, p. 174)], prático-conceituais [agentes públicos ainda mantém o discurso superado da necessidade de supressão da liberdade (NUNES, 2018, p. 215; BARBOSA, 2017, p. 183)], político/ideológicas (parlamentares e representantes patronais responsabilizam a própria vítima pobre escravizada pela condição degradante ou afirmam que o crime é artificialmente criado por autoridades mal intencionadas), jurisprudenciais (vide votos-vista vencidos do Ministro Gilmar Mendes no Inquérito n. 2131/DF, de 07.10.2010 e RE n. 398.041-6, de 19.12.2008), operacionais (poucos agentes públicos estão envolvidos no tema no Brasil, utilizando viaturas precárias para atuar em alvos situados em locais ermos, e também orçamentárias – em 2017 houve redução em 23% no número de operações de fiscalização em relação ao ano anterior – que impedem a efetivação do combate ao trabalho escravo). Analisaremos aqui, entretanto, uma dinâmica de enfrentamento ao trabalho escravo que tem alcançado relativa eficácia em um dos Estados da Federação – a Bahia – por nós intitulada de Força-Tarefa.

Com esta perspectiva, o objetivo do presente artigo é apresentar informações acerca das quatro peculiaridades deste grupo de trabalho na Bahia. São elas: sua forma de articulação democrática; priorização do trabalho preventivo; otimização de esforços; e caráter vinculante das sanções legais.


Articulação democrática e em rede

A Força-Tarefa de combate ao trabalho escravo é resultado das reuniões iniciais realizadas em 2015 no âmbito pela Coetrae/Bahia[2] (Comissão Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo, vinculada à Secretaria de Justiça, Desenvolvimento Social e Direitos Humanos - SJDHDS), visando atender a uma demanda específica do Estado, qual seja, a  demora no atendimento das denúncias por parte do DETRAE – Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo, do Ministério do Trabalho. Algumas denúncias, por exemplo, demoravam tempo superior a um ano para serem objeto de fiscalização pelos Grupos Especiais de Fiscalização Móveis (GEFM).

A Força compreende, assim, uma iniciativa de instituições como Ministério Público do Trabalho, Ministério do Trabalho (extinto pelo atual Governo), Polícia Rodoviária Federal, Universidade Federal da Bahia, Secretaria de Estado de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social, Secretaria de Estado do Trabalho, Emprego, Renda e Desporto, Defensoria Pública da União, Organização Internacional do Trabalho, Polícia Federal, Ministério Público Federal, Sindicato dos Auditores-Fiscais do Trabalho no Estado da Bahia,  Ministério Público do Estado da Bahia, entre outros, cada qual dando a sua pertinente contribuição. A Força-Tarefa foi gestada com o intuito de ter uma maior autonomia em relação ao cronograma de fiscalizações implementado pelo Ministério do Trabalho em nível nacional, em Brasília.

Sob a premissa de que a atuação isolada das instituições tende a diminuir a efetividade da política pública de combate ao trabalho escravo, acreditou-se que as atribuições deviam ser exercidas de forma conectada com os demais parceiros da rede. Além disso, não bastava que todos estivessem presentes nas reuniões bimestrais: também era fundamental sua participação no trabalho de campo, para evitar, em primeiro lugar, teorizações sobre o trabalho escravo contemporâneo sem lastro fático e empírico (dificuldade que impacta atualmente em decisões desfavoráveis da Justiça do Trabalho e Justiça Federal), e em segundo lugar, para uma perfeita identificação do efetivo papel que o órgão presente em campo pode desempenhar em um caso concreto. Afinal de contas, debater em uma reunião sobre a relevante atribuição de determinada Secretaria na execução da política pública assistencial é coisa diversa de olhar no olho do trabalhador resgatado e saber o que fazer, articular como abrigá-lo em pousadas ou casas de acolhimento municipal, cadastrá-lo em programas sociais, enfim, saber como providenciar sua proteção social.

Nos casos de trabalhadores indocumentados, por exemplo, a Secretaria de Justiça tem exercido um papel fundamental visando o encaminhamento destes trabalhadores aos órgãos governamentais responsáveis pela expedição de documentos como RG, CPF, ou Carteira de Trabalho. Quando são encontrados trabalhadores em situação de vulnerabilidade social e extrema pobreza, a Secretaria de Justiça tem encaminhado os obreiros aos órgãos assistenciais dos Municípios, para dar atendimento psicológico, cadastramento em programas assistenciais e/ou fornecimento de cestas básicas para alimentação, até o momento do deslocamento a suas residências. A Secretaria de Estado baiana, coordenadora dos Centros de Referência e Assistência Social e Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CRAS e CREAS), ainda encaminhava os resgatados para abrigos municipais, nos casos em que o empregador se recusava a fornecer hospedagem aos obreiros.

A presença da Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte, nas operações, por sua vez, permitiu o cadastramento de trabalhadores em cursos de capacitação e em programas estatais de inserção no mercado de trabalho, visando dar cumprimento ao art. 2º alínea “c”, parágrafo primeiro, da Lei n. 7998/90. Na Bahia, a SETRE é responsável pela coordenação do Projeto Ação Integrada (OLIVEIRA, 2017, p. 44, 48), no bojo da Agenda Bahia de Trabalho Decente, consoante Decreto n. 10454/2007 [3].

O grupo tinha por objeto: identificar com antecedência situações de trabalho análogo ao de escravo,permitir o contato dos parceiros da rede com a realidade do trabalho escravo; reprimir situações de trabalho análogo ao de escravo, com a formalização de termos de ajuste de conduta ou ações civis públicas; efetivar o resgate de trabalhadores; providenciar a emissão de documentos como a Carteira de Trabalho e Previdência Social; exigir o pagamento de verbas rescisórias e a percepção das parcelas de seguro-desemprego. Tudo isto com a máxima do “aqui  agora”.

Ou seja, tudo acontecia ali mesmo na região, logo após o resgate, evitando-se o desencontro de informações ou a falta de contato posterior com os trabalhadores que, via de regra, são migrantes. Visando suprir uma lacuna na proteção e atenção às vítimas já identificada pela literatura (RIBEIRO, 2017, p. 272), o modus operandi da Força-Tarefa baiana efetivamente sensibilizava e impulsionava os órgãos estatais que podiam oferecer políticas públicas estruturais de assistência aos trabalhadores.

Não podemos deixar de mencionar, na esfera baiana, a existências das Leis Estaduais n. 12.356/2011, que instituiu o Fundo de Promoção do Trabalho Decente – Funtrad – para financiamento de ações de promoção do trabalho decente na Bahia, e a Lei n. 11.470/2009, que institui restrições à concessão e à manutenção de financiamentos e incentivos fiscais estaduais a empregadores que exploram trabalhadores em condições análogas à de escravos, esta ainda pendente de regulamentação.

Além da atuação em rede, destacamos o caráter democrático dos trabalhos realizados junto à Comissão Estadual. Com a realização frequente de reuniões e a comunicação constante dos membros através de redes sociais, o planejamento das operações era construído de forma coletiva, com um cronograma anual, permitindo-se a participação de todos os órgãos e parceiros da rede de enfrentamento, que podem sugerir os municípios que precisam ser fiscalizados, as atividades econômicas que demandam atuação prioritária e ainda quais deveriam ser os períodos de execução das operações. As reuniões funcionavam, também, como uma oportunidade para as instituições cobrarem e pressionarem, umas às outras, pelo exercício do seu papel corporativo de forma mais célere e eficaz.


Caráter preventivo

Neste ponto, a Força-Tarefa baiana distinguiu-se do Grupo Especial de Fiscalização, cujo foco de atuação é tradicionalmente repressivo (CAMPOS, 2011, p. 199), ou seja, impulsionado quase sempre por denúncias concretas. Os objetivos da unidade operacional da Bahia consistiam em identificar preventivamente situações de trabalho análogo ao de escravo, além de fazer com que os membros da rede parceira tivessem contato com a realidade do trabalho escravo e, a partir daí, adotassem providências necessárias de assistência aos resgatados.

Observamos que vários fatores levavam ao baixo quantitativo de denúncias apresentadas, por parte das vítimas ou de suas associações sindicais representativas, especialmente de trabalhadores rurais. As dificuldades consistiam: na falta de identificação do trabalhador em exercer um trabalho em condições degradantes; o difícil acesso dos trabalhadores a órgãos ou entidades que pudessem encaminhar as denúncias; a baixa qualificação dos agentes públicos e dos parceiros das entidades associativas em identificar irregularidades como verdadeiro trabalho em condições análogas à de escravo. Nesse contexto, foi necessário inverter a lógica de repressão - meramente reativa às denúncias - para ir até as regiões com indícios de trabalho escravo contemporâneo e diagnosticá-lo, ainda que sem provocação social. Levou-se em conta, neste planejamento, a existência de flagrantes anteriores de trabalho escravo – pela maior chance de reincidência a evidenciar uma praxis empresarial naquela região -, a maior vulnerabilidade dos trabalhadores, os fluxos migratórios e os picos de safra agrícola, com base em indicadores fornecidos pela Universidade Federal da Bahia, por meio do Grupo de Pesquisa Geografar, e de informações coletadas junto a entidades sindicais de trabalhadores. As operações eram realizadas em todas as regiões do estado, durante uma semana por mês, em média. Desde a instituição do grupo, mais de 40 operações foram realizadas.

Cerca de 30 dias antes das operações, coletavam-se informações junto a procuradores do trabalho, auditores-fiscais do trabalho e juízes do trabalho dos municípios a serem inspecionados, entre outros parceiros – como a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura e a Comissão Pastoral da Terra – como forma de identificar possíveis locais com exploração de trabalho escravo contemporâneo ou denúncias concretas. Nesta oportunidade, o MPT encaminhava ofícios-convite para as instituições parceiras que iriam participar da operação (que por sua vez deveriam indicar os nomes e a quantidade de representantes), as datas, e os equipamentos necessários às inspeções (máquinas fotográficas, GPS, impressoras, notebooks etc.). Uma semana antes da abordagem in loco, em contato com os auditores-fiscais do trabalho, procuradores e policiais que iriam integrar a Força-Tarefa, definia-se um roteiro de fiscalizações. Na ocasião, outros órgãos parceiros eram acionados para fornecer informações disponíveis sobre os empregadores que seriam inspecionados (cadastros em órgãos ambientais, investigações em curso no Ministério Público do Estado da Bahia, mapas de caminhamento, ou alvarás de construção junto ao CREA/Ba), para permitir um trabalho de inteligência preliminar.

Tudo isto se deu sem prejuízo de iniciativas de capacitação de agentes públicos e membros da sociedade civil. Assim é que, em um período de aproximadamente 3 anos, houve a realização de aproximadamente 20 eventos como audiências públicas, seminários envolvendo estudantes, e cursos de capacitação de agentes públicos (analistas do MPU, PRFs, atendentes de “Disque 100”, policiais militares, conselheiros tutelares, entre outros). A Força baiana teve por premissa a ideia de que, com maior conhecimento sobre o tema trabalho análogo a de escravo, qualquer pessoa pode veicular uma denúncia e assim potencializar a efetividade do combate a este crime.


Otimização dos esforços

A Força-Tarefa buscava ter um foco específico no combate ao trabalho escravo. Isto significa dizer que, ainda que a ida a campo não dependesse necessariamente de uma denúncia concreta, o objetivo do grupo era identificar situações de trabalho análogo ao de escravo: se após uma inspeção detalhada no estabelecimento empresarial não se detectava o crime em questão, as demais irregularidades encontradas (como falta de assinatura de CTPS ou de recolhimento do FGTS, violações às Normas Regulamentadoras) eram encaminhadas para as autoridades locais com atribuição para exercer sua atividade finalística. Otimizava-se, portanto, o tempo de trabalho da equipe, evitando-se a formalização de procedimentos burocráticos em face do empregador que praticou ilícitos administrativos mas não criminais (lavratura de autos de infração, requisição de documentos, expedição de notificações). Assim, se não constatado o trabalho em condições análogo à escravidão em determinada inspeção, a força-tarefa partia para a averiguação de outra denúncia, ou de outra empresa com indício de exploração ilegal.

.Um dia antes do início, os representantes da rede chegavam aos locais combinados. No dia inicial, era feito um briefing especificando o papel de cada instituição, ajustando e definindo o roteiro, e indicando as finalidades da Força-Tarefa, em especial para agentes públicos que participavam pela primeira vez deste tipo de grupo de trabalho. Durante quatro dias, fazendas e estabelecimentos empresariais eram inspecionados, sendo que ao final (quinto dia) havia o recebimento das empresas com trabalho escravo identificado para colheita de entrevistas, análise de documentos, entrega de multas, propositura de termos de ajuste de conduta, pagamento de rescisões e entrega de guias de Seguro. Como já visto, entidades como SETRE e SJDHS verificavam situações cadastrais e inscrição em programas sociais. Havendo resgate, ao fim da operação, os parceiros emitiam nota conjunta para as respectivas assessorias de comunicação.

De forma inovadora e com antecedência, a Polícia Rodoviária Federal e o Ministério Público do Estado da Bahia fizeram o mapeamento das localidades a serem inspecionadas (georreferenciamento).

Na Bahia, nos anos de 2015 a 2017, a força-tarefa foi coordenada pelo Ministério Público do Trabalho; a partir de 2018, ela passou a ser conduzida pelo Ministério do Trabalho, protagonista institucional natural para este tipo de atividade pública. As operações baianas eram mais rápidas e duravam apenas seis dias, ao invés dos doze que levam as organizadas pelo GEFM/MTb). Com foco restrito na identificação de trabalho análogo à escravidão, a força-tarefa baiana era, também, mais dinâmica: se não havia flagrante, encaminhavam-se as irregularidades trabalhistas ordinárias para instituições locais próprias, não se detendo no empreendimento inspecionado, otimizando o tempo e o recurso público. Ademais, a tônica do grupo era a prevenção, de forma que não se restringia a denúncias específicas para a busca ativa. Como se vê, a iniciativa da força-tarefa na Bahia era uma adaptação ao trabalho já realizado pelo GEFM há anos. Tinha por objetivo não rivalizar com seu “irmão” institucional sediado em Brasília, mas sim complementar a sua atuação e, mais do que isso, permitir que o GEFM concentrasse seus esforços nos demais estados da federação, já que a força-tarefa podia investigar as denúncias baianas. O DETRAE, aliás, ajudou muito as equipes baianas em suporte informacional (dados sobre resgatados, técnicas de inspeção) e na disponibilização de auditores-fiscais não vinculados à Superintendência do Ministério do Trabalho na Bahia.


Caráter vinculante das sanções legais

Outra premissa da força-tarefa foi o desempenho das atividades institucionais de forma vinculada, o que implica dizer que as punições devidas foram aplicadas, não se admitindo margem à discricionariedade por parte dos agentes públicos. Buscou-se, assim, uma defesa intransigente da proteção social dos trabalhadores. Neste sentido, todo flagrante de trabalho escravo exigia reparação social através de uma indenização aos trabalhadores e à sociedade; todas as irregularidades trabalhistas foram objeto de imposição de multas; caracterizado o crime previsto no artigo 149 do Código Penal, havia prisão em flagrante do escravocrata moderno e encaminhamento às autoridades policiais para instauração do competente inquérito e ação penal. Pode parecer óbvio, mas pesquisas envolvendo as instituições nacionais que lidam com o tema do trabalho escravo evidenciam que estas atribuições não costumam ser exercidas (SOUZA, 2017, HADDAD; MIRAGLIA, 2018, FILGUEIRAS, 2014).

Em todos os flagrantes de escravidão contemporânea na Bahia, entre os anos de 2015 a 2018, o Ministério Público do Trabalho solicitou à Justiça do Trabalho que expropriasse a terra onde foi praticado o referido crime, visando dar cumprimento integral ao disposto no artigo 243 da Constituição Federal. Diferentemente de precedentes anteriores no Pará e Piauí, onde houve desapropriação com vultosos pagamentos aos escravocratas (BARBOSA, 2017, p. 173, RIBEIRO, 2017, p. 278) nas ações civis públicas o pedido foi no sentido de perda total da propriedade da área rural, sem qualquer indenização. Ainda que a Justiça do Trabalho não tenha julgado favoravelmente o mérito de nenhuma dessas ações até a presente data (CARDOSO, 2018), tratou-se de procedimento diferenciado em relação ao que ocorreu em outras operações de trabalho escravo.


Desafios

A força-tarefa integra-se a outras estratégias de enfrentamento ao trabalho escravo (prevenção, atendimento e assistência às vítimas), especialmente com o Projeto Ação Integrada Bahia, de acolhimento e encaminhamento de trabalhadores resgatados do trabalho degradante. Como corolário disso, buscou identificar os trabalhadores resgatados, encaminhando relatórios de diagnóstico e mapeamento, e conhecendo a realidade pós-resgate in loco, para que o trabalhador fosse reinserido já com uma formação cidadã, tal como foi feito de forma minuciosa pela Organização Não Governamental Avante – Educação e Mobilização Social. No entanto, ainda são muitos os desafios para levar dignidade a muitos trabalhadores baianos.

Assim é que, consoante pesquisa do Núcleo de Estudos Conjunturais da Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia, dos 66 casos de trabalho análogo ao escravo flagrados na Bahia, entre 2005 e 2015, apenas 17 tiveram um desfecho no campo criminal, com decisões na 1ª instância da Justiça Federal. Esse é um dos indicadores apurados (atualizados até 25 de maio de 2017). A partir desses casos, o Ministério Público Federal (MPF) realizou 52 denúncias penais, alcançando 78,8% dos casos detectados pelas fiscalizações do extinto Ministério do Trabalho. Esse dado, referente ao estado baiano, sugere uma evolução frente aos últimos dados nacionais apresentados pelo MPF em 2013, que abarcavam aproximadamente 25% dos resgates efetuados no Brasil até então. Por outro lado, o tempo demandado pelo MPF para realizar tais denúncias foi muito extenso: em média, as denúncias ocorreram 1175 dias após o encerramento dos relatórios da Fiscalização do Trabalho, ou seja, mais de 3 anos após o resgate dos trabalhadores.

A situação é mais grave no trâmite do processo judicial, ou seja, na Justiça Federal: das 52 denúncias ofertadas pelo MPF, apenas 17 tiveram decisões em 1ª instância, ou menos de um terço dos processos. Em média, a Justiça Federal levou 1675 dias (mais de 4 anos), contados a partir da data da denúncia do MPF, para emitir a sentença. Nas decisões publicadas, houve 10 condenações e 6 absolvições, baseadas em diferentes questões materiais e formais. Dado preocupante é o fato de que a Justiça ainda registra divergência em relação à redação do artigo 149 do Código Penal e da jurisprudência do STF, que determinam a caracterização do trabalho análogo ao escravo com base em condições degradantes e jornadas exaustivas, independentemente da existência de formas pretéritas de coerção individual sobre os trabalhadores. Cinco decisões, por exemplo, afirmavam que apenas a existência coerção individual direta sobre os trabalhadores ensejavam o crime de redução à condição análoga à de escravo. O entendimento da Justiça Federal baiana não discrepa do encontrado em outros Estados (BARBOSA, 2017, P. 174). Queremos crer que este viés poderia ser superado, em curto prazo, através do fomento de cursos de capacitação para estas autoridades federais. A UFBA identificou, ainda que 76% de todos os resgates ocorridos entre 2003 e 2016, envolviam trabalhadores terceirizados  (SAKAMOTO, 2017, p. 197). Este dado por si já sugere que a reforma trabalhista implementada pela Lei n. 13.467/2017 trará grande impacto negativo no que tange ao combate ao trabalho escravo, vez que autoriza irrestritamente a terceirização em atividade finalística ou não.

Um tema fundamental para a prevenção do trabalho em condições análogas a de escravo, como a reforma agrária, também não tem contado com avanços na Bahia. Após reuniões com o INCRA, os técnicos do órgão informaram que há anos não chegam recursos para aquisição de terras para a implementação desta política pública, o que decerto expande a chance de superexploração dos trabalhadores da região, diante da nítida relação entre a falta de terra para cultivo e a vulnerabilidade social (CARDOSO, 2018, OLIVEIRA, 2017).


Conclusão

Vimos ao longo do texto que os diferenciais da Força-Tarefa de combate ao trabalho escravo na Bahia foram o seu caráter preventivo, o menor tempo de duração, o foco no trabalho escravo, e o maior número de parceiros institucionais presentes. Mas o fortalecimento da rede é o ponto mais positivo desta experiência. Como analisado, o tema trabalho análogo ainda é objeto de muito desconhecimento, sendo que tais operações permitiram que os representantes institucionais pudessem conhecer o trabalho análogo ao de escravo.

No entanto, o maior desafio para realizar a força-tarefa, ainda hoje, é a falta de consenso das autoridades sobre o conceito legal de trabalho escravo moderno, o que acaba por inviabilizar resgates quando necessários, e por absolver empregadores que praticam este crime, na esfera penal ou trabalhista. Acreditamos que a Justiça do Trabalho ainda não tenha uma noção exata do conceito contemporâneo de escravidão, o que acaba não conferindo efetividade ao enfrentamento do problema (vide a grande quantidade de pedidos indeferidos de antecipação de tutela de bloqueio de numerários para pagamento de verbas rescisórias em face de escravocratas e a demora na prolação de sentenças). A persecução criminal, ao menos na Bahia, também não tem logrado êxito na imposição de penalidades aos infratores. Os processos criminais não chegam ao fim ou resultam em absolvição ou penalidades irrisórias. Ainda assim, os resultados baianos mostram-se satisfatórios quando confrontados com a realidade anterior encontrada na Bahia e com o cenário nacional de combate ao trabalho escravo.


Referências bibliográficas

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Notas

[1] Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: 

Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

[2] No Decreto 11723/2009, de sua criação, é atribuído à COETRAE/BA: I - avaliar e acompanhar as ações, os programas, projetos e planos relacionados à prevenção e ao enfrentamento ao trabalho escravo no Estado da Bahia, propondo as adaptações que se fizerem necessárias; II - acompanhar a tramitação de projetos de lei relacionados com a prevenção e o enfrentamento ao trabalho escravo; III - avaliar e acompanhar os projetos de cooperação técnica firmados entre o Estado da Bahia e os organismos internacionais que tratem da prevenção e do enfrentamento ao trabalho escravo; IV - recomendar a elaboração de estudos e pesquisas e incentivar a realização de campanhas relacionadas ao enfrentamento ao trabalho escravo; V - apoiar a criação de comitês ou comissões assemelhadas nas esferas regional e municipal para monitoramento e avaliação das ações locais; VI - manter contato com setores de organismos internacionais, no âmbito do Sistema Interamericano e da Organização das Nações Unidas, que tenham atuação no enfrentamento ao trabalho escravo. (BAHIA, 2009). (OLIVEIRA, 2017, p. 36).

[3] Art. 2º - À Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte – SETRE compete: (...)II - propiciar condições e iniciativas que estimulem a promoção do trabalho decente para todos. Vide ainda Lei Estadual  nº 2.321, de 11 de abril de 1966, modificada pelas Leis nº 7.435, de 30 de dezembro de 1998, 9.424, de 27 de janeiro de 2005, e alterada a sua denominação e estrutura organizacional pela Lei nº 10.549, de 28 de dezembro de 2006 (LACERDA, 2016).


Autor

  • Ilan Fonseca de Souza

    Procurador do Trabalho na 5ª Região (Bahia), Especialista em Processo Civil, Mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília. Doutor em Estado e Sociedade pela Universidade Federal do Sul da Bahia.

    Textos publicados pelo autor


Informações sobre o texto

Publicado anteriormente em LTR. SUPLEMENTO TRABALHISTA, v. 01, p. 87, 2019

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Ilan Fonseca de. Combate ao trabalho análogo ao de escravo na Bahia: a experiência da força-tarefa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5868, 26 jul. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/75492. Acesso em: 23 abr. 2024.