Segundo Paul Van Zyl (REVISTA DA ANISTIA, 2009), a Justiça de Transição pode ser definida como “o esforço para a construção da paz sustentável após um período de conflito, violência em massa ou violação sistemática dos direitos humanos” e tem como fundamentos a busca pela verdade e memória, a reparação das vítimas, a justiça e a reforma das instituições.
No que pertine ao tema objeto do presente trabalho, justiça significa processar os perpetradores que cometeram graves violações aos direitos humanos durante determinado período da história de um país.
A justiça não pode ser vista apenas como retribuição, mas também como mecanismo para evitar novas violações e futuros delitos, consolar às vítimas e agregar ao processo de reformas das instituições estatais.
É inegável que durante a ditadura civil-militar brasileira houve violação sistemática de Direitos Humanos por parte dos agentes estatais contra os opositores políticos do regime. Nesse contexto entra em pauta a justiça de transição, o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 153 pelo Supremo e do Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos – CIDH.
Em 29 de abril de 2010, o plenário do STF julgou improcedente o pedido formulado na ADPF nº 153, proposta pelo Conselho Federal da Ordem da Ordem dos Advogados do Brasil – CFOAB em face da Lei Federal nº 6.683/79 – Lei de Anistia, que pugnava pela declaração de interpretação conforme à Constituição do artigo 1º, §1º, da referida lei, no sentido de excluir a aplicação da anistia aos crimes comuns praticados por agentes do Estado contra opositores políticos durante o regime autoritário.
Em 24 de novembro do mesmo, a CIDH proferiu sentença no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil, declarando, em breve resumo, que a Lei de Anistia carecia de efeitos jurídicos perante a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – CADH, devendo o Estado brasileiro não só reparar as vítimas como investigar, identificar e punir penalmente os responsáveis pelos fatos apurados no caso (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2010).
Confrontando as decisões proferidas pelo STF e pela CIDH, verifica-se que a justiça não é efetivada apenas na sera penal (punição criminal dos infratores), mas também na cível.
No entanto, a punição no campo do Direito Civil abarca apenas o Estado brasileiro ou também os infratores? Pessoas jurídicas podem ser punidas pela participação nas atividades ilícitas praticadas pelos agentes estatais no período da ditadura?
A Lei de Anistia não impede a investigação dos fatos ocorridos durante o período da ditadura civil-militar. Os agentes do Estado que praticaram tortura podem ser identificados e revelados , haja vista que a anistia opera efeitos apenas no campo penal e não cível, de acordo com o artigos 107, inciso II, do Código Penal, 67, inciso II, do Código de Processo Penal, 188, 927 e 935, do Código Civil. Nesse mesmo sentido, Swensson Junior (2007).
As ações cíveis sobre os atos praticados pelos agentes estatais durante a ditadura também não estão acobertados pela Lei de Anistia no entendimento sufragado pelo Supremo na ADPF 153.
No voto do Ministro Cezar Peluso constou, inclusive, a ressalva quanto às ações cíveis declaratórias, que não estariam prescritas. No voto de diversos Ministros consignou-se que a Lei de Anistia não impedia o direito à verdade, que pode ser exercitado por meio de ação de natureza cível.
Podemos vislumbrar três possibilidades de ações cíveis. Ação declaratória em face dos agentes que praticaram tortura. Ação condenatória ajuizada diretamente contra os torturadores. Ação declaratória em desfavor dos empresários que financiaram o regime ditatorial.
A ação declaratória, no caso, é proposta em face de uma relação jurídica, decorrente da prática de ato ilícito, tortura. Não se trata de declarar existente um fato, pedido juridicamente impossível, conforme Código de Processo Civil - CPC, mas uma relação jurídica de responsabilidade civil oriunda da prática de ato ilícito. O fundamento é o artigo 4º, do CPC. Vale ressaltar que a referida ação é imprescritível (DIDIER JR., 2008). O interesse de agir está presente na medida de em que há dúvida acerca da existência daquela relação jurídica, que integra a história de vida da vítima e que será esclarecida na ação judicial. Trata-se do direito à identidade, à memória e à informação sobre fatos de interesse geral e coletivo.
O mesmo se dá com a ação cível intentada contra os empresários que financiaram a ditadura. Só que, neste caso, a relação jurídica a ser declarada é a doação entre pessoas físicas e/ou jurídicas e o Estado. O interesse de agir aqui se manifesta em escala coletiva e difusa.
O caso mais complicado talvez seja a ação condenatória ajuizada exclusivamente contra aquele que praticou o ato de tortura. Primeiro pela questão da prescritibilidade. Segundo pela jurisprudência recente do STF (RE 327904, RE 470996 e AI 552366 AgR) e do STJ (REsp 976730) que negam o direito da vítima ajuizar a ação diretamente contra o agente público, pois caberia apenas ao Estado exercitar tal direito, por meio de ação regressiva.
Quanto à prescrição, há posicionamento, inclusive no STJ (REsp 1165986 e REsp 959904), de que a ação decorrente de agressões praticadas durante o regime autoritário é imprescritível, pois causada por ato político, que deixa a vítima inteiramente à mercê do Estado (fragilidade para propor a ação judicial). Não haveria possibilidade jurídica real de exercitar a pretensão.
Por certo as referidas questões não atingem as ações regressivas propostas pelo Estado contra os agentes estatais que, dolosamente, praticaram atos ilícitos que resultaram em dispêndio de dinheiro público para ressarcimento das vítimas, haja vista o disposto no artigo 37, §5º, da CF/88.
Como exemplo de ação cível declaratória em desfavor de agente do Estado, podemos citar a ação ordinária nº 0202853-19.2005.8.26.0100 (583.00.2005.202853), que tramitou perante a 23ª Vara Cível, do Foro Central Cível da Justiça Estadual de São Paulo, na qual foi julgado procedente o pedido formulado pelos autores “para declarar que entre eles e o réu Carlos Alberto Brilhante Ustra existe relação jurídica de responsabilidade civil, nascida da prática de ato ilícito, gerador de danos morais” (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO). Em sede recursal, a Primeira Câmara de Direito Privado negou provimento à apelação interposta pelo réu, assim como aos embargos de declaração contra o referido acórdão, estando o processo aguardando admissão dos recursos especial e extraordinário interpostos.
Já ação civil pública nº 2008.61.00.011414-5, que tramitou na 8ª Vara Federal Cível de São Paulo, não teve a mesma sorte, haja vista a sua extinção, sem resolução do mérito, sentença que foi objeto de apelação interposta pelo MPF e que se encontra pendente de julgamento no Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Referida ação judicial tinha como pedido, dentre vários outros, a condenação de Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel no reembolso à União dos custos das indenizações, pagas na forma da Lei Federal nº 9.140/95 (lei de mortos e desaparecidos políticos), às famílias das 64 vítimas do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna - DOI-CODI do II Exército, em São Paulo, no período de 1970 a 1976 (CONSULTOR JURÍDICO, 2010).
Diante de todo o exposto, verifica-se que a Justiça de Transição pode processar os perpetradores e todos aqueles que participaram de graves violações aos direitos humanos também na seara cível, seja na forma de sentenças declaratórias ou condenatórias, inclusive em face de pessoas jurídicas que tenham financiado a prática de atividades ilícitas. O fundamento da justiça também pode ser alcançado no campo do Direito Civil, e não apenas no Penal.
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