Para esta edição, vamos rememorar a discussão travada em um precedente jurisprudencial clássico do Supremo Tribunal Federal, julgado em fevereiro de 2006: a validade da penhora do bem de família.
O único imóvel (bem de família) de uma pessoa que assume a condição de fiador em contrato de aluguel pode ser penhorado, em caso de inadimplência do locatário. A decisão, por maioria, foi tomada pelo plenário do STF ao rejeitar um Recurso Extraordinário (RE 407688), no qual a questão era discutida.
No recurso, o fiador contestou decisão do 2º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, que havia determinado a penhora de seu único imóvel para o pagamento de dívidas decorrentes de contrato de locação. O tribunal paulista entendeu que a Lei 8.009/90 protege o bem de família, mas faz uma ressalva, no entanto, para os casos em que o imóvel é dado como garantia pelo fiador, em contrato de aluguel (artigo 3º, inciso VII).
A questão chegou ao Supremo porque o fiador, inconformado com a decisão do tribunal paulista, recorreu alegando que o dispositivo da Lei 8.009/90 ofende o artigo 6º da Constituição Federal, alterado pela Emenda Constitucional 26/2000, que incluiu a moradia no rol dos direitos sociais amparados pelo texto constitucional.
O julgamento
Durante o julgamento pelo plenário do STF, os ministros debateram duas questões: se deveria prevalecer a liberdade individual e constitucional de alguém ser ou não fiador, e arcar com essa respectiva responsabilidade, ou se o direito social à moradia, previsto na Constituição, deveria ter prevalência.
Isso implicaria dizer se o artigo 3º, inciso VII da Lei 8.009/90 estaria ou não em confronto com o texto constitucional, ao permitir a penhora do bem de família do fiador, para o pagamento de dívidas decorrentes de aluguel.
O ministro Cezar Peluso, relator da matéria, entendeu que a Lei 8.009/90 é clara ao tratar como exceção à impenhorabilidade o bem de família de fiador. Segundo o ministro Peluso, o cidadão tem a liberdade de escolher se deve ou não avalizar um contrato de aluguel e, nessa situação, o de arcar com os riscos que a condição de fiador implica.
O ministro Peluso não vê incompatibilidade entre o dispositivo da lei e a Emenda Constitucional 26/2000 que trata do direito social à moradia, ao alterar o artigo 6º da Constituição Federal. O voto do relator foi acompanhado pelos ministros Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Marco Aurélio, Sepúlveda Pertence e Nelson Jobim.
A divergência
O ministro Eros Grau divergiu do relator, no sentido de afastar a possibilidade de penhora do bem de família do fiador. O ministro citou como precedentes dois Recursos Extraordinários (RE 352940 e 449657) relatados pelo ministro Carlos Velloso (já aposentado) e decididos no sentido de impedir a penhora do único imóvel do fiador. Nesses dois recursos entendeu que o dispositivo da lei ao excluir o fiador da proteção contra a penhora de seu imóvel feriu o princípio constitucional da isonomia.
Esse entendimento também foi citado pelos ministros Carlos Ayres Britto e Celso de Mello, que acompanharam a divergência aberta pelo ministro Eros Grau. Os três votos divergentes no julgamento foram no sentido de que a Constituição ampara a família e a sua moradia e que essa proteção consta do artigo 6º da Carta Magna, de forma que o direito à moradia seria um direito fundamental de 2ª geração, que tornaria indisponível o bem de família para a penhora.
Mas prevaleceu o entendimento do relator. Por 7 votos a 3, o plenário acompanhou o voto do ministro Cezar Peluso e negou provimento ao Recurso Extraordinário, mantendo, desta forma, a decisão proferida pelo Tribunal de Alçada de São Paulo, que determinou a penhora do bem de família do fiador. O acórdão foi publicado em outubro de 2006.
Os reflexos do precedente e a permanência da divergência
Não obstante decisão do Supremo Tribunal Federal, o tema ainda rende discussão e divergência jurisprudencial. Não só pelo fato da decisão proferida pelo STF não ter sido unânime, fazendo com que os votos divergentes alimentassem ainda mais a discussão, mas sobretudo pelos estudos publicados por juristas e doutrinadores de relevo.
Em linhas gerias, um bem pode ser considerado como de família por imposição legal (Lei 8009/90) ou por vontade da parte (artigos 1.711 a 1.722 do CC). A finalidade do legislador, em ambas as hipóteses, foi proteger a família (sentido latu sensu). Desta forma ele considerou ser impenhorável o bem de família, porém há exceções previstas em lei.
Eis o mote da questão: a possibilidade do devedor renunciar a este direito de impenhorabilidade.
Neste sentido surgem duas correntes. Há quem entenda que o devedor pode dispor deste direito, ao passo que se trata de direito pessoal. A segunda corrente entende que mesmo o devedor indicando o bem de família à penhora ou oferecendo como garantia de dívida, não poderia perdurar tal constrição, pois se trata de imposição legal, de matéria de ordem pública.
Para demonstrar a divergência jurisprudencial, pinçamos alguns julgados. Quanto à admissibilidade da penhora, temos:
PENHORA DE SEU IMÓVEL RESIDENCIAL – BEM DE FAMÍLIA – ADMISSIBILIDADE – INEXISTÊNCIA DE AFRONTA AO DIREITO DE MORADIA (...). A penhorabilidade do bem de família do fiador do contrato de locação, objeto do art. 3º, inc. VII, da Lei nº 8.009, de 23 de março de 1990, (...), não ofende o art. 6º da Constituição da República. (STF - AgR AI 584436/RJ - Rel. Min. Cezar Peluso - Publ. em 13-3-2009)
PENHORA - BEM DE FAMÍLIA - EXCEÇÃO. A impenhorabilidade resultante do art. 1º da Lei nº 8.009, de 1990, pode ser objeto de renúncia válida em situações excepcionais; prevalência do princípio da boa-fé objetiva. (STJ - REsp 554.622/RS – Publ. 1-2-2006)
NOTA PROMISSÓRIA - BEM DE FAMÍLIA - CLÁUSULA DE RENÚNCIA - VALIDADE DA PENHORA. A pretensão de nulidade da cláusula contratual de renúncia à impenhorabilidade de bem de família, no momento de inadimplência contratual, viola os princípios da obrigatoriedade e da boa-fé que norteiam os contratos. A Lei 8.009/90 não tem conteúdo de ordem pública, pois não se confunde com o direito social à moradia, de patamar constitucional, art. 6º da CF/88. (TJ-DFT - AI 20080020038446 – Publ. em 23-6-2008)
BEM DE FAMÍLIA - RENÚNCIA - POSSIBILIDADE - AUTONOMIA DA VONTADE LIVREMENTE MANIFESTADA. (...) Não se decreta a nulidade de negócio jurídico, firmado à luz do artigo 104, do CC, por meio do qual a embargante, expressamente, renunciou à impenhorabilidade de seu bem de família, dado em garantia ao pagamento de dívida contraída por seu marido. Embora se reconheça a proteção conferida à família pela Constituição da República, em seu artigo 226, exteriorizada, dentre outras formas, pela garantia do direito à moradia, regulada pela Lei n.º 8.009/90, não se pode admitir tamanha intervenção do Estado na vontade, livremente manifestada, do particular, o que equivaleria a dizer que os cidadãos não têm condições de gerir a sua própria pessoa e bens, culminando com a violação de um outro direito individual, constitucionalmente assegurado, que é o da propriedade (artigo 5º, XXII). (TJ-MG - Ap. Civ. 1.0079.05.196849-7/001 - Publ. em 4-7-2008)
BEM DE FAMÍLIA - NOMEAÇÃO À PENHORA - PENHORABILIDADE. Na IV Jornada de Direito Civil, evento promovido pelo Conselho da Justiça Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça em outubro de 2006, foi aprovado o Enunciado nº 362, prevendo a vedação do comportamento contraditório (venire contra factum proprium). Funda-se na proteção da confiança, tal como se extrai dos arts. 187 e 422 do Código Civil. Sobre o tema, na civilística nacional, destaca-se o trabalho de Anderson Schreiber (A proibição de comportamento contraditório. Tutela da confiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2ª Edição, 2007). A Teoria do venire contra factum proprium traz clara a ofensa à confiança, pois a característica principal desses casos é uma posição jurídica contrária àquela que vinha sendo praticada pelo agente. É exatamente o que ocorre in casu. O agravante nomeou bem amparado pela lei à penhora, ou seja, agiu de tal forma que acabou por criar uma aparência jurídica na qual o agravado confiou, portanto, não cabe ao agravante mudar o seu comportamento agindo contrariamente à expectativa que gerou no credor. Na ótica instrumental, decorre argumento para se penhorar o bem de família ofertado, qual seja, o de que a proteção constante da lei protetiva é passível de renúncia, pois está na parte disponível dos direitos pessoais. Em suma e em outras palavras, trata-se de um justo e legal exercício da autonomia privada a renúncia a impenhorabilidade do bem de família, o que ocorre quando o devedor o oferece à excussão. Observa-se, que a executada quando ofertou o bem em garantia renunciou ao benefício instituído pela lei, sendo incabível a sua pretensão de que o Poder Judiciário lhe assegure um direito do qual disponibilizou. (TJ-RJ - AI 2008.002.04911 – Publ. em 14-5-2008)
IMPENHORABILIDADE DO IMÓVEL RURAL E RENÚNCIA PELO DEVEDOR - RESSALVA DA MEAÇÃO. Descabe a invocação de impenhorabilidade do imóvel, inferior a um módulo rural, se foi indicado à penhora pelo próprio devedor, cônjuge da embargante, em acordo homologado. Renúncia a eventual direito. Cabe a ressalva da meação, pois o ajuste não teve anuência expressa da esposa, na entrega do bem em garantia, observando-se também que a execução decorre de sentença condenatória por acidente de trânsito, na qual não há como admitir-se tenha resultado a dívida em benefício da família. (TJ-RS - Ap. Cív. 70022628614 – Publ. em 6-6-2008)
EMBARGOS DE TERCEIRO - BEM DE FAMÍLIA. Penhora incidente, nos autos da execução, sobre imóvel dado em garantia hipotecária - Pretensão ao reconhecimento da sua impenhorabilidade, sob o argumento de tratar-se de dívida de terceiros - Impossibilidade - Bem dado em garantia real que implica renúncia ao benefício da impenhorabilidade - Artigo 3o, V, da Lei 8.009/90 - Penhora mantida - Recurso desprovido. (TJ-SP - Ap. Civ. 7219748500 - Julg. em 25-3-2009)
Em defesa da impenhorabilidade do bem de família, destacamos:
PENHORA - BEM DE FAMÍLIA - PROTEÇÃO LEGAL - RENÚNCIA INCABÍVEL. A proteção legal conferida ao bem de família pela Lei nº 8.009/90 não pode ser afastada por renúncia ao privilégio pelo devedor, constituindo princípio de ordem pública, prevalente sobre a vontade manifestada, que se tem por viciada ex vi legis. (STJ - REsp. 805.713/DF - Acórdão COAD 122045 – Publ. em 16-4-2007)
BEM DE FAMÍLIA OFERECIDO A PENHORA - RENÚNCIA INCABÍVEL. A indicação pelo próprio devedor de bem imóvel protegido pela lei 8.009/90, não significa a possibilidade de, por si, afastar a vedação legal via renúncia, tendo em conta a finalidade maior que deflui da mens legis que é, justamente, preservar a moradia e/ou residência própria e de sua família. O imóvel assim considerado (bem de família) não pode ser objeto de constrição por força do artigo primeiro da lei 8.009/90. (TJ-GO - AI 59.248-4/180 – Publ. em 4-3-2008)
BEM DE FAMÍLIA - NOMEAÇÃO À PENHORA PELO DEVEDOR. A impenhorabilidade do bem de família é absoluta e de ordem pública, posto que a Lei nº 8.009/90 foi concebida para garantir a entidade familiar. Não equivale a renúncia do bem de família a indicação deste a penhora pelo devedor, já que o beneficio não foi instituído a seu favor, mas de sua família. (TJ-GO - Ap. Cív. 70.269-7/188 - Publ. em 31-10-2003)
INDICAÇÃO DE BEM IMÓVEL A PENHORA PELO PRÓPRIO EXECUTADO - ALEGAÇÃO POSTERIOR DE SER O IMÓVEL BEM DE FAMÍLIA. A indicação pelo próprio devedor de bem protegido pela Lei 8.009/90 não significa, ante o caráter absoluto e social da impenhorabilidade do bem de família instituído pela citada Lei, renúncia à proteção. Para que seja declarada a impenhorabilidade do bem imóvel e, conseqüentemente, anulada a penhora que sobre ele recaiu, a parte interessada deve produzir prova incontroversa e sólida no sentido de que reside no imóvel com a família, e de que depende dele para subsistência da entidade familiar. (TJ-MG - AI 1.0701.96.005779-5/003 - Acórdão COAD 125900 – Publ. em 7-6-2008)
EMBARGOS À EXECUÇÃO - BEM DE FAMÍLIA - LEI Nº. 8.009/90 - NATUREZA JURÍDICA - IMPENHORABILIDADE ABSOLUTA - PROTEÇÃO AO DIREITO CONSTITUCIONAL DE MORADIA - IRRENUNCIABILIDADE. A Lei nº. 8.009/90 disciplina hipóteses de impenhorabilidade absoluta, com normas de caráter público, impositivo, constituindo direito irrenunciável. Portanto, em virtude da natureza jurídica desse diploma legal, ainda que o executado ofereça o bem à penhora, tal ato não pode ser considerado como renúncia ao direito previsto na lei em questão, para especial proteção dos membros da entidade familiar que utilizam o imóvel para moradia, podendo inclusive o próprio devedor embargar para alegar a nulidade da constrição. O fato de não haver averbado a construção da casa destinada a residência da família no registro do imóvel, não afasta a responsabilidade do credor pela constrição, já que é o responsável pela indicação do bem a penhora. (TJ-MG - AI 1.0261.04.030180-4/001 - Publ. em 27-9-2007)
IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA - RENÚNCIA - IMPOSSIBILIDADE. Por se tratar de questão de ordem pública, a impenhorabilidade do bem familiar não pode ser objeto de renúncia. Impenhorabilidade reconhecida. (TJ-RS - AI 70023519903 – Publ. em 31-3-2008)
BEM DE FAMÍLIA - RENÚNCIA AO BENEFICIO LEGAL. Estipulação em contrato firmado pelo companheiro da autora, que deu em garantia de dívida originada de cheques não honrados a parte ideal do imóvel utilizado como residência da família Invalidade, por se tratar de bem indivisível e não existir outorga dos demais membros do núcleo familiar. (TJ-SP - Ap. Cív 7218081100 – Julg. em 25-6-2008)
Ambas as correntes possuem fundamentação Partilhamos, porém, do entendimento na qual entende como justo e legal o exercício da autonomia privada a renúncia à impenhorabilidade do bem de família, em respeito à segurança jurídica e o princípio da boa-fé contratual.
No momento da formação do negócio jurídico, o contratante, de acordo com seus interesses ou necessidades para efetivação do negócio, renuncia ao benefício, oferecendo ao outro contratante a garantia para a negociação. No entanto, a desconstituição da cláusula, após a formação do contrato, e, principalmente, em momento de inadimplência contratual, viola os princípios da obrigatoriedade e da boa-fé. Assim, alegar a da invalidade da sua própria declaração de vontade, em momento crítico do contrato, é, de certo modo, agir de modo torpe.