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Racismo: reflexões sobre as restrições constitucionais

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30/01/2014 às 14:15
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Capítulo V: O crime de redução à condição análoga à de escravo.

1. Da escravidão ao trabalho como um valor social.

Durante muito tempo na história humana a escravidão foi adotada por diversos povos, tendo seu ponto alto ocorrido nos tempos mais recentes durante o colonialismo de origem eminentemente europeia. Somente com a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU é que o repúdio a escravidão tomou corpo na sociedade internacional.

Ainda que a escravidão nos moldes tradicionais seja mais rara, práticas de trabalho forçado ainda permanecem ao redor do mundo. Em função disso, a ONU e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) editaram normas específicas sobre o assunto, com destaque para a Convenção Suplementar sobre práticas análogas à escravatura e as Convenções n. 29 e 105 – todas ratificadas pelo Brasil.

Com efeito, o trabalho em condições análogas à de escravo é espécie do gênero “trabalho forçado”, cujo conceito é mais amplo, pois envolve desde situações decorrentes do trabalho de prisioneiros de guerra, até a utilização do trabalho como forma de castigo (pena), conforme observamos na Convenção nº 29 da OIT.

O ordenamento jurídico brasileiro vai ao encontro desse sistema de proteção contra a exploração laboral, visto ser o trabalho tanto um valor social, - fundamento da República Federativa do Brasil (Art. 1º, IV, CRFB) -, quanto um direito social (Art. 6º, caput, CRFB). Ao redor dele, gravitam diversos direitos e garantias dos trabalhadores.

Destacam-se, especialmente, o recebimento de um salário mínimo capaz de atender às necessidades básicas do trabalhador e de sua família, duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias, gozo de repouso semanal e férias anuais remunerados e redução de riscos por meio de normas de saúde, higiene e segurança.

Esse sistema de proteção é extensível a qualquer tipo de trabalhador, seja ele urbano ou rural. E a implementação dos direitos sociais constitucionalmente previstos se dá através de diversas legislações ordinárias dirigidas especificamente para tal fim – sendo a mais conhecida, a CLT.

Mas, ao largo das conquistas legais dos trabalhadores, ainda persistem, no Brasil, - em especial, no campo - práticas reminiscentes dos tempos da escravidão. Isso porque, alguns indivíduos são submetidos a atividades laborativas em circunstâncias desumanas, desprovidas de qualquer preocupação com a dignidade dos trabalhadores.

Atualmente, o combate do tema, sob a ótica penal, ocorre por meio do art. 149 do Código Penal, cujo nomen juris é “redução à condição análoga à de escravo”, também conhecido como crime de plágio.

 A redação atual é fruto da alteração realizada com base na edição da lei n. 10.803/03. A mesma provocou extensa reestruturação do tipo penal, estabelecendo-se, pormenorizadamente, quais as condutas ensejadoras de redução à condição análoga à de escravo. As penas cominadas, entretanto, mantiveram-se inalteradas.

A sanção da nova legislação ocorreu na esteira de um acordo celebrado, em setembro de 2003, pelo Brasil no bojo do caso n. 11.289 (Caso “José Pereira”) que tramitava perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Na ocasião o Brasil era acusado de violar

suas obrigações, à luz da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e da Declaração, com relação às pessoas sob sua jurisdição que sofrem condições análogas à escravidão impostas por outras pessoas, e ao permitir a persistência dessa prática por omissão ou cumplicidade.  Especificamente ao caso do adolescente José Pereira, vítima dessa prática na  Fazenda Espirito Santo, localizada no  sul do Estado do Pará. [57]

Dentre diversos compromissos assumidos pelo Estado brasileiro nessa ocasião foi estabelecida a necessidade de ocorrerem mudanças legislativas com o fito de coibir eficazmente o trabalho escravo, nos termos do Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo.

Uma das propostas inclusas no Plano era a classificação do crime de redução como crime hediondo, o que até o momento não foi feito. Entretanto, a Comissão de Juristas para a elaboração de anteprojeto de Código Penal, criada em 2011, apresentou um documento no qual prestigia referida classificação.

Evidenciando a pertinência do tema estão os dados apresentados pela Comissão Pastoral da Terra - entidade voltada para o registro e denúncia de eventos que envolvam conflitos ocorridos no meio rural brasileiro.

No relatório “Conflitos no Campo Brasil 2012”, a CPT indicou a ocorrência de 168 (cento de sessenta e oito) casos envolvendo trabalho escravo. Desde 2003, um número considerável de situações desse tipo vem sendo registradas, com pouca alteração na quantidade apurada.

De 2003 até hoje foram identificados dois mil casos no país e resgatados mais de 36 mil trabalhadores, entre os quais 10.010 canavieiros (66 casos). Neste período, a Comissão Pastoral da Terra já registrou denúncias envolvendo mais de 56 mil trabalhadores “aprisionados por promessas”, obrigados a trabalhar em fazendas, carvoarias e canaviais, tratados pior que animais e impedidos de romper a relação com o empregador.[58] (grifos nossos)

Frise-se que além do enfrentamento penal sobre o assunto, alguns projetos legislativos já tramitaram no Congresso Nacional com o fim de prever outros tipos de punição para os empregadores que venham a se utilizar de trabalhadores submetidos à condição análoga à de escravo, como, por exemplo, a desapropriação de terras.

2.  Análise do tipo penal do art. 149 do Código Penal.

O artigo encontra-se localizado sob o Capítulo VI (Dos crimes contra a liberdade individual), na Seção I (Dos crimes contra a liberdade pessoal), de modo que o bem jurídico tutelado é a liberdade de ir e vir, ainda que o tema tratado igualmente encerre proximidade com a proteção à organização do trabalho.

Todavia, subsidiariamente, caso não venha a restar plenamente configurado o delito de plágio é possível, em tese, a tipificação por alguns dos delitos previstos no Título IV (Dos crimes contra a organização do trabalho), como os arts. 197, 198, 199, 203 e 207. Ressalte-se que o principal critério de distinção entre o tipo da redução para os tipos citados está na restrição à liberdade de locomoção.

Para fins de tutela penal, entende-se como trabalhador em condição análoga à escravo aquele submetido à (i) trabalhos forçados, (ii) jornada exaustiva, (iii) condições degradantes de trabalho, (iv) restrição, por qualquer meio, de locomoção em razão de dívida contraída. 

Neste ponto, cabe ressaltar que, muitas vezes, os lesados pela conduta criminosa do empregador encontram-se submetidos a todas essas hipóteses simultaneamente - ainda que se trate tecnicamente de um tipo penal misto alternativo.

Igualmente entendeu por bem o legislador punir aqueles empregadores que cerceiam o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador ou mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, devendo ambas as condutas serem animadas pelo fim de reter o empregado no local de trabalho. 

O sujeito passivo “somente pode ser pessoa vinculada a uma relação de trabalho” [59], enquanto o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa que tenha algum tipo de ingerência na organização dessa relação trabalhista. Em geral, os sujeitos ativos serão os empregadores ou seus prepostos.

 Por trabalhos forçados, entende-se “a atividade laborativa desenvolvida de maneira compulsória, sem voluntariedade, pois implica em alguma forma de coerção caso não desempenhada a contento” [60]. Já a jornada exaustiva compreende aquela que exaure o trabalhador, “independentemente de pagamento de horas extras ou qualquer outro tipo de compensação” [61].

O trabalho em condições degradantes também é considerado pela lei como trabalho similar ao de escravo e, muitas vezes engloba a jornada exaustiva e os trabalhos forçados, sendo, portanto, uma circunstância mais ampla. Em outros termos, pode-se dizer que:

[...] que trabalho em condições degradantes é aquele em que há a falta de garantias mínimas de saúde e segurança, além da falta de condições mínimas de trabalho, de moradia, higiene, respeito e alimentação. Tudo devendo ser garantido - o que deve ser esclarecido, embora pareça claro - em conjunto; ou seja, e em contrário, a falta de um desses elementos impõe o reconhecimento do trabalho em condições degradantes. [62]

A restrição de locomoção em razão de dívida configura-se muitas vezes como aprofundamento do crime previsto no §1º do art. 203 do CP, no qual o trabalhador é obrigado ou coagido a usar mercadorias de determinado estabelecimento, para impossibilitar o rompimento da relação trabalhista em razão de dívida.

No entanto, a contração da dívida também pode se dar anteriormente ao próprio início da prestação do trabalho.

Quando o “gato”, preposto do empregador ou o próprio empregador financia débitos pendentes do trabalhador (a exemplo das dívidas com alimentação e pousadas onde permanecem à espera de trabalho); ou antecipa (“adiantamento”) parte do salário que garanta as mínimas condições de subsistência da família do trabalhador por algum período de tempo. Ainda, cobra do trabalhador as despesas efetuadas a título de transporte e alimentação desde o local da contratação até o local de trabalho. [63]

3. A relação entre as restrições constitucionais à causa de aumento de pena do §2º, II do art. 149 do CP.

Neste ponto do trabalho, passa-se à análise da pertinência da aplicação das restrições constitucionais incidentes sobre o crime de prática do racismo ao crime de redução à condição análoga à de escravo, por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.

Nesse sentido, busca-se indagar se a imprescritibilidade, a inafiançabilidade e a pena de reclusão incidem necessariamente sobre aqueles que cometem o crime do art. 149, §2º, II do CP. O ponto central para a elucidação dessa questão encontra-se na caracterização ou não de tal delito como crime de prática de racismo, nos termos constitucionais.

Cumpre esclarecer que a análise empreendida deve permanecer restrita aos debates produzidos em âmbito doutrinário sobre o assunto, diante da inexistência de jurisprudência abarcando o crime de plágio motivado por preconceito.

A inclusão do crime de plágio motivado por preconceito enquanto crime de racismo, submetido aos parâmetros do inciso XLII do artigo 5º da CRFB, não é solução unânime encontrada pelos doutrinadores que se debruçaram sobre o tema.

Por um lado, há aqueles que opinam favoravelmente a tal entendimento, como, por exemplo, Guilherme de Souza Nucci:

Esta última situação não deixa de ser uma forma de racismo, por isso é imprescritível e inafiançável, conforme prevê a Constituição Federal (art. 5º, XLII). Dessa maneira, quem cometer o delito de redução à condição análoga à de escravo motivado por razões de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem será mais severamente apenado, além de não se submeter a pretensão punitiva estatal à prescrição.[64]

No que tange ao bem jurídico tutelado, Nucci observa que embora a liberdade individual seja um dos bens jurídicos tutelados, não se pode “olvidar a intenção legislativa de conferir maior punição ao crime, visto abranger a motivação racista” [65].

Embora o citado autor não faça referência à pena de reclusão, a sua linha de raciocínio leva à conclusão de que também é esta uma imposição constitucional sobre os condenados pelo crime de redução motivado por preconceito. Com isso, ficaria vedada eventual alteração legislativa no tipo de pena imposta ao delito, sob o risco de inconstitucionalidade dessa medida.

O mesmo resultado é alcançado caso se entenda que o crime de plágio absorve aquele do art. 20 da lei n. 7.716/89:

O posicionamento de Cezar Roberto Bitencourt sobre a majorante em tela é também no mesmo sentido, devendo se fazer presente o especial fim de agir que ele entende exigido por esse tipo, qual seja, aquele de discriminar o ofendido em razão de sua raça, cor, religião ou origem:

Contudo, para que essa majorante específica se faça presente é indispensável que seja orientada pelo especial fim de discriminar o ofendido por razao de raça, cor, etnia, religião ou origem (elementos subjetivo especial do injusto), a exemplo do que acontece com a injúria preconceituosa ou discriminatória (art. 140, §3º). [66] (grifos nossos)


Capítulo VI – O crime de injúria qualificada por motivo de preconceito.

1.  A honra e sua tutela penal-constitucional.

A honra das pessoas é considerada inviolável pela Constituição brasileira e sua violação pode ter como consequência o pagamento de indenização por parte do ofensor. Em compasso com essa proteção, o Código Penal tutela penalmente a honra, através dos crimes contra a honra.

Esse grupo de crimes é composto pelos artigos 138 (calúnia), 139 (difamação) e 140 (injúria). Porém, a intervenção penal não é ilimitada, conhece além dos limites interpretativos inerentes aos tipos penais, a limitação por parte do direito de liberdade de expressão.

Em vista disso, não é cabível a criminalização como injúria das críticas quando as mesmas façam parte do natural e livre debate de ideias esperado numa sociedade democrática. Tal sopesamento de valores é realizado no próprio CP art. 142, II, que exclui o crime nessas circunstâncias, salvo a intenção inequívoca de injuriar.

O verbo injuriar significa, ordinariamente, ofender. No entanto, a caracterização da injúria merecedora de tutela penal exige que a ofensa “atinja a dignidade (respeitabilidade ou amor-próprio) ou o decoro (correção moral ou compostura) de alguém” [67], maculando o conceito que alguém faz de si mesmo.

A injúria pode ocorrer de diversas formas, desde uma ofensa produzida verbalmente a uma que se exteriorize por meio de gestos. “Na injúria não há a imputação de um fato, mas a opinião que o agente dá a respeito do ofendido”. [68]

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A injúria simples, prevista no caput do art. 140 possui pena de detenção de um a seis meses, ou multa. Já a forma qualificada da injúria real na qual o ato injurioso ocorre por meio de violência ou vias de fatoconsideradas aviltantes, a pena, igualmente de detenção, é maior com um mínimo de três meses e o máximo de um ano cumulada com multa.

Por fim, a forma qualificada da injúria na qual se utiliza de elementos preconceituosos, a pena é de reclusão – em atendimento à diretiva constitucional – com variação de um ano a três anos, além de multa.

A injúria do art. 140, §3º é uma injúria qualificada em função do conteúdo injurioso do qual o sujeito ativo se utiliza para ferir a honra subjetiva do ofendido. No caso, busca-se coibir mais severamente aquele tipo de ofensa que é expressão de algum tipo de preconceito albergado pelo ofensor.

A utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência é essencial para ensejar a qualificação do crime.

Em princípio, a injúria admite perdão judicial quando o ofendido, de forma, reprovável, provocou a injúria ou quando houve retorsão imediata. O doutrinador Fernando Capez descarta a possibilidade de aplicação da retorsão enquanto causa geradora de perdão judicial na injúria por preconceito.

[...] uma vez que o preconceito manifestado não se reveste de simples injúria e, portanto, não poderia ser simplesmente elidido por outra, tratando-se de violação muito mais séria à honra e uma das metas fundamentais do Estado Democrático de Direiro (CF, art. 3, IV). [69]

2. Considerações sobre o tipo penal da injúria preconceituosa.

2.1. As críticas à quantidade de pena cominada.

A quantidade de pena cominada pelo legislador é alvo de críticas na doutrina, sob o argumento de que lhe faltaria proporcionalidade:

De acordo com a intenção da lei nova, chamar alguém de "negro", "preto", "pretão", "negão", "turco", "africano", "judeu", "baiano", "japa" etc., desde que com vontade de lhe ofender a honra subjetiva relacionada com a cor, religião, raça ou etnia, sujeita o autor a uma pena mínima de 1 ano de reclusão, além de multa. Menor do que a imposta no homicídio culposo (1 a 3 anos de detenção, art. 121, § 3º) e a mesma do autoaborto (CP, art. 124) e do aborto consentido (art. 125).

[...]

E há delitos mais graves com pena comparativamente menor: constrangimento ilegal (art. 146), ameaça de morte (147), abandono material (art. 244) etc. A cominação exagerada ofende o princípio constitucional da proporcionalidade entre os delitos e suas respectivas penas. [70]

Independentemente do mérito da crítica colacionada, há que sedestacar que o legislador penal brasileiro enfrenta grande dificuldade no que tange à elaboração de leis que considerem devidamente o sistema penal como um todo.

A edição de leis ocorre muitas vezes ao largo de uma abordagem dos novos tipos penais para com os já existentes. Com isso, prolíficos são os exemplos de condutas desproporcionalmente apenadas quando em confronto com outras já existentes.

Ademais, o CP vigente foi inicialmente concebido há mais de sessenta anos, de modo que as suas disposições já foram extensamente alteradas tendo em vista a necessidade de atualização legal em face das mudanças sociais e culturais que ocorrem no seio da sociedade.

Contudo, existem vozes que defendem a quantidade de pena ora discutida. Neste ponto, cabe transcrever a doutrina de Guilherme de Souza Nucci, que comenta:

Não vemos qualquer ofensa ao princípio da proporcionalidade É o que ocorre neste caso. O Brasil intitula-se um país formado de várias raças, etnias e religiões, onde não haveria, em tese, como existe em outros lugares, discriminação. Entretanto, é sabido que há uma forma de discriminação velada, trazida por ofensas e comentários desairosos a pessoas e instituições, que demonstram a face segregativa de muitos.

[...] não basta punir rigidamente quem impede a entrada de uma pessoa negra em um lugar público (reclusão, de 1 a 3 anos, conforme art. 5º da Lei 7.716/89), mas também quem faz o mesmo através de comentários jocosos e humilhantes, que afastam a mesma pessoa do lugar onde pretendia ingressar. (grifos nossos) [71]

Essa observação do doutrinador revela que a cominação legal encontra suporte na própria realidade dos fatos. E a partir dela, assume relevância a questão acerca da aplicabilidade das restrições constitucionais à figura típica da injúria preconceituosa, o que será abordado mais à frente.

2.2. Do tipo de ação penal.

Por se tratar de um crime cujo bem jurídico protegido, a honra, é de cunho eminentemente pessoal, a vontade do ofendido em promover a ação penal assume especial relevância. A par de tal circunstância, o legislador previu que a regra para a deflagração da ação penal relativa ao crime de injúria seja a ação penal privada.

A ação penal pública incondicionada somente é possível no caso da injúria real na qual resulta lesão corporal da violência, conforme dispõe o art. 145 do CP. Ademais, a requisição do Ministro da Justiça é necessária para a deflagração do processo em caso de injúria praticada contra o Presidente da República ou contra chefe de governo estrangeiro.

Por outro lado, a injúria contra funcionário público, em razão de suas funções e aquela com elementos preconceituosos são públicas condicionadas à representação do ofendido, nos termos do parágrafo único do art. 145 do CP.

Contudo, a ação penal pública condicionada para a injúria preconceituosa somente foi instituída pela lei n. 12.033/09. Antes, essa categoria de crime estava sujeita à regra da ação penal pública privada, o que, desde a origem, foi alvo de críticas por doutrinadores e grupos ligados aos movimentos de combate ao racismo.

[...] a relevância do bem jurídico protegido exigiria a obrigatoriedade da ação, devendo, portanto, ser de iniciativa pública e não privada, pois esta implica disposição do bem jurídico pela parte ofendida, o que no caso em tela não deveria ocorrer. [72]

A necessidade de queixa do ofendido ensejava problemas principalmente quando o Ministério Público acusava alguém com base na lei n. 7.716/89, e a conduta era desclassificada para a injúria preconceituosa. Como consequência, muitas vezes já havia decorrido in albis o prazo de 6 (seis) meses para a representação, e a vítima não mais possuía meios para buscar a condenação do ofensor.

Esclarece-se que a atual condição de procedibilidade da representação da vítima incidente sobre a injúria do §3º do art. 140 não existe no caso dos crimes da lei n. 7.716/89, porquanto todos os crimes constantes desse diploma legal são de ação penal pública incondicionada.

Sendo assim, a ação penal em caso de injúria preconceituosa estará submetida ao prazo decadencial de que trata o art. 38 do Código de Processo Penal. Se o ofendido não representar contra o autor do crime em até seis meses, contados a partir do momento em que tiver conhecimento da autoria, ele não mais poderá valer-se da persecução criminal do ofensor.

Mas, mesmo num contexto em que não se entenda ser o crime de injúria com preconceito um crime de racismo, a intenção constitucional em combater a discriminação indica que o melhor caminho poderia ser a ação penal pública incondicionada também para o delito do §3º, art. 140, CP.

Neste ponto, é importante apontar que o anteprojeto de novo Código Penal elaborado por uma comissão de juristas, composta em 2011, apresenta involução. A proposta é o retorno ao cenário original, no qual seria necessária a queixa do ofendido para dar início ao processo.

3. A diferenciação entre a injúria preconceituosa e o crime do art. 20 da lei n. 7.716/89.

Muitas dúvidas pairam sobre a diferenciação entre o art. 20 da lei n. 7.716/89 e o art. 140, §3º do CP, uma vez que a mesma situação fática pode, em tese, acarretar em dificuldade para o intérprete no sentido de estabelecer qual dos dois tipos deve prevalecer para fins de tipificação da conduta.

A grande discussão travada hoje na doutrina e nos tribunais diz respeito à classificação típica da conduta de quem, normalmente de modo verbal, tece comentários ofensivos utilizando-se de elementos relativos a raça, cor, etnia, credo ou procedência nacional. [73]

Um dos critérios utilizados para a diferenciação entre um tipo e outro é o relativo ao alcance das palavras proferidas. No caso de uma pessoa ofender outra diretamente com a utilização de elementos de raça, cor, etnia, credo ou procedência nacional, caberia a aplicação da injúria qualificada do Código Penal. No entanto, se o sujeito ativo utiliza-se desses elementos para ofender um grupo ou categoria de pessoas, restaria configurada a conduta do art. 20 da lei n. 7.716/89.

Em verdade, neste tipo de ofensa que caracteriza o crime do art. 140, §3º, o agente não tem o dolo de segregar, de demonstrar uma falsa superioridade com relação a todo e qualquer membro de um grupo, mas, sim, de ofender determinada pessoa, atingindo o conceito que a mesma tenha de si mesma, de seus atributos, valores, etc. [74].

Nesse sentido, no Recurso Ordinário em Habeas Corpus n. 19.166-RJ, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça firmou posição clara sobre o tema. O RHC em questão havia sido interposto contra decisão do Tribunal Federal da 2ª Região, que confirmou a tipificação de denúncia oferecida pelo Ministério Público.

O caso concreto envolveu um desentendimento, dentro de uma aeronave, entre um passageiro brasileiro e dois comissários de bordo americanos, funcionário da empresa American Airlines. O MP denunciou os dois comissários como incursos nas penas do art. 20 da lei n. 7.716/89.

Durante a citada discussão, o acusado Shawn Tipton Scott proferiu a seguinte frase dirigida ao brasileiro: "Amanhã vou acordar jovem, bonito, orgulhoso, rico e sendo um poderoso americano, e você vai acordar como safado, depravado, repulsivo, canalha e miserável brasileiro."

Segundo a própria denúncia, o outro comissário, Mathew Gonçalves, teria concorrido materialmente para o crime. Este incitou seu colega e chegou a tentar agredir a vítima, tendo sido, entretanto, contido por outros passageiros.

Em poucas palavras, a alegação da defesa para a impetração do habeas corpus era de que o MP não tinha legitimidade para apresentar a denúncia, pois o caso era de injúria preconceituosa (art. 140, §3º, CP), pois, pela redação do Código Penal à época, a ação penal nesse tipo de injúria era privada.

Porém o STJ não acatou o raciocínio esposado pela defesa dos acusados e, confirmou a decisão anteriormente tomada pelo TRF. Para o relator, min. Felix Fischer, não havia equívoco na tipificação do Ministério Público, tendo em vista a intenção dos agentes:

Com efeito, no delito de injúria preconceituosa, a finalidade do agente, a fazer uso de elementos ligados a raça, cor, etnia, origem etc., é atingir a honra subjetiva da vítima, bem juridicamente protegido pelo crime em questão. Ao contrário, o delito previsto no art. 20, da Lei nº 7716/89, na modalidade de praticar ou incitar a discriminação ou preconceito de procedência nacional, constitui manifestação de um sentimento em relação a toda uma coletividade em razão de sua origem (nacionalidade). [75]

O ministro segue para asseverar que no caso a intenção dos agentes não parecia ser uma de mera ofensa à honra subjetiva da vítima. Com efeito, o que os réus pretenderam foi marcar a condição de inferioridade do ofendido em função do mesmo ser brasileiro – “a ideia foi exaltar a superioridade do povo americano em contraposição à posição inferior do povo brasileiro.” [76]

Todavia, a distinção entre um e outro crime deverá continuar a depender de uma avaliação casuística e subjetiva do julgador. Observe-se que no próprio STJ, a Sexta Turma, por exemplo, já decidiu um caso semelhante ao analisado previamente, no processo relativo ao RHC n. 18.620-PR.

O resultado final, alcançado por unanimidade, seguiu a argumentação trazida no voto da relatora, min. Maria Thereza de Assis Moura. Ela destacou que o fato de o recorrente ter dito não gostar da raça negra, “no contexto dos fatos, não implica em disseminação do racismo, mas de opinião ou valoração pessoal, dirigida, ainda, a ferir a honra do recorrente” [77].

Porém, o resultado desse julgamento poderia ter sido em direção completamente oposta se a interpretação quanto ao alcance das palavras proferidas pelo acusado tivesse sido outra. De qualquer modo, a simples estruturação da frase utilizada pelo sujeito ativo pode determinar a diferença entre um crime sujeito à imprescritibilidade e outro não.

Isso porque a posição majoritária da doutrina é de que o disposto no art. 5º, XLII não tem aplicação quando tem lugar a injúria preconceituosa do Código Penal. Logo, a simples desclassificação do delito do art. 20 da lei n. 7.716/89 para esse tipo de injúria acarreta significativa diminuição do alcance da persecutio criminis estatal.

Por fim, destaca-se a Apelação Criminal n. 0007333-28.2009.4.02.5001 no Tribunal Regional Federal da 2ª Região, na qual há um voto divergente do desembargador Messod Azulay Neto, que se sobressai por uma interpretação mais abrangente do art. 20 da lei n. 7.716/89.

No recurso, o MPF se insurgia contra a decisão do juízo de primeiro grau que efetivou a desclassificação da conduta das rés para o art. 140, §3º do CP em prejuízo da tipificação ministerial originalmente proposta na denúncia.

O des. Azulay Neto não aceitou a desclassificação com fulcro na argumentação trazida pelo MPF que dizia:

[...] não há que se falar em crime de injúria racial simplesmente porque as palavras, atos ou gestos preconceituosos foram dirigidos a uma única pessoa, ou então no calor de uma discussão - ou ainda, como no caso, “no bojo de uma antiga disputa pelo afeto de um homem”. Mesmo em tais hipóteses, verificado que as palavras proferidas revelam o preconceito em relação a uma raça ou etnia como um todo, incorre o agente no crime previsto no art. 20, da Lei nº 7.716/89. [78]

Para esse julgador, as ofensas proferidas pelas rés como “povo da senzala”, “macaca”, “manda um cacho de banana” e “blacks”, evidenciavam não só uma ofensa à honra subjetiva da vítima, “mas demonstram o sentimento de desprezo que as acusadas nutrem pela raçanegra”.

4. A injúria preconceituosa é prática de racismo? Questões sobre a aplicabilidade das restrições constitucionais.

4.1. Da semelhança entre a injúria motivada por preconceito e a lei n. 7.716/89.

Na justificativa para o PL de sua autoria - que gerou a multicitada lei n. 9.459/97, cujo art. 1º redefiniu a redação dos arts. 1º e 20 da lei n. 7.716/89 e a inserção do §3º no art. 140 do CP -, o então deputado federal Paulo Paim afirmou:

Este projeto que aumenta os tipos penais com a alteração e acréscimo de artigos à lei n. 7.716/89, de autoria do ex-deputado Carlos Alberto Caó, visando criminalizar práticas de discriminação ou de preconceito de raça, cor, etnia e procedência nacional objetiva resgatar todos esses valores e atacar a impunidade. Por este projeto as citadas transgressões não serão mais tipificadas como delitos de calúnia, injúria e difamação, e sim, como crimes de racismo. [79]

A modificação perpetrada no art. 1º da lei Caó objetivou ampliar a gama de incidência da maioria dos tipos penais da lei n. 7.716/89, pois passou-se a tutelar além da discriminação por raça e cor, aquela por etnia, religião ou procedência nacional.

Inicialmente, da manifestação do deputado extrai-se que o objetivo era fazer com que os crimes cometidos por preconceito de etnia, religião e procedência nacional também sejam crimes de racismo. Ou seja, o termo racismo afasta-se da identificação tradicional com o termo raça – posicionamento semelhante ao que seria posteriormente acolhido pelo STF no Caso Ellwanger.

Ao comentar as modificações trazidas por aquela legislação, Marta Rodriguez assevera que:

A injúria qualificada criada com a mesma lei visava, segundo a justificativa do próprio projeto de lei, a corrigir um dos pontos apontados como dos mais problemáticos à aplicação da regulamentação anterior: o fato de que as ofensas à honra em razão da raça e da cor continuavam a ser enquadradas pelos Tribunais como simples crimes contra a honra individual, com pena bem mais baixa que as previstas pela Lei Caó. [80] (grifos nossos)

A analisarem-se a justificação de Paulo Paim e o comentário acima transcrito, surge uma aparente contradição nos objetivos do deputado responsável pelo projeto de lei. Isso porque, ele afirma que pretende com o PL afastar a tipificação como calúnia, injúria ou difamação de condutas motivadas por preconceito para torná-las crimes de racismo.

No entanto, o próprio PL institui uma forma de injúria qualificada pelo seu conteúdo discriminatório. Ocorre que, para tornar esse quadro harmônico, uma interpretação seria no sentido de que o desígnio do legislador era que o novel §3º do art. 140 do CP fosse um crime de racismo, sujeito a todas as implicações jurídicas decorrentes disso.

Todavia, ainda que assim não fosse, muitos elementos apontam para a existência de estreita relação entre a injúria preconceituosa e os crimes de racismo constantes da Lei Caó, a começar pela sua previsão ter se dado no mesmo diploma legislativo.

Em segundo lugar, não escapa à observação que a discriminação e o preconceito são a força motora por trás das condutas tanto da lei n. 7.716/89 quanto da injúria qualificada. Como prova disso, destaca-se a própria semelhança inerente à redação legal dispensada àquelas.

Igualmente, merece relevo a pena cominada no §3º, art. 140 do CP, que é de reclusão, como a prevista na Constituição para o crime de prática de racismo. Essa previsão se destaca em vista de todas as outras formas de injúria serem apenadas somente com detenção, incluindo-se a injúria real.

Por derradeiro, a quantidade de pena também é compatível com as incidentes sobre os crimes da lei n. 7.716/89, fato explicitado por Guilherme Nucci quando o mesmo defende razoabilidade da sanção aplicável à injúria preconceituosa como já abordado.

4.2. A posição majoritária na doutrina.

A questão da aplicabilidade dos termos do art. 5º, inciso XLII da Constituição ao crime de injúria qualificada pelo preconceito não é referenciada diretamente por muitos doutrinadores. No entanto, quando certos autores tratam do art. 140, §3º e adentram nesse aspecto, a grande maioria aponta como correta a solução na qual esse tipo de injúria não é considerado como crime de racismo e, portanto, não é passível de aplicação as determinações constitucionais.

Dentre esses doutrinadores, pode-se destacar Julio Fabbrini Mirabete, Renato N. Fabbrini, Rogério Greco, Christiano Jorge Santos e Luiz Carlos dos Santos Gonçalves. Todavia, as razões para a não inclusão da injúria discriminatória como crime racista variam entre esses autores.

Dentre os citados, Christiano Santos e Luiz Gonçalves observam que a injúria preconceituosa implica “nítida demonstração de racismo ou outra forma de preconceito por parte do autor do delito” [81] e que “a inclusão dessas formas de condutas na lei n. 7.716/89 daria às vítimas a proteção especial da imprescritibilidade e da inafiançabilidade” [82].

De modo que, embora eles reconheçam a prática de racismo através da injúria do §3º do art. 140 do CP, concluem pela impossibilidade da incidência das restrições constitucionais pelo fato de a injúria racista não estar na lei Caó. Sendo que ao mesmo resultado chega Rogério Greco, porém sem analisar o mérito de haver ou não expressão de racismo naquele tipo de crime contra a honra.

Por outro lado, Julio Mirabete e Renato Fabbrini afastam a hipótese debatida em função da distinção entre os bens jurídicos protegidos, ainda que defendam a possibilidade de progressão criminosa entre a injúria e os crimes da lei 7.716/89.

A injúria qualificada pelo preconceito em contexto de progressão criminosa para o cometimento de crime previsto na lei n. 7.716/89 é por este absorvida. Não se confunde, porém, a injúria qualificada por preconceito, crime contra a honra subjetiva, com os crimes descritos na lei n. 7.716/89, que tipifica condutas dirigidas à segregação ou discriminação de alguém em razão dos mesmos elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem. [83] (grifos nossos)

4.3. A tese de inconstitucionalidade do art. 140, §3º.

Previamente, ao tratar-se das dificuldades inerentes à diferenciação entre a injúria qualificada pelo preconceito e o art. 20 da lei Caó, observou-se que a escolha entre essas possibilidades de tipificação implica na incidência ou não da nota de imprescritibilidade constitucional aplicável ao crime de prática de racismo.

Em outras palavras, a injúria preconceituosa, embora seja impregnada por elementos que evidenciam o preconceito do ofensor, não é considerada pela doutrina ou pela jurisprudência como crime de racismo. Nesse passo, esse tipo de injúria tem a sua prescrição regida pelas normas comuns ínsitas no CP.

 De encontro a esse panorama erige-se outra tese, esposada pelo promotor de justiça Roberto Brayner Sampaio, membro do Grupo de Combate à Discriminação Racial (GT Racismo) do Ministério Público Estadual de Pernambuco.

Ele entende que a existência do art. 140, §3º do Código Penal revela racismo institucional, “consistente na construção jurídica de uma forma de tornar menos grave conduta que a Carta Magna qualificou como crime imprescritível e inafiançável.” [84] E, por isso, a injúria preconceituosa é inconciliável com os princípios inerentes à Constituição brasileira.

Ademais, ataca a diferenciação, já analisada, que foi levada à cabo tendo em vista a compatibilização entre o art. 20 da lei n. 7.716/89 e a injúria qualificada, introduzidos pela mesma lei. Em primeiro lugar, ressalta-se que a conduta injuriosa baseada em preconceito é de fato encarada pela própria sociedade como racismo.

Para boa parte da doutrina somente haverá crime de racismo quando as ofensas forem direcionadas indistintamente a todo o grupo discriminado, a exemplo de expressões como “os índios são preguiçosos” ou “os negros são desonestos” dentre outras manifestações de intolerância. Nessa linha de pensamento, as ofensas diretas às pessoas como referências à cor, como “o negro safado, ponha-se no seu lugar!”, deveriam ser tidas como injúria qualificada. É um conceito restritivo do que é racismo que não encontra ressonâncias no pensamento das pessoas e que, por consequência, não traduz a consciência social de nosso povo.[85] (grifos nossos)

Em segundo lugar, deve-se considerar legítima a pretensão do corpo social em impor punição para todos os que praticam a discriminação, mesmo que ela seja dirigida somente contra um indivíduo. Isso porque, “não há como negar haver violação de interesses difusos e coletivos consistentes no ideal de eliminação da intolerância e do racismo".

Em razão dessas ponderações, o promotor conclui pela inconstitucionalidade do art. 140, §3º do CP. No entanto, ele sustenta a possibilidade de aplicação desse dispositivo sob a condição de incidência da imprescritibilidade que recai sobre o crime de prática de racismo, nos termos da Constituição.

4.4. A posição favorável à aplicabilidade das restrições constitucionais sobre a injúria motivada por preconceito.

A interpretação conforme apresentada pelo promotor Brayner tem como argumento central o entendimento de que o crime de injúria motivada por preconceito, embora não incluído na lei n. 7.716/89, - que é por excelência a lei antidiscriminatória no ordenamento jurídico brasileiro - encaixar-se-ia no conceito constitucional de “prática de racismo”.

Com isso, não só a imprescritibilidade incidiria sobre o crime do art. 140, §3º do CP, como também inevitavelmente deveriam ser aplicadas a inafiançabilidade e a obrigatoriedade da pena de reclusão, previstas na Constituição.

Esse ponto de vista é indubitavelmente minoritário tanto na doutrina brasileira como na jurisprudência. A necessidade de diferenciação entre as condutas da injúria preconceituosa e o art. 20 da lei 7.716/89 é um sintoma disso na medida em que a separação de alcance entre elas resulta na incidência ou não da restrição constitucional mais substancial, que é a imprescritibilidade.

Ao encontro da tese de Roberto Brayner está a posição de Guilherme de Souza Nucci, que afirma que “a injúria racial, prevista no art. 140, § 3º, quando lastreada em discriminação ou preconceito racial, constitui, igualmente, nítida prática do racismo.”[86]

Isso porque, segundo esse autor inexiste vedação para a constituição de tipos penais incriminadores que estabeleçam delitos calcados na prática do racismo, “não importando em qual código ou lei encaixa-se a figura típica” [87]. Logo, “deve-se conceber como prática de racismo todos os delitos vinculados a esta motivação, presentes em qualquer lei, inclusive, por óbvio, no Código Penal” [88].

Nesse sentido, assume relevância a observação feita pelo des. Messod Azulay Neto, cujo voto divergente em uma apelação criminal foi exposto anteriormente quando se tratou da argumentação subjacente à separação entre a injúria preconceituosa e a prática do racismo do art. 20 da lei Caó.

Naquela ocasião, o desembargador federal interpretou as injúrias raciais proferidas pelas rés como sinais do desprezo delas pela raça negra como um todo. Sendo assim, pode-se ter que o entendimento de Nucci sobre o tema constitui uma extrapolação disso, uma vez que a motivação racista indicaria sempre o desprezo do ofensor pelo grupo no qual ele inclui sua vítima, devendo, portanto, ser considerado como crime de racismo.

Por outro lado, Cezar Roberto Bitencourt aceita a classificação da injúria discriminatória enquanto crime de racismo na medida em que os elementos preconceituosos quando utilizados devem representar um fim especial de agir do agente em discriminar o ofendido para a configuração dessa forma qualificada:

Para a configuração da injúria por preconceito, é fundamental, além do dolo representado pela vontade livre e consciente de injuriar, a presença do elemento subjetivo especial do tipo, constituído pelo especial fim de discriminar o ofendido por razão de raça, cor, etnia, religião ou origem. A simples referência aos “dados discriminatórios” contidos no dispositivo legal é insuficiente para caracterizar o “crime de racismo”, que, é bom que se diga, é inafiançável e imprescritível (art. 5º, XLII, da CF). [89] (grifos nossos)

Assim, os termos referentes aos elementos de raça, cor, etnia, religião ou origem por si sóis não são aptos a ensejar a caracterização do crime, como é necessário que eles sejam empregados a partir de um fim doofensor em discriminar o alvo de suas injúrias.

4.5.   A visão dos tribunais.

Apesar das semelhanças apontadas, não há no Brasil tendência significativa doutrinária ou jurisprudencial a entender a injúria preconceituosa do Código Penal como crime de racismo, na acepção de que empolgue incidência do art. 5º, XLII.

O STF embora não tenha emitido julgado no qual essa questão fosse a controvérsia central, a decisão da Segunda Turma da Corte no bojo HC n. 86452-0, de relatoria do min. Joaquim Barbosa, em nenhum momento aventa a possibilidade de inexistir prescrição sobre o tipo do art. 140, §3º do Código Penal.

No caso em tela, o paciente estava sendo processado com base nos artigos 140, §3º e 141, inciso III do Código Penal. O impetrante pretendia ver concedida ao paciente a suspensão condicional do processo, previsto na lei n. 9.099/95.

Não obstante, o Ministério Público em seu parecer suscitou outro ponto, em sede de preliminar, consistente no entendimento de que o crime estaria prescrito e, portanto, deveria ser reconhecida a extinção da punibilidade do paciente.

O relator ao enfrentar a questão conclui que a manifestação ministerial era equivocada na medida em que desconsiderou-se o componente racial das ofensas do paciente. Nesse sentido, o MP baseou-se na cominação legal da injúria simples, de um a dois anos para afirmar a ocorrência da prescrição.

E o ministro relator encerra afirmando que, tendo em conta a pena máxima de três anos prevista para o crime do art. 140, §3º, a prescrição ocorre em oito anos, de acordo com o previsto no art. 109, IV do CP. Assim, não se poderia falar em prescrição no caso concreto.

Considerando-se que o voto do relator foi seguido unanimemente pela Segunda Turma, transparece que até o momento inexiste no STF qualquer tendência de interpretação da injúria por motivo de preconceito como crime de prática de racismo.

O Superior Tribunal de Justiça acompanha o STF na tese de prescritibilidade do crime de injúria qualificada por preconceito. Como demonstração disso estão os próprios julgados, em habeas corpus, anteriormente analisados, RHC n. 18.620-PR e n. 19.166-RJ.

A mesma linha de raciocínio seguem os Tribunais de Justiça dos estados federativos, v.g. Ap. n. 200930063132 (TJPA), Ap. n. 70043206143 (TJRS) e Ap. 100.014 (TJRO). E, embora na justiça federal sejam mais raros os casos que envolvam o tema, o entendimento se repete, v.g. ACr. n. 42 PR (TRF 4ª Região).

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Sobre a autora
Letícia França Corrêa

Bacharel em Direito pela Puc-Rio Ex-bolsista CNPQ em direito constitucional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORRÊA, Letícia França. Racismo: reflexões sobre as restrições constitucionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3865, 30 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26568. Acesso em: 18 dez. 2024.

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