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Racismo: reflexões sobre as restrições constitucionais

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Agenda 30/01/2014 às 14:15

Capítulo IV – A regulamentação do art. 5º, XLII pela Lei n. 7.716/89.

1. Considerações preliminares.

Atualmente, no ordenamento brasileiro, o principal diploma penal acerca das práticas discriminatórias é a lei n. 7.716/1989, conhecida como Lei Caó. Esta normativa veio definir e regulamentar o crime de prática de racismo para fins de aplicação da disposição constitucional do art. 5º, inciso XLII.

O projeto de lei n. 668/1988, cuja tramitação completa ocorreu em pouco mais de um ano, deu origem à lei. O projeto foi de autoria do então deputado Carlos Alberto Caó, razão pela qual a referente legislação também é conhecida por seu sobrenome.

Na justificativa do PL afirmava-se que:

O negro deixou, sem dúvida, de ser escravo, mas não conquistou a cidadania. Ainda não tem acesso aos diferentes planos da vida econômica e política. É mais do que evidente que as discriminações raciais marcam a sociedade, o Estado e as relações econômicas em nosso País. Passados cem anos da Lei Áurea, esta é a situação real. [45]

À luz das razões apresentadas por Carlos Alberto Caó, depreende-se que o objetivo primário por trás da elaboração do mandando constitucional e de sua lei regulamentadora era o combate à histórica desigualdade social, suportada especialmente pela população brasileira negra. De maneira que o a principal forma de racismo a ser combatida era aquela dirigido contra à raça negra.

Não obstante esse relevante aspecto da mens legislatoris, a aplicabilidade da lei não se reduz ao combate do racismo contra os negros, as regras jurídicas incidem sobre o preconceito e a discriminação contra qualquer raça.

O principal efeito da lei Caó foi suprir a lacuna decorrente da classificação das condutas discriminatórias previstas na lei Afonso Arinos como contravenções penais e a exigência constitucional de criminalização da prática do racismo.

Contudo, o regramento trazido pela lei n. 7.716/89 não diferiu em muito da anterior, uma vez que todos os preceitos primários dos tipos penais da Afonso Arinos foram reproduzidos, com certas alterações pontuais. Numa análise objetiva, somente os arts. 12 e 14 na redação original da Lei Caó previram situações originais em relação à lei n. 7.437/85.

2.  Os vetos ao projeto de lei.

O PL n. 668/1988 não foi sancionado em sua inteireza pelo presidente à época de sua aprovação pelos parlamentares brasileiros. Ao todo, foram apostos quatro vetos presidenciais, sob a justificativa de contrariedade ao interesse público, que recaíram sobre os artigos 2º, 15, 17 e 19, cujas redações eram as seguintes:

Art. 2º Os crimes definidos nesta lei serão imprescritíveis, inafiançáveis e insuscetíveis de suspensão condicional da pena.

Art. 15. Discriminar alguém por razões econômicas, sociais, políticas ou religiosas, em local de trabalho, em público, ou em reuniões sociais.

Pena: reclusão, de dois a quatro anos.

§1º Incorre nas mesmas penas quem fizer propaganda de preconceito de raça ou cor.

§2º Sendo o ato discriminatório veiculado ou publicado pela imprensa, ou qualquer veículo de comunicação social, a pena é agravada de um terço, assegurado ao discriminada o mesmo espaço e tempo para defesa e esclarecimentos que se tornem necessários, independentemente da ação indenizatória cabível.

Art. 17. Em caso de reincidência, a decisão condenatória imporá a pena acessória de cassação da autorização de funcionamento do estabelecimento, se entidade privada.

Art. 19. O processo judicial para a apuração dos crimes definidos na presente lei terão rito sumário, não podendo ultrapassar o prazo de sessenta dias para a prolação da sentença.

O veto sobre o artigo 2º do diploma legal foi dirigido à proibição pretendida pelo mesmo no que tange à concessão de suspensão condicional da pena (o sursis) àqueles sujeitos dos crimes coibidos pela lei. No mais, o dispositivo replicava a Constituição, afirmando serem os crimes imprescritíveis e inafiançáveis.

Em que pese o veto do art. 2º, a inexistência de referência na lei às restrições constitucionais impostas ao crime de prática de racismo, as mesmas são autoaplicáveis. Com isso, em pleno vigor estão a imprescritibilidade e a inafiançabilidade previstas constitucionalmente.

O art. 15 dentro da redação original do PL 668/88 era de caráter singular, uma vez que determinava a criminalização da discriminação por razões econômicas, sociais, políticas ou religiosas – fugindo assim do critério racial e de cor.

Por um lado, a supressão desse artigo baseou-se na avaliação presidencial de que seus termos seriam indevidamente genéricos para a correta aplicação da lei penal. A outra razão apresentada dizia respeito à causa de aumento na hipótese da discriminação em apreço ser feita por veículo de comunicação social. O entendimento da presidência foi de que essa possibilidade era melhor tratada pela Lei de Imprensa, considerada vigente à época.

Em relação ao art. 17 do PL, a mensagem de veto afirmava que a pretensão da norma era de fazer ressurgir a figura da pena acessória. No entanto, essa espécie de pena não era mais contemplada pela nova parte geral do Código Penal.

Por fim, o veto ao art. 19 teve motivação na aplicabilidade de procedimento sumário apenas aos delitos punidos com detenção ou às contravenções penais. De modo que deveria ser afastado tal rito para os crimes do PL, que eram apenados com reclusão.

3.  Aspectos gerais da lei n. 7.716/89.

Inicialmente, destaca-se que o texto da lei n. 7.716/89 foi modificado em cinco oportunidades, pelas leis n. 8.081/90, n. 8.882/94, n. 9.459/97 e n. 12.288/10 (Estatuto da Igualdade Racial) e n. 12.735/12. Todas trouxeram importantes alterações, sempre no sentido de endurecimento das diposições legais.

Pela redação atual, dos vinte e dois artigos constantes do diploma legislativo, treze deles contém criminalização de condutas. No entanto, para efeito de análise da lei n. 7.716/89, ainda necessitam de esclarecimentos os sentidos referentes à religião e procedência nacional.

Neste ponto, cumpre notar que a redação do art. 1º da lei n. 7.716/89, no qual se prevê genericamente quais os tipos de preconceito e discriminação que são delitos, foi essencialmente alterada pela lei n. 9.459/97, que inclui os termos etnia, religião e procedência nacional aos já existentes de raça e cor.

O vocábulo religião indica, geralmente, uma crença na existência de um deus ou vários deuses imbuídos de forças sobre-humanas, que encontra exteriorização através de doutrinas e rituais. Apesar de uma grande diversidade, as religiões mais proeminentes no mundo são o judaísmo, o islamismo e o cristianismo.

Para fins de aplicação da lei penal, todas as pessoas indevidamente diferenciadas por conta de sua crença religiosa, seja qual ela for, fazem jus à proteção. No entanto, a depender da noção adotada sobre o termo religião, a tutela penal pode ser estendida ou não a determinados grupos, como, por exemplo, os ateus.

Assim caberia indagar se impedir o acesso de ateu, por conta de tal convicção, a um clube social aberto ao público, por exemplo, caracterizaria a discriminação por religião prevista no art. 9º da Lei n. 7.716/89, ou outro delito.

A resposta à pergunta seria não. Tratar-se-ia de conduta atípica. Isto porque, considerando-se o ateu como aquele que não crê em Deus ou em deuses e, por vez, religião como crença necessariamente vinculada à existência de ente ou entes superiores, nos termos da conceituação adotada acima, o ateísmo enquadrar-se-ia como espécie de doutrina filosófica não amparada pela Lei n. 7.716/89.

A questão, contudo, é tormentosa, pois dependendo do conceito de religião adotado, o ateísmo pode ser enquadrado como tal, o que faria da conduta – inequivocadamente ilegal (sob a ótica cível) – também criminosa. [46]

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Em relação à procedência nacional, a doutrina pátria firmou-se no sentido de a mesma além de fazer referência à nacionalidade do sujeito passivo, ser também relativa à naturalidade dentro do próprio território brasileiro. Sendo, a naturalidade entendida não somente como a unidade federativa de onde o sujeito é originário, mas também região do país.

O art. 1º, com redação dada pela lei n. 9.459/97, define os motivos exigidos para o enquadramento em todos os tipos penais da lei, que é a “discriminação ou preconceito de taça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Portanto, todos os outros artigos criminalizantes da lei devem submeter-se a tal fim enquadrarem-se na mesma, ainda que cada tipo, por si só, não tenha isso expressamente previsto.

A fórmula de elaboração legislativa, ou seja, a estrutura formal da lei em vigor, embora não seja de todo original, não é usual, já que os tipos penais previstos nos arts. 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10, 11, 12, 13 e 14 guardam relação de subordinação à previsão do art. 1º da mesma lei, que lhes limita a amplitude, criando uma “adequação típica mediata limitativa por subordinação intrínseca”.

Assim, não será crime, exemplificadamente, “negar ou obstar emprego em empresa privada” por si só (art. 4º da lei), mas apenas se a hipótese de incidência típica coexistir com os elementos do art. 1º da “Lei Antidiscriminação”, ou seja, se tal fato derivar de preconceito ou discriminação de raça, cor, etnia, religião, ou por procedência nacional. [47]

Apesar da estrutura de subordinação apresentada, em diversos artigos a motivação requerida para a tipificação é repetida. Em um caso particular, no entanto, a lei em apreço ao ser alterada em seu art. 4º, pelo Estatuto da Igualdade Racial, teve rompida essa uniformidade na punição criminal.

A um, porque o parágrafo 1º desse dispositivo, que passou a punir determinados comportamentos em empresas privadas em relação aos seus empregados, deixou de proibi-los quando motivados pelo preconceito ou discriminação religiosa.

A dois porque, em seguida, o parágrafo 2º - que trata de exigência injustificada de aspectos de aparência próprios de raça ou etnia em anúncios ou qualquer outra forma de recrutamento de trabalhadores, - também foi afastada a incriminação dos comportamentos excludentes com fulcro na cor, procedência nacional ou religião, que, a princípio, também empolgariam proteção da lei n. 7.716/89.

Então, quem, motivado por preconceito, em atitude discriminatória, negar emprego em empresa privada a alguém por pertencer tal candidato a determinada religião, comete o crime do art. 4º, caput, da Lei n. 7.716/89, mas quem, dentro da mesma empresa, pelo mesmo motivo, “negar promoção” ou “deixar de oferecer equipamentos adequados”, não comete crime algum.[48]

Todas as incriminações da lei em análise tem como elemento subjetivo o dolo. Já o principal bem jurídico tutelado pela lei, segundo Christiano Jorge dos Santos, é o direito à igualdade, constitucionalmente assegurado a todos no Brasil (art. 5º, caput da CRFB).

Originalmente, os principais núcleos verbais da lei eram todos de caráter negativo como impedir, obstar, negar e recusar – que apresentam sentidos muito próximos. Contudo, modificações posteriores trouxeram outros verbos como deixar de fornecer, sendo alguns representativos de condutas positivas, como proporcionar, praticar, induzir, incitar e exigir. Os sentidos atribuídos a eles são os seguintes [49]:

· Impedir: Impossibilitar a execução ou o prosseguimento de, interromper, obstruir, tornar impraticável, não permitir.

· Obstar: Causar embaraço ou impedimento (a).

· Negar: Recusar.

· Recusar: Não aceitar, rejeitar, renunciar, opor-se.

· Deixar: Renunciar a.

· Fornecer: Abastecer de, produzir, proporcionar o necessário a.

· Proporcionar: Dar, oferecer.

· Praticar: Fazer, realizar, executar.

· Induzir: Causar, inspirar, instigar.

· Incitar: Impelir, suscitar.

· Exigir: Ordenar, determinar.

4. Do cumprimento das penas.

Todas as condutas previstas, à exceção do art. 4º, §2º, são punidas com a pena de reclusão, combinada ou não com a de multa. A quantidade das penas privativas de liberdade varia entre o mínimo de um ano e o máximo de cinco sendo que as mais brandas são quantificadas de um ano a três anos.

No que tange à pena cominada às condutas prevista no art. 4º, §2º, que é de multa e prestação de serviços comunitários, ela pode ser tida como inconstitucional porque, conforme já visto, a CRFB exige a aplicação da pena de reclusão para crimes de prática de racismo.

Em decorrência desses parâmetros, nenhuma das condutas pode ser caracterizada como infração de menor potencial ofensivo, sob a competência dos Juizados Especiais Criminais. O que, por sua vez, obsta a aplicabilidade da transação penal.

Noutro giro, é possível a substituição da eventual pena privativa de liberdade aplicada por restritiva de direitos, em conformidade com os parâmetros exigidos para tal pelos incisos I a II do art. 44 do Código Penal. Igualmente, possível é a suspensão condicional da pena, em condenações não superiores a dois anos, nos termos dos arts. 77 e 78 do CP.

Além disso, é cabível a suspensão condicional do processo, prevista no art. 89 da Lei 9.099/95, nos crimes com pena mínima de um ano. Com isso, caso seja aceita a suspensão e, ao final, devidamente cumpridos seus termos, o acusado escapa à aplicação da pena de reclusão. Outrossim, o livramento condicional é aplicável nos limites do art. 83 do CP.

5. Os tipos penais da lei n. 7.716/89.

Antes de adentrarmos nos detalhes referentes aos artigos que compõem a lei n. 7.716, afigura-se importante atentar para o caráter penal dos mesmos. Isso implica reconhecer que certos princípios caros ao direito penal devem ser devidamente respeitados quando da interpretação legal.

De tal modo, impõem-se a observância da reserva legal, da taxatividade e da vedação ao emprego da analogia. Sendo assim, o entendimento de um tipo penal deve ser feito de forma restritiva, buscando-se sempre uma fiel correspondência entre a conduta do indivíduo e os elementos descritos no tipo.

[...] a lei penal deve ser precisa, uma vez que um fato só será considerado criminoso se houver perfeita correspondência entre ele e a norma que o descreve. A lei penal delimita uma conduta lesiva, apta a pôr em perigo um bem jurídico relevante, e prescreve-lhe uma consequência punitiva. Ao fazê-lo, não permite que o tratamento punitivo cominado possa ser estendido a uma conduta que se mostre aproximada ou assemelhada. [50] (grifos nossos)

5.1.   Artigos 3º, 4º e 13.

Art. 3º Impedir ou obstar o acesso de alguém, devidamente habilitado, a qualquer cargo da Administração Direta ou Indireta, bem como das concessionárias de serviços públicos.

Parágrafo único.  Incorre na mesma pena quem, por motivo de discriminação de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, obstar a promoção funcional.

Pena: reclusão de dois a cinco anos.

Art. 4º Negar ou obstar emprego em empresa privada. 

§ 1º  Incorre na mesma pena quem, por motivo de discriminação de raça ou de cor ou práticas resultantes do preconceito de descendência ou origem nacional ou étnica: 

I - deixar de conceder os equipamentos necessários ao empregado em igualdade de condições com os demais trabalhadores; 

II - impedir a ascensão funcional do empregado ou obstar outra forma de benefício profissional

III - proporcionar ao empregado tratamento diferenciado no ambiente de trabalho, especialmente quanto ao salário. 

§ 2º  Ficará sujeito às penas de multa e de prestação de serviços à comunidade, incluindo atividades de promoção da igualdade racial, quem, em anúncios ou qualquer outra forma de recrutamento de trabalhadores, exigir aspectos de aparência próprios de raça ou etnia para emprego cujas atividades não justifiquem essas exigências.

Pena: reclusão de dois a cinco anos.

Art. 13. Impedir ou obstar o acesso de alguém ao serviço em qualquer ramo das Forças Armadas.

Pena: reclusão de dois a quatro anos.

Todos esses artigos dizem respeito à discriminação relacionada ao acesso e permanência no mercado de trabalho. Por um lado, proíbe-se a seleção da força de trabalho com base em critérios preconceituosos. Pelo outro, igualmente é vedado tratamento discriminatório no ambiente laborativo quando uma pessoa já se encontra trabalhando.

O artigo 3º cuida especificamente das pessoas que laboram na Administração Pública, ou seja, prestam serviços para entes públicos ou equiparados a tais. Tem relevo o fato de que a imprecisão da redação do artigo empolga alguns problemas interpretativos.

Primeiramente, a utilização da expressão “cargo” somente pode ser entendida num contexto dissociado de seu sentido técnico no que tange ao direito administrativo. O caráter leigo é evidenciado pela conexão entre cargo e concessionárias de serviço público.

Ocorre que, as concessionárias são normalmente empresas privadas nas quais os seus funcionários estão sujeitos à Consolidação das Leis do Trabalho, ocupando, portanto, um emprego público e não um cargo. Por isso, a única forma de emprestar ao dispositivo um sentido unívoco, é entender pelo emprego informal da expressão “cargo”.

Caso fosse adotado o conceito técnico-jurídico de cargo, por óbvio, face ao princípio da reserva legal, o preconceito ou discriminação para impedir ou obstar o emprego público na administração direta ou indireta, seria conduta atípica, dependendo do caso, absoluta ou relativamente (restaria o crime subsidiário do art. 20, caput, apenas). [51]

Ademais, também é questionável a escolha legislativa em não incluir as empresas permissionárias no tipo. Ressalte-se que não existem grandes diferenças entre esse tipo de prestadora de serviço público e as concessionárias que justifiquem a exclusão daquelas.

Além disso, inexiste qualquer previsão de punição para a conduta discriminatória que venha a ocorrer em preenchimento ou promoção em função nos outros poderes como o Legislativo e o Judiciário.

Como complemento no que se refere ao acesso dos cidadãos ao trabalho dentro de órgãos estatais, o artigo 13 busca coibir a exclusão preconceituosa de pessoas em relação ao alistamento militar.

O artigo 4º faz um contraponto em relação ao serviço público, versando sobre o trabalho desenvolvido dentro de empresas privadas. Além de reprimir a discriminação na contratação ou seleção e na efetivação de promoções funcionais, diversas outras condutas discriminatórias são objeto de reprovação.

No curso da relação de emprego privado não permite a lei, com a redação modificada pelo Estatuto da Igualdade Racial, que o empregador, ou quem faça as suas vezes, deixe de fornecer os equipamentos necessários ou trate diferentemente quaisquer trabalhadores por motivações preconceituosas (art. 4º, §1º, I e III).

Derradeiramente, observa-se que a quantidade de pena nos artigos 3º e 4º é idêntica, ou seja, de dois a cinco anos de reclusão. Não obstante a congruência inicial dessas disposições, a sanção referente às Forças Armadas é menor do que as outras duas citadas, sendo de dois a quatro anos apenas.

5.2. Os artigos 5º e 7º ao 12.

Art. 5º Recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador.

Pena: reclusão de um a três anos.

Art. 7º Impedir o acesso ou recusar hospedagem em hotel, pensão, estalagem, ou qualquer estabelecimento similar.

Pena: reclusão de três a cinco anos.

Art. 8º Impedir o acesso ou recusar atendimento em restaurantes, bares, confeitarias, ou locais semelhantes abertos ao público.

Pena: reclusão de um a três anos.

Art. 9º Impedir o acesso ou recusar atendimento em estabelecimentos esportivos, casas de diversões, ou clubes sociais abertos ao público.

Pena: reclusão de um a três anos.

Art. 10. Impedir o acesso ou recusar atendimento em salões de cabelereiros, barbearias, termas ou casas de massagem ou estabelecimento com as mesmas finalidades.

Pena: reclusão de um a três anos.

Art. 11. Impedir o acesso às entradas sociais em edifícios públicos ou residenciais e elevadores ou escada de acesso aos mesmos:

Pena: reclusão de um a três anos.

Art. 12. Impedir o acesso ou uso de transportes públicos, como aviões, navios barcas, barcos, ônibus, trens, metrô ou qualquer outro meio de transporte concedido.

Pena: reclusão de um a três anos.

Esses sete lidam casuísticamente com diferentes tipos de bloqueio indevidos ao direito de ir e vir das pessoas, assim como o acesso a locais e serviços públicos ou privados. Em consonância com o espírito da lei, a criminalização incide sobre os impedimentos baseados em preconceito, logo não será toda negativa de acesso ou atendimento que caracterizará comportamento criminoso.

5.3. O artigo 6º:

Art. 6º Recusar, negar ou impedir a inscrição ou ingresso de aluno em estabelecimento de ensino público ou privado de qualquer grau.

Pena: reclusão de três a cinco anos.

Parágrafo único. Se o crime for praticado contra menor de dezoito anos a pena é agravada de 1/3 (um terço).

O artigo 6º volta-se contra a discriminação que venha a ocorrer em estabelecimentos de ensino, sejam eles públicos ou privados. O objetivo da norma é impedir que se obste o acesso dos indivíduos à educação por motivos preconceituosos.

Nesse sentido não pode ser negada a inscrição de pessoas como alunos dessas instituições e, tampouco, podem esses indivíduos uma vez inscritos terem a entrada barrada nas dependências das mesmas. E, caso a conduta tenha como sujeito passivo criança ou adolescente, incide o aumento de pena em 1/3 (um terço).

5.4. O artigo 14:

Art. 14. Impedir ou obstar, por qualquer meio ou forma, o casamento ou convivência familiar e social.

Pena: reclusão de dois a quatro anos.

O art. 14 é de cunho mais privado em comparação com os outros analisados até o momento. Ocorre que, o Estado pode intervir para punir as pessoas por comportamentos preconceituosos ocorridos em circunstâncias privadas.

O casamento de que trata o art. 14 é aquele casamento civil assim como o religioso com efeitos civis, pois que equiparados. No entanto, o impedimento de casamento religioso sem efeitos civis ou união estável pode ser inserido no embaraço oposto à convivência familiar.

Há ainda a punição direcionada pela construção da tipicidade em torno do impedimento ou obstáculo à convivência familiar de pessoas casadas entre si ou ligadas por união estável, ou mesmo de outros entes que tenham elos de parentesco, seja consanguíneo ou por afinidade. [52]

Neste ponto, cumpre registrar que com o julgamento da ADPF n. 132, em 2011, pelo Supremo Tribunal Federal, a determinação do que pode ser considerado juridicamente como uma entidade familiar adentrou num novo patamar.

Na ementa do citado julgado deixa-se claro a larga abrangência jurídica do termo família: “Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico pouco importando se formal ou informalmente constituída...”. [53]

Em decorrência disso, a convivência familiar para fins da lei n. 7.716/89 aceita uma interpretação ampla. O intérprete não precisa ficar restrito a um conceito tradicional e excludente de família quando instado a decidir pela pertinência da tutela penal no caso concreto.

De qualquer forma, a lei se refere ainda à convivência social que “significa qualquer forma de contato mais próximo, fora do âmbito familiar” [54] e pode, caso necessário, abarcar especificamente as ocorrências nas quais a discriminação não se dirija inequivocamente ao impedimento da convivência familiar, mas alguma forma de contato mais próximo.

5.5. O artigo 20:

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Pena: reclusão de um a três anos e multa.

§ 1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo.

Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.

§ 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza:

Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.

§ 3º No caso do parágrafo anterior, o juiz poderá determinar, ouvido o Ministério Público ou a pedido deste, ainda antes do inquérito policial, sob pena de desobediência:

I - o recolhimento imediato ou a busca e apreensão dos exemplares do material respectivo;

II - a cessação das respectivas transmissões radiofônicas ou televisivas.

III - a interdição das respectivas mensagens ou páginas de informação na rede mundial de computadores.

§ 4º Na hipótese do § 2º, constitui efeito da condenação, após o trânsito em julgado da decisão, a destruição do material apreendido.

A atual redação do artigo é resultado da lei n. 9.459/97, responsável igualmente pela adição ao CP do crime de injúria qualificada no art. 140, §3º, que será tratado posteriormente. A referida lei reestruturou amplamente o dispositivo que havia sido originalmente incluído pela lei n. 8.081/90 e que já tinha sofrido alteração pela lei n. 8.882/94.

No texto do caput artigo a partir da lei de 1990 se incriminava a prática, o induzimento e a instigação à discriminação somente quando feita por meio de meios de comunicação. Atualmente, a utilização midiática passou a ser uma forma qualificada de execução do crime.

O art. 20 é considerado como um ‘soldado de reserva’ uma vez que sua estrutura objetiva é ampla, especialmente pelo emprego do verbo praticar. Desse modo, caso a conduta do agente não possa ser amoldada com perfeição a algumas das outras ínsitas nos outros dispositivos da lei, o art. 20 pode ser utilizado como tipificação alternativa.

Com esse dispositivo incrimina-se a prática, a indução e o incitamento preconceito ou discriminação por raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. A aludida amplitude da redação legal é criticada por alguns, até mesmo no que tange à sua constitucionalidade:

De qualquer sorte, embora tenhamos dúvidas acerca da constitucionalidade do disposto em comento, por ofensa ao princípio da taxatividade e, portanto, ao princípio da legalidade, diante da imprecisão demasiada na descrição legal da conduta incriminada, certo é que o mesmo vem sendo utilizado por nossos tribunais, inclusive STF e STJ. [55]

Contudo, não são todos que concordam com essa avaliação, destacando-se os argumentos trazidos pelo Observatório Negro, entidade negra de direitos humanos. Para esse grupo, a sustentação da tese de prática de racismo como uma figura vaga, é fruto do costume brasileiro de negar a existência de desigualdades raciais.

Queremos dizer que, até então, o que fazem os penalistas brasileiros é tão somente interpretar a Lei 7.716/89 sob os costumes racistas nacionais que naturalizam a degradação da Dignidade Humana do sujeito negro de direitos, tornando meros “adjetivos” pessoais as utilizações discriminatórias de termos como “negro safado” e o frequente hábito da desumanização da pessoa negra, por ofensas como “macaco”, “urubu”.[56]

As condutas às quais faz referência o art. 20 da lei n. 7.716/89 inovou em relação aos tipos desse diploma legislativo. Ocorre que os outros dispositivos incriminam condutas que de alguma forma impedem a liberdade de ir e vir ou de educação, a convivência social, o acesso a locais, trabalhos e eventuais promoções, ou equipamentos.

Em certa medida, o art. 20 busca atingir a própria formação de pensamentos preconceituosos na sociedade brasileira. Ele seria uma barreira que tenta evitar que se chegue à uma cultura propícia para a ocorrência das situações referentes àquelas outras condutas citadas.

Ademais, essa norma quebrou o paradigma de que os crimes de racismo sempre são condutas que impedem diretamente a pessoa discriminada de conseguir algo, seja o ingresso em um ambiente, a obtenção de um emprego ou a fruição de um serviço.

6. A proteção contra a discriminação no Código Penal

O Código Penal em sua redação original não apresentava qualquer incriminação da prática de preconceito ou discriminação, seja de cunho racial ou não. Este cenário foi alterado pela elaboração das leis n. 9.459/97, n. 10.741/03 e n. 10.803/03.

A lei n. 9.459/97 incluiu o parágrafo 3º no art. 140 do Código Penal, que trata de uma das espécies de crime contra a honra: a injúria. O novo parágrafo criou um novo tipo de injúria qualificada, consistente na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião ou origem.

Em 2003, o alcance da injúria qualificada foi alargado pela lei n. 10.741/03 para a inclusão da expressão “ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência” – de modo a compatibilizar o ordenamento penal à proteção do Estado às pessoas idosas e aos deficientes.

Também em 2003, foi promulgada a lei n. 10.803/03 que alterou o artigo 149 do CP, que cuida do crime de redução à condição análoga à de escravo. A nova composição do tipo penal foi necessária para abarcar expressamente novos formatos dados à escravidão nos últimos anos, especialmente, a decorrente de dívida.

A alteração trazida pela lei incluiu ainda uma causa de aumento pela metade da pena para o referido crime quando a redução à condição de escravo for realizada por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.

Sobre a autora
Letícia França Corrêa

Bacharel em Direito pela Puc-Rio Ex-bolsista CNPQ em direito constitucional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORRÊA, Letícia França. Racismo: reflexões sobre as restrições constitucionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3865, 30 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26568. Acesso em: 15 nov. 2024.

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